Dizer o Direito

quarta-feira, 23 de junho de 2021

Lei 14.176/2021: fixa em 1/4 do salário-mínimo a renda mensal per capita para concessão do amparo assistencial e promove outras alterações no benefício

 

Olá, amigos do Dizer o Direito,

Foi publicada hoje mais uma novidade legislativa.

Trata-se da Lei nº 14.176/2021 que tratou de dois assuntos muito relevantes:

1) promoveu diversas mudanças no benefício de prestação continuada (BPC);

2) disciplina o chamado auxílio-inclusão. 

Neste primeiro post, irei discorrer apenas sobre as alterações promovidas pela Lei no BPC. No post seguinte, tratarei a respeito do chamado auxílio-inclusão.

A Lei nº 14.176/2021 tratou sobre o requisito da renda familiar mensal para recebimento do benefício de amparo assistencial e outros aspectos do BPC. 

Vamos entender a mudança, mas, para isso, é necessário fazer uma breve revisão sobre o tema.

 

Benefício mensal de um salário-mínimo para pessoa com deficiência ou idoso

A ideia de um benefício assistencial de prestação continuada a pessoas com deficiência e idosos carentes tem previsão na própria Constituição Federal que, em seu art. 203, V, estabelece:

Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:

(...)

V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.

 

A fim de dar cumprimento ao comando constitucional, foi editada a Lei nº 8.742/93 que, em seus arts. 20 a 21-A, disciplinou como seria pago esse benefício.

 

Nomenclatura

O art. 20 da Lei nº 8.742/93 denomina esse direito de “Benefício de Prestação Continuada”. Ele também pode ser chamado pelos seguintes sinônimos: “Amparo Assistencial”, “Benefício Assistencial” ou “LOAS”.

 

Em que consiste esse benefício:

Pagamento de um salário-mínimo por mês

• à pessoa com deficiência; ou

Desde que comprove não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família.

• ao idoso com 65 anos ou mais.

 

Para receber esse benefício, é necessário que a pessoa contribua ou tenha contribuído para a seguridade social?

NÃO. Trata-se de um benefício de assistência social, que será prestado a quem dele necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social. A assistência social é caracterizada por ser um sistema não-contributivo, ou seja, é prestada independentemente de contribuição.

 

Quem administra e concede esse benefício?

Apesar de o LOAS não ser um benefício previdenciário, mas sim assistencial, ele é concedido e administrado pelo INSS. Vale ressaltar, no entanto, que os recursos necessários ao seu pagamento são fornecidos pela União (art. 29, parágrafo único, da Lei nº 8.742/93).

Assim, a competência para julgar ações que discutam esse benefício é da Justiça Federal.

 

Vimos acima que a CF/88 afirma que só receberão o benefício as pessoas “que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família”. Existe algum critério na Lei para definir isso?

A Lei nº 8.742/93 previa o seguinte:

Art. 20 (...)

§ 3º Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo.                  (Redação vigente na época da Lei nº 12.435/2011)

 

O STF, no entanto, ao analisar esse dispositivo, afirmou que esse critério não era absoluto:

Em 2013, o Plenário da Corte declarou a inconstitucionalidade do § 3º do art. 20 da Lei nº 8.742/93 (sem pronúncia de nulidade) por considerar que esse critério estava defasado para caracterizar a situação de miserabilidade.

O STF afirmou que, para aferir que o idoso ou deficiente não tem meios de se manter, o juiz está livre para se valer de outros parâmetros, não estando vinculado ao critério da renda per capita inferior a 1/4 do salário-mínimo previsto no § 3º do art. 20.

O Min. Gilmar Mendes afirmou que “a economia brasileira mudou completamente nos últimos 20 anos. Desde a promulgação da Constituição, foram realizadas significativas reformas constitucionais e administrativas com repercussão no âmbito econômico e financeiro. A inflação galopante foi controlada, o que tem permitido uma significativa melhoria na distribuição de renda”. Tais modificações proporcionaram que fossem modificados também os critérios para a concessão de benefícios previdenciários e assistenciais que podem ser “mais generosos” que o parâmetro de 1/4 do salário mínimo mencionado no § 3º do art. 20 acima referido.

