Dizer o Direito

quarta-feira, 7 de abril de 2021

É possível obter salvo-conduto em habeas corpus autorizando o cultivo doméstico de maconha para fins medicinais?

  

A situação concreta, com adaptações, foi a seguinte:

Marta apresenta quadro grave de Epilepsia Refratária. Essa condição a faz ter dezenas de crises epilépticas diárias, além de ter sensibilidade extrema a ruídos, o que a impede de levar uma vida normal.

Diante da ineficiência dos tratamentos convencionais, Marta passou a fazer uso do óleo de canabidiol (CBD Oil – um dos princípios ativos da maconha) para fins terapêuticos, o que resultou em expressiva melhora no seu quadro de saúde, controlando suas crises epilépticas, trazendo avanços significativos em sua qualidade de vida.

Marta faz a importação legalizada do óleo que contém canadibiol, no entanto, o processo é burocrático e caro, o que tem dificultado a continuidade do tratamento prescrito.

 

Habeas corpus preventivo

Diante desse cenário, Marta impetrou habeas corpus preventivo pedindo para obter salvo-conduto para que ela fosse autorizada a importar sementes de maconha e a realizar o cultivo da maconha e a extração doméstica do óleo, por ser essa a melhor forma de prosseguir com o tratamento.

O Tribunal Regional Federal da 4ª Região concedeu parcialmente a ordem e:

a) permitiu a importação das sementes de maconha;

b) no entanto, negou a autorização para o plantio.

 

Inconformada porque não obteve o segundo pleito, Marta interpôs recurso ordinário dirigido ao STJ reiterando o pedido de salvo-conduto para que ela possa cultivar a cannabis em casa a fim de extrair o óleo medicinal.

 

O que decidiu o STJ? O pedido da recorrente foi acolhido?

NÃO. Vamos entender com calma.

 

Atipicidade da importação de pequenas sementes de maconha

Inicialmente, é importante registrar que o STF e o STJ consideram que é atípica a conduta de importar pequena quantidade de sementes de maconha:

É atípica a conduta de importar pequena quantidade de sementes de maconha.

STJ. 3ª Seção. EREsp 1624564-SP, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 14/10/2020 (Info 683).

STF. 2ª Turma. HC 144161/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 11/9/2018 (Info 915).

 

Por quê?

Tetrahidrocanabinol, também conhecido como THC, é uma substância psicoativa encontrada na planta Cannabis Sativa, mais popularmente conhecida como maconha.

A THC é prevista expressamente como droga na Portaria SVS/MS nº 344/1998, da ANVISA.

Logo, a planta Cannabis Sativa é droga porque possui THC.

As sementes da maconha (tecnicamente falando: os frutos aquênios da cannabis sativa linneu) não apresentam THC na sua composição. Por isso, as sementes da maconha não se enquadram no conceito de droga.

· Maconha tem THC. É droga.

· Semente de maconha não tem THC. Não é droga.

 

Assim, o entendimento jurisprudencial firmado nos Tribunais Superiores pode ser resumido da seguinte forma: a conduta de importar pequenas quantidades de sementes de maconha não se adequa formalmente ao tipo descrito no art. 33 da Lei de Drogas e não se ajusta materialmente a outros tipos penais, como, por exemplo, o art. 334-A do Código Penal, em razão do princípio da insignificância.

 

Eficácia da terapia canábica no tratamento de doenças e sua regulamentação no Brasil

Existem inúmeros estudos científicos que comprovam a eficácia da chamada terapia