Dizer o Direito

sábado, 19 de junho de 2021

A inadimplência do usuário não afasta a incidência ou a exigibilidade do ICMS sobre serviços de telecomunicações

 

A situação concreta, com adaptações, foi a seguinte:

GVT era uma empresa que prestava serviços de telecomunicações (telefonia fixa, TV por assinatura e internet banda larga).

Quando a empresa presta serviços de telecomunicações, ela tem que pagar ICMS, tendo em vista que a CF/88 prevê essa espécie de serviço como sendo um dos fatos geradores do imposto:

Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:

(...)

II - operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;

 

No mesmo sentido é a LC 87/96 (Lei Kandir):

Art. 2º O imposto incide sobre:

(...)

III - prestações onerosas de serviços de comunicação, por qualquer meio, inclusive a geração, a emissão, a recepção, a transmissão, a retransmissão, a repetição e a ampliação de comunicação de qualquer natureza;

 

A GVT ajuizou ação explicando o seguinte:

- muitas vezes seus clientes/usuários não pagam as faturas de cobrança do serviço prestado (tornam-se inadimplentes) e frequentemente os contratos de prestação de serviços desses usuários são rescindidos;

- se isso acontece, ou seja, se há inadimplência do usuário, não ocorre o fato gerador do ICMS-comunicação por ausência do elemento onerosidade;

- a cobrança do ICMS, nestes casos, teria natureza confiscatória e atentaria contra o princípio da capacidade contributiva, pois se cobra o tributo sem que haja a manifestação de riqueza;

- também violaria o princípio da não cumulatividade tributária, pois, sendo o ICMS um tributo não-cumulativo, é direito do contribuinte de direito (autora) repassá-lo ao contribuinte de fato (usuário);

- em suma, a GVT defendeu que, em caso de inadimplência do usuário, não será devido o pagamento do ICMS sobre os serviços de telecomunicações.

 

O STF concordou com a tese da empresa?

NÃO. O STF decidiu que:

A inadimplência do usuário não afasta a incidência ou a exigibilidade do ICMS sobre serviços de telecomunicações.

STF. Plenário. RE 1003758/RO, Rel. Min. Marco Aurélio, redator do acórdão Min. Alexandre de Moraes, julgado em 14/5/2021 (Repercussão Geral – Tema 705) (Info 1017).

 

As vendas inadimplidas não podem ser excluídas da base de cálculo do tributo. Isso porque a inadimplência do consumidor final é um evento posterior e alheio e, portanto, não obsta a ocorrência do fato gerador do ICMS-comunicação, que já aconteceu.

Conforme previsto no inciso III do art. 2º da LC 87/96, o ICMS-comunicação incide sobre a prestação onerosa de serviços de comunicação. Assim, uma vez prestado o serviço de comunicação ao consumidor, de forma onerosa, já incidirá necessariamente o imposto, independentemente de a empresa ter efetivamente auferido receita com a realização do serviço.

Incabível o argumento da recorrente de que o inadimplemento retira o caráter oneroso da prestação, uma vez que a onerosidade é previamente estabelecida no contrato de prestação de serviços, de modo que é a prestação do serviço em si que a materializa, e não o posterior faturamento.

Desse modo, eventual inadimplemento do usuário gera crédito à empresa, o qual pode ser pleiteado tanto pela via administrativa quanto pela via judicial, mantendo-se incólume a onerosidade dos serviços já prestados.

Existem duas relações jurídicas distintas e independentes entre si, regidas por normas específicas:

· uma entre a empresa (contribuinte de direito) e o respectivo consumidor/usuário (contribuinte de fato) de natureza civil;

· e outra, de caráter estritamente tributário, entre a empresa (sujeito passivo) e o Fisco (sujeito ativo).

 

O inadimplemento da fatura é elemento estranho à ocorrência do fato gerador e nada interfere na obrigação tributária da recorrente em recolher o imposto em questão e repassá-lo ao Estado, obrigação esta que decorre da lei e não pode ser confundida com a obrigação contratual. Desse modo, o não pagamento das contas de energia pelos consumidores finais do serviço deverá ser resolvido em outra via, não sendo cabível ao Estado o ônus do inadimplemento.

Assim, não possui qualquer respaldo constitucional, sendo, portanto, absolutamente inadmissível, repassar ao Erário os riscos próprios da atividade econômica em face de eventual inadimplemento dos consumidores/usuários, a pretexto de fazer valer os princípios da não-cumulatividade, da capacidade contributiva e da vedação ao confisco.

A inadimplência do usuário não constitui excludente legal do tributo, de modo que admitir que as vendas inadimplidas pudessem ser excluídas da base de cálculo do ICMS implicaria violação direta ao princípio da legalidade tributária, bem como ao disposto no art. 150, § 6º, e art. 155, § 2º, XII, g, da Constituição Federal:

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

(...)

§ 6º Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2.º, XII, g.

 

Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:

(...)

§ 2º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:

(...)

XII - cabe à lei complementar:

(...)

g) regular a forma como, mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados.

 

Se o pedido da autora fosse acolhido, o STF estaria atuando como legislador positivo, modificando as normas tributárias inerentes ao ICMS para instituir benefício fiscal em favor dos contribuintes, o que ensejaria violação também ao princípio da separação dos Poderes. 


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