O Relator esclareceu que, atualmente, os programas de assistência social no Brasil utilizam o valor de 1/2 salário mínimo como referencial econômico para a concessão de benefícios. Ele ressaltou que este é um indicador bastante razoável e que, portanto, o critério de 1/4 do salário mínimo utilizado pela LOAS está completamente defasado e inadequado para aferir a miserabilidade das famílias.

STF. Plenário. RE 567985/MT e RE 580963/PR, red. p/ o acórdão Min. Gilmar Mendes, julgados em 17 e 18/4/2013 (Info 702).

 

Esse foi também o entendimento do STJ:

(...) A Terceira Seção do STJ, ao apreciar o REsp 1.112.557/MG, submetido à sistemática do art. 543-C do CPC/1973, firmou a compreensão de que o critério objetivo de renda per capita mensal inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo - previsto no art. 20, § 3°, da Lei 8.742/93 - não é o único parâmetro para aferir hipossuficiência, podendo tal condição ser constatada por outros meios de prova.

STJ. 2ª Turma. REsp 1797465/SP, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 21/03/2019.

 

O legislador, de forma acertada, encampou o entendimento jurisprudencial acima explicado e, por meio da Lei nº 13.146/2015, inseriu o § 11 ao art. 20 da Lei nº 8.742/93 prevendo o seguinte:

Art. 20 (...)

§ 11. Para concessão do benefício de que trata o caput deste artigo, poderão ser utilizados outros elementos probatórios da condição de miserabilidade do grupo familiar e da situação de vulnerabilidade, conforme regulamento.

 

O que fez a Lei nº 13.981/2020 (publicada em 24/03/2020)?

Atualizou o § 3º do art. 20, aumentando a renda mensal per capita de 1/4 para 1/2 do salário-mínimo:

LEI Nº 8.742/93

Antes da Lei 13.981/2020

Depois da Lei 13.981/2020

Art. 20 (...)

§ 3º Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo.

Art. 20 (...)

§ 3º Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/2 (meio) salário-mínimo.

 

Vale ressaltar que o projeto que deu origem à Lei nº 13.981/2020 havia sido vetado pelo Presidente da República, mas o veto foi derrubado e a Lei foi promulgada pelo Congresso Nacional, entrando em vigor no dia 24/03/2020 (data de sua publicação).

Ocorre que a confusão não acabou aí.

No dia 02/04/2020 foi publicada a Lei nº 13.982/2020, que alterou novamente o § 3º do art. 20 da Lei nº 8.742/93.

Vamos entender.

 

O que previa o projeto aprovado que deu origem à Lei nº 13.982/2020?

§ 3º Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja:

I - igual ou inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo, até 31 de dezembro de 2020;

II - igual ou inferior a 1/2 (meio) salário-mínimo, a partir de 1º de janeiro de 2021.

 

Ocorre que esse inciso II foi vetado pelo Presidente da República. Logo, ficou só a redação do inciso I, com o critério de 1/4 do salário-mínimo e prazo final em 31/12/2020.

 

Vejamos a evolução histórica:

LEI 8.742/93

Critério objetivo de miserabilidade para fins de recebimento do BPC previsto no § 3º do art. 20

Redação dada pela

Lei 12.435/2011

Redação dada pela

Lei 13.981/2020

Redação dada pela

Lei 13.982/2020

Renda mensal per capita

inferior a 1/4 (um quarto) do SM

Renda mensal per capita inferior a 1/2 (meio) SM

Renda mensal per capita

igual ou inferior a 1/4 (um quarto) do SM até 31/12/2020

 

Lei nº 14.176/2021

A Lei nº 14.176/2021 (fruto da conversão da MP 1.023/2020) acrescentou novo capítulo a esse enredo, tendo alterado a redação do inciso I do § 3º do art. 20 da Lei nº 8.742/93 para dizer que:

· considera-se miserável, para fins do amparo assistencial, quem possuir renda mensal per capita igual ou inferior a 1/4 do salário-mínimo;

·  esse critério de 1/4 deve ser aplicado de forma indefinida (não apenas até 31/12/2020).

 

Essa é a redação atual do § 3º do art. 20 da Lei nº 8.742/93:

Art. 20. (...)

