Dizer o Direito

quinta-feira, 29 de abril de 2021

O entendimento exposto na súmula 347 do STF ainda prevalece ou está superado?

  

Súmula 347-STF: O Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do poder público.

 

· Existe divergência se essa súmula está superada.

· Manifestaram-se expressamente pela superação da súmula: Ministros Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes.

· Manifestaram-se expressamente pela manutenção da súmula: Ministros Roberto Barroso e Edson Fachin.

· A Min. Rosa Weber afirmou que o Tribunal de Constas pode “pelo voto da maioria absoluta de seus membros, afaste a aplicação concreta de dispositivo legal reputado inconstitucional, quando em jogo matéria pacificada nesta Suprema Corte”.

 

Veja abaixo o um resumo dos argumentos dos Ministros Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes apontando as razões pelas quais o entendimento estaria superado:

 

Não cabe ao Tribunal de Contas, que não tem função jurisdicional, exercer o controle de constitucionalidade de leis ou atos normativos nos processos sob sua análise

O Tribunal de Contas é órgão técnico de fiscalização contábil, financeira e orçamentária, que tem suas competências delimitadas pelo art. 71 da Constituição Federal.

Compete ao Tribunal de Contas exercer na plenitude todas as suas competências administrativas, sem obviamente poder usurpar o exercício da função de outros órgãos, inclusive a função jurisdicional de controle de constitucionalidade. Esse mesmo raciocínio se aplica para outros órgãos administrativos, como o Banco Central, o CADE, as Agências Reguladoras, o CNJ, o CNMP, o CARF. Todos eles também estão impedidos de realizar controle de constitucionalidade.

 

Permitir que o Tribunal de Contas faça controle de constitucionalidade acarretaria triplo desrespeito à Constituição

Ao declarar incidentalmente a inconstitucionalidade de dispositivos de lei aos casos concretos submetidos à sua apreciação, o Tribunal de Contas, na prática, retira a eficácia da lei e acaba determinando aos órgãos da administração pública federal que deixem de aplicá-la aos demais casos idênticos, extrapolando os efeitos concretos e entre as partes de suas decisões. Isso faz com que ocorra um triplo desrespeito à Constituição Federal, tendo em vista que essa postura atenta contra:

· o Poder Legislativo (que edita as leis);

· o Poder Judiciário (que detém as competências jurisdicionais);

· o Supremo Tribunal Federal (que possui a missão de declarar constitucional ou inconstitucional as leis ou atos normativos, de forma geral e vinculante).

 

A declaração incidental de inconstitucionalidade somente é permitida de maneira excepcional aos juízes e tribunais para o pleno exercício de suas funções jurisdicionais, devendo o magistrado garantir a supremacia das normas constitucionais ao solucionar, de forma definitiva, o caso concreto posto em

juízo. Trata-se, portanto, de excepcionalidade concedida somente aos órgãos exercentes de função jurisdicional, aceita pelos mecanismos de freios e contrapesos existentes na separação de poderes e não extensível a qualquer outro órgão administrativo.

 

Impossibilidade de transcendência dos efeitos do controle difuso

Vale ressaltar que a possibilidade de exercício do controle de constitucionalidade pelo TCU é mais grave do que somente a configuração de usurpação de função jurisdicional por órgão administrativo. Isso porque os efeitos dessa decisão da Corte de Contas poderiam ser estendidos para todos os procedimentos administrativos no âmbito da Administração Pública.

Explicando melhor: o controle difuso exercido administrativamente pelo Tribunal de Contas traria consigo a transcendência dos efeitos, pois, na maioria das vezes, ao declarar a inconstitucionalidade ou, eufemisticamente, afastar incidentalmente a aplicação de uma lei federal, o TCU não só estaria julgando o caso concreto, mas também acabaria determinando aos órgãos de administração que deixassem de aplicar essa mesma lei para todos os demais casos idênticos, extrapolando os efeitos concretos e interpartes e tornando-os erga omnes e vinculantes no âmbito daquele tribunal.

A decisão do TCU configuraria, portanto, além de exercício não permitido de função jurisdicional, clara hipótese de transcendência dos efeitos do controle difuso, com usurpação cumulativa das competências constitucionais exclusivas tanto do STF (controle abstrato de constitucionalidade – art. 102, I, “a”, da CF/88), quanto do Senado Federal (mecanismo de ampliação dos efeitos da declaração incidental de inconstitucionalidade – art. 52, X, da CF/88).

Assim, se o TCU decide que é inconstitucional a lei que concedeu determinada gratificação a servidor público federal, na prática, essa decisão tem efeitos erga omnes e vinculantes no âmbito da Administração Pública federal. Logo, na prática, o TCU estaria retirando essa lei do ordenamento jurídico.

Haveria, portanto, a transcendência dos efeitos do controle difuso, instituto que o STF não admite nem mesmo para as suas próprias decisões (Reclamação 4.335/AC). Assim, a transcendência dos efeitos do controle difuso não é admitida em nosso ordenamento jurídico constitucional nem mesmo em âmbito jurisdicional, quanto mais em âmbito administrativo.

 

Ofensa ao papel do STF de guardião da Constituição

Aceitar a possibilidade de exercício de controle difuso pelo Tribunal de Contas da União seria reconhecer substancial e inconstitucional acréscimo à sua competência de controle da atividade administrativa e financeira da administração pública federal, quando o próprio legislador constituinte de 1988 não o fez.

Ademais, isso representaria ofensa à missão constitucional conferida ao STF de “Guardião da Constituição”.

 

Um breve histórico sobre o enunciado

A súmula 343 foi aprovada em 13/12/1963, em contexto constitucional totalmente diferente do atual.