§ 3º Observados os demais critérios de elegibilidade definidos nesta Lei, terão direito ao benefício financeiro de que trata o caput deste artigo a pessoa com deficiência ou a pessoa idosa com renda familiar mensal per capita igual ou inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo.

 

Vejamos a evolução histórica atualizada sobre o tema:

LEI 8.742/93

Critério objetivo de miserabilidade para fins de recebimento do BPC

Redação dada pela

Lei 12.435/2011

Redação dada pela

Lei 13.981/2020

Redação dada pela

Lei 13.982/2020

Redação dada pela

Lei 14.176/2021

(MP 1023/2020)

Renda mensal per capita inferior a 1/4 (um quarto) do SM

Renda mensal per capita inferior a 1/2 (meio) SM

Renda mensal per capita igual ou inferior a 1/4 (um quarto) do SM até 31/12/2020

Renda mensal per capita igual ou inferior

a 1/4 (um quarto) do SM (sem termo final)

§ 3º Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo.

 

§ 3º Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/2 (meio) salário-mínimo.

§ 3º Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja:

I - igual ou inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo, até 31 de dezembro de 2020;

II - (VETADO).

§ 3º Observados os demais critérios de elegibilidade definidos nesta Lei, terão direito ao benefício financeiro de que trata o caput deste artigo a pessoa com deficiência ou a pessoa idosa com renda familiar mensal per capita igual ou inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo.

 

O que se entende por renda familiar mensal per capita? Como isso é calculado?

Normalmente, um assistente social vai até a residência da pessoa que está requerendo o benefício e faz entrevistas com ela e os demais moradores da casa, indagando sobre as fontes de renda de cada, verificando as condições estruturais do lar, os móveis e eletrodomésticos existentes no local etc.

Após isso, é elaborado um laudo social.

A renda familiar mensal per capita é calculada da seguinte forma: soma-se todos os rendimentos dos membros da família que moram na mesma casa que o requerente do benefício e depois divide-se esse valor pelo número de familiares (incluindo o requerente). Ex.: Carla (pessoa com deficiência) mora com seus pais (João e Maria) e mais um irmão (Lucas). João e Maria trabalham e ganham um salário-mínimo, cada. Cálculo da renda mensal per capita: 2 salários-mínimos divididos por 4 pessoas = 2:4. Logo, a renda mensal per capita será igual a 1/2 do salário-mínimo.

 

O que se entende por família?

Para os fins da renda familiar do LOAS, a família é composta pelo requerente, o cônjuge ou companheiro, os pais e, na ausência de um deles, a madrasta ou o padrasto, os irmãos solteiros, os filhos e enteados solteiros e os menores tutelados, desde que vivam sob o mesmo teto (art. 20, § 1º).

 

Exceção ao critério legal de 1/4 do salário-mínimo

O Poder Executivo federal poderá editar decreto ampliando esse limite de renda mensal familiar per capita para até 1/2 salário-mínimo. É o que prevê o § 11-A do art. 20 da Lei nº 8.742/93, inserido pela Lei nº 14.176/2021:

Art. 20 (...)

§ 11-A. O regulamento de que trata o § 11 deste artigo poderá ampliar o limite de renda mensal familiar per capita previsto no § 3º deste artigo para até 1/2 (meio) salário-mínimo, observado o disposto no art. 20-B desta Lei.

 

Obs: esse § 11-A somente entrará em vigor no dia 1º de janeiro de 2022. Além disso, a Lei nº 14.176/2021 condicionou à sua eficácia à edição de um Decreto pelo Presidente da República regulamentando o tema segundo as regras orçamentárias e de responsabilidade fiscal:

Art. 6º (...)

Parágrafo único. A ampliação do limite de renda mensal de 1/4 (um quarto) para até 1/2 (meio) salário-mínimo mensal, de que trata o § 11-A do art. 20 da Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, mediante a utilização de outros elementos probatórios da condição de miserabilidade e da situação de vulnerabilidade do grupo familiar, na forma do art. 20-B da referida Lei, fica condicionada a decreto regulamentador do Poder Executivo, em cuja edição deverá ser comprovado o atendimento aos requisitos fiscais.

 

A Lei nº 14.176/2021 acrescentou o art. 20-B prevendo aspectos que devem ser analisados para que possa haver a ampliação do critério de miserabilidade:

Art. 20-B.  Na avaliação de outros elementos probatórios da condição de miserabilidade e da situação de vulnerabilidade de que trata o § 11 do art. 20 desta Lei, serão considerados os seguintes aspectos para ampliação do critério de aferição da renda familiar mensal per capita de que trata o § 11-A do referido artigo:

I – o grau da deficiência;

II – a dependência de terceiros para o desempenho de atividades básicas da vida diária; e

III – o comprometimento do orçamento do núcleo familiar de que trata o § 3º do art. 20 desta Lei exclusivamente com gastos médicos, com tratamentos de saúde, com fraldas, com alimentos especiais e com medicamentos do idoso ou da pessoa com deficiência não disponibilizados gratuitamente pelo SUS, ou com serviços não prestados pelo Suas, desde que comprovadamente necessários à preservação da saúde e da vida.

§ 1º A ampliação de que trata o caput deste artigo ocorrerá na forma de escalas graduais, definidas em regulamento.

§ 2º Aplicam-se à pessoa com deficiência os elementos constantes dos incisos I e III do caput deste artigo, e à pessoa idosa os constantes dos incisos II e III do caput deste artigo.

§ 3º O grau da deficiência de que trata o inciso I do caput deste artigo será aferido por meio de instrumento de avaliação biopsicossocial, observados os termos dos §§ 1º e 2º do art. 2º da Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), e do § 6º do art. 20 e do art. 40-B desta Lei.

§ 4º O valor referente ao comprometimento do orçamento do núcleo familiar com gastos de que trata o inciso III do caput deste artigo será definido em ato conjunto do Ministério da Cidadania, da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia e do INSS, a partir de valores médios dos gastos realizados pelas famílias exclusivamente com essas finalidades, facultada ao interessado a possibilidade de comprovação, conforme critérios definidos em regulamento, de que os gastos efetivos ultrapassam os valores médios.

 

Obs: esse art. 20-B somente entrará em vigor no dia 1º de janeiro de 2022.

 

Critério vincula o INSS

Vale ressaltar que esse critério de 1/4 ou de 1/2 vincula apenas o INSS na concessão administrativa do benefício. Isso porque, segundo decidiu o STF, o Poder Judiciário, quando analisa a possibilidade ou não de concessão judicial do BPC está livre para se valer de outros parâmetros, não estando vinculado ao critério da renda per capita inferior a 1/4 (ou 1/2) do salário-mínimo previsto na Lei (STF. Plenário. RE 567985/MT e RE 580963/PR, red. p/ o acórdão Min. Gilmar Mendes, julgados em 17 e 18/4/2013).

 

Revisão periódica do BPC

Conforme vimos acima, o benefício de prestação continuada deve ser pago

- à pessoa com deficiência ou ao idoso com 65 anos ou mais

- desde que essa pessoa com deficiência ou esse idoso comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família.

Algumas vezes esses requisitos podem estar presentes no momento da concessão, no entanto, posteriormente, em razão de alterações fáticas supervenientes, eles deixam de existir. É o caso, por exemplo, de um casal que é pai de um filho com deficiência. No momento da concessão, os pais estavam desempregados. No entanto, posteriormente, a mãe foi aprovada em um concurso público e passou a receber uma remuneração com a qual pode prover o sustento da família. Assim, um dos requisitos para o benefício (situação de miserabilidade) deixou de existir.

Pode-se dizer, portanto, que a concessão e a manutenção do BPC obedecem à cláusula rebus sic stantibus, podendo o benefício ser cancelado se, posteriormente, um dos requisitos não mais estiver presente.

Pensando nisso, o legislador previu, no art. 21 da Lei nº 8.742/91, a necessidade de o INSS reanalisar, a cada dois anos, a situação do beneficiário do BPC a fim de verificar se ainda estão preenchidos os requisitos que levaram à concessão do benefício. Confira a redação legal:

Art. 20.  O benefício de prestação continuada é a garantia de um salário-mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família.