Até o advento da Emenda Constitucional 16, de 1965, que introduziu em nosso sistema o controle abstrato de normas, admitia-se como legítima a recusa, por parte de órgãos não jurisdicionais, da aplicação de lei considerada inconstitucional.

A introdução do controle abstrato, em 1965, representou uma alteração relevante no sistema de controle de constitucionalidade. A Constituição de 1988, por sua vez, introduziu mudança radical no nosso sistema de controle de constitucionalidade.

A Constituição de 1988 reduziu o significado do controle de constitucionalidade incidental ou difuso ao ampliar, de forma marcante, a legitimação para propositura da ação direta de inconstitucionalidade (art. 103), permitindo que praticamente todas as controvérsias constitucionais relevantes sejam submetidas ao STF mediante processo de controle abstrato de normas.

Ao ampliar, de forma significativa, os legitimados para o controle abstrato de leis e atos normativos, o constituinte acabou por restringir a amplitude e relevância do controle difuso de constitucionalidade.

A ampla legitimação, a presteza e a celeridade para que foi pensado esse modelo processual, dotado inclusive da possibilidade de se suspender imediatamente a eficácia do ato normativo questionado mediante pedido de cautelar, fazem com que as grandes questões constitucionais sejam solvidas, na sua maioria, mediante a utilização da ação direta, típico instrumento do controle concentrado.

Esse sensível incremento do controle abstrato de constitucionalidade, inclusive com efeito vinculante e eficácia contra todos, gera a conclusão de que se tornou desnecessário que o sistema de controle difuso de constitucionalidade extrapole a esfera do Judiciário. Não é mais necessário, como ocorria antes da EC 16/1965 e, principalmente, depois da CF/88, que os órgãos não jurisdicionais recusem a aplicação de lei considerada inconstitucional.

STF. Plenário. MS 35410, Rel. Min. Alexandre de Moraes, julgado em 12/04/2021.

 

 

Palavras do Min. Roberto Barroso:

“1. Acompanho o relator para assentar a impossibilidade de exercício de controle de constitucionalidade com efeitos erga omnes e vinculantes pelo Tribunal de Contas da União – TCU. Reconheço também que – pela estrutura decisória do acórdão proferido no processo TC 021.009/2017-1 e pelas características daquele procedimento, que não tratava de nenhum caso concreto – o controle de constitucionalidade ali exercido pelo TCU teve efeitos transcendentes e equivaleu ao afastamento da eficácia dos arts. 7º, §§ 2º e 3º, e 17 da Lei nº 13.464/2017. Trata-se,

portanto, de provimento vedado pela Constituição.

2. Ressalvo, contudo, minha discordância em relação ao primeiro dos dois fundamentos expostos no voto do relator, como tenho feito nas demais ações em que se discute a possibilidade de controle incidental de constitucionalidade por órgãos administrativos. Toda autoridade administrativa de nível superior pode, a meu ver, incidentalmente declarar a inconstitucionalidade de lei, desde que limitada ao caso concreto. No presente caso, considerando que tal restrição de efeitos não foi observada, voto igualmente pelo afastamento.”

 

Palavras do Min. Edson Fachin:

“E, de fato, não parece desbordar de sua competência que a Corte de Contas verifique a compatibilidade dos atos administrativo submetidos à sua análise, com o ordenamento jurídico-constitucional brasileiro.

Aqui, entendo ser aplicável o mesmo entendimento já expresso por este Supremo Tribunal Federal no que concerne às competência do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, em especial no julgamento da PET 4.656/PB (Relatora Ministra Cármen Lúcia, Plenário, julgamento em 19.12.2016), em que se distinguiu a não aplicação da lei reputada inconstitucional e a declaração de sua inconstitucionalidade, reconhecendo a competência do órgão correicional para, uma vez concluída a apreciação da inconstitucionalidade de determinado diploma normativo, determinar a inaplicabilidade de ato administrativo regulamentador da lei inconstitucional.

(...)

Desta feita, esta Corte assentou na oportunidade a diferenciação entre declaração de inconstitucionalidade, com efeitos erga omnes, e possibilidade de não aplicação da norma no caso concreto, não excluindo a norma do ordenamento jurídico, reconhecendo a órgãos como CNJ, CNMP e TCU a competência para a última hipótese, no estrito exercício de seu mister.

(...)

Assim, inexistindo razão para a superação do entendimento esposado na Pet 4656, compreendo que a mesma ratio deve ser aplicada na hipótese presente, reconhecendo ao Tribunal de Contas a possibilidade de, por maioria absoluta de seus membros, no desempenho de suas competências constitucionais, deixar de aplicar em caso concreto lei que considere flagrantemente inconstitucional, mantendo-se hígida a redação da Súmula 347 do STF.”

 

Palavras da Min. Rosa Weber:

“Considero que a ordem jurídica inaugurada pela Carta de 1988 não permite ao Tribunal de Contas da União a fiscalização da validade de lei em caráter abstrato, apenas possibilita que aquele órgão de controle, pelo voto da maioria absoluta de seus membros, afaste a aplicação concreta de dispositivo legal reputado inconstitucional, quando em jogo matéria pacificada nesta Suprema Corte.”

 

Demais Ministros: 

O Min. Marco Aurélio votou em sentido contrário ao Min. Alexandre de Moraes, ou seja, mantendo a higidez da Súmula.

Os demais Ministros acompanharam o voto do Min. Alexandre de Moraes sem fazer ressalvas, ou seja, em tese, concordaram com os argumentos do Relator.

 


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