 

Nessa revisão periódica, o INSS pode cancelar um benefício assistencial que tenha sido concedido pela via judicial?

Para facilitar o entendimento, vou responder essa pergunta a partir da análise da seguinte situação hipotética:

João, alegando que possui deficiência visual, ingressou com requerimento administrativo no INSS pedindo a concessão de BPC.

O pedido foi negado pela autarquia.

Diante disso, ele propôs ação no Juizado Especial Federal, tendo sido concedido o benefício por meio de sentença judicial transitada em julgado.

João ficou recebendo o LOAS por dois anos, quando, então, foi chamado ao INSS para uma nova avaliação, conforme prevê o art. 21 da Lei nº 8.742/93 acima transcrito.

Nessa nova avaliação, o INSS percebeu que João teria sido recentemente aprovado em um concurso público e que, portanto, adquiriu meios de se sustentar. Por essa razão, após um processo administrativo no qual foram assegurados o contraditório e a ampla defesa, o INSS decidiu por cancelar o benefício.

Inconformado, João propôs nova ação no JEF, alegando que a decisão do INSS violou o “princípio do paralelismo das formas”.

 

O que significa esse princípio?

Princípio do paralelismo das formas é um postulado existente em diversos ramos do Direito e significa que uma situação jurídica somente pode ser extinta ou modificada por outro instrumento jurídico que ostente a mesma forma daquele que a criou.

O mesmo instrumento empregado para se instituir algo deve também ser utilizado para se extingui-lo.

É também chamado de homologia ou princípio da congruência das formas.

Assim, a tese de João foi a seguinte: o benefício foi concedido por decisão judicial; logo, ele somente poderá ser cancelado por decisão judicial (e nunca por decisão administrativa), sob pena de se estar violando o princípio do paralelismo das formas.

 

A tese é acolhida pelo STJ?

NÃO. O STJ tem entendimento consolidado no sentido de que:

O INSS pode suspender ou cancelar administrativamente o “benefício de prestação continuada” (LOAS) que havia sido concedido judicialmente, desde que garanta previamente ao interessado o contraditório e a ampla defesa.

Não se aplica, ao caso, o princípio do paralelismo das formas, que não é um princípio absoluto.

STJ. 2ª Turma. REsp 1.429.976-CE, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 18/2/2014 (Info 536).

 

Não se deve invocar o princípio do paralelismo das formas por quatro motivos:

1) a legislação previdenciária, que é muito prolixa, não faz essa exigência, não podendo o Poder Judiciário criar obstáculos ao INSS que não estejam previstos na lei;

2) essa exigência contraria a razoabilidade e a proporcionalidade, uma vez que o processo administrativo previdenciário, respeitado o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa, é suficiente para avaliar a suspensão/cancelamento do benefício. Além disso, nada impede que a parte lesada busque posterior revisão judicial;

3) a coisa julgada formada em favor do beneficiário possui natureza rebus sic stantibus, pois a imutabilidade dos efeitos da decisão transitada em julgado só persiste enquanto mantida a mesma situação fática;

4) a grande maioria dos benefícios de amparo assistencial acaba sendo concedida por meio de decisão judicial. Se fosse ser adotado o princípio do paralelismo das formas, isso acarretaria uma demanda excessiva sobre a Procuradoria Federal e o Poder Judiciário, além da necessidade de o beneficiário ter que buscar um advogado ou Defensor Público para se defender no processo judicial.

 

Assim, não é necessária a observância do princípio do paralelismo das formas nos casos de suspensão ou cancelamento de benefício previdenciário.

O que a jurisprudência do STJ exige é a concessão do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal sempre que houver necessidade de revisão do benefício previdenciário, por meio do processo administrativo previdenciário, impedindo, com isso, o cancelamento unilateral por parte da autarquia.

 

Esse entendimento jurisprudencial acima explicado foi reforçado pela Lei nº 14.176/2021, que acrescentou o § 5º ao art. 21 da Lei nº 8.742/93 prevendo:

Art. 21 (...)

§ 5º O beneficiário em gozo de benefício de prestação continuada concedido judicial ou administrativamente poderá ser convocado para avaliação das condições que ensejaram sua concessão ou manutenção, sendo-lhe exigida a presença dos requisitos previstos nesta Lei e no regulamento.

 

Avaliação da deficiência e grau de impedimento

A concessão do benefício assistencial ao deficiente ficará sujeita à avaliação da deficiência e do grau de impedimento de que trata o art. 20, § 2º, da Lei nº 8.742/93:

Art. 20 (...)

§ 2º Para efeito de concessão do benefício de prestação continuada, considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. (Redação dada pela Lei nº 13.146/2015)

 

O Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015) diz como deve ser feita a avaliação da deficiência. Confira o que ele diz:

Art. 2º (...)

§ 1º A avaliação da deficiência, quando necessária, será biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar e considerará:

I - os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo;

II - os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais;

III - a limitação no desempenho de atividades; e

IV - a restrição de participação.

 

Essa avaliação será feita por meio de “instrumentos” que serão ainda regulamentados em ato infralegal do Poder Executivo federal, conforme determinou o art. 2º, § 2º do Estatuto da Pessoa com Deficiência:

Art. 2º (...)

§ 2º O Poder Executivo criará instrumentos para avaliação da deficiência.

 

A Lei nº 14.176/2021 acrescentou o art. 40-B na Lei nº 8.742/93 tratando sobre o tema:

Art.  40-B. Enquanto não estiver regulamentado o instrumento de avaliação de que tratam os §§ 1º e 2º do art. 2º da Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), a concessão do benefício de prestação continuada à pessoa com deficiência ficará sujeita à avaliação do grau da deficiência e do impedimento de que trata o § 2º do art. 20 desta Lei, composta por avaliação médica e avaliação social realizadas, respectivamente, pela Perícia Médica Federal e pelo serviço social do INSS, com a utilização de instrumentos desenvolvidos especificamente para esse fim.

 

Cobrança administrativa de valores indevidamente recebidos pelo beneficiário

Se o beneficiário de BPC (art. 20 da Lei nº 8.742/93) ou de auxílio-inclusão (art. 26-A da Lei nº 8.742/93) receberem eventualmente algum valor a mais do que seria devido, a Lei nº 14.176/2021 autorizou que o INSS desconte esse valor do próprio benefício recebido mensalmente. Veja o artigo inserido na Lei nº 8.742/93:

Art. 40-C.  Os eventuais débitos do beneficiário decorrentes de recebimento irregular do benefício de prestação continuada ou do auxílio-inclusão poderão ser consignados no valor mensal desses benefícios, nos termos do regulamento. (acrescentado pela Lei nº 14.176/2021)

 

Regras excepcionais para análise da deficiência válidas até 31/12/2021

Os anos de 2020 e 2021 exigiram adaptações nos procedimentos administrativos em razão da pandemia decorrente da Covid-19. O legislador, atento a essa realidade, estabeleceu duas regras excepcionais e transitórias que serão aplicáveis à análise dos pedidos de BPC até 31/12/2021.

Confira o que diz o art. 3º da Lei nº 14.176/2021:

Art. 3º Para avaliação da deficiência que justifica o acesso, a manutenção e a revisão do benefício de prestação continuada de que trata o art. 20 da Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, fica o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) autorizado a adotar as seguintes medidas excepcionais, até 31 de dezembro de 2021:

I – realização da avaliação social, de que tratam o § 6º do art. 20 e o art. 40-B da Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, por meio de videoconferência; e

II – concessão ou manutenção do benefício de prestação continuada aplicado padrão médio à avaliação social, que compõe a avaliação da deficiência de que trata o § 6º do art. 20 da Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, desde que tenha sido realizada a avaliação médica e constatado o impedimento de longo prazo.

 

§ 1º É vedada a utilização da medida prevista no inciso II do caput deste artigo para indeferimento de requerimentos ou para cessação de benefícios.

§ 2º Os requisitos para aplicação das medidas previstas no caput deste artigo serão definidos em ato conjunto do Ministério da Cidadania, da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia e do INSS.

§ 3º O prazo de aplicação das medidas previstas no caput deste artigo poderá ser prorrogado mediante ato conjunto do Ministério da Cidadania, da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia e do INSS.

 

 

Márcio André Lopes Cavalcante

Juiz Federal

 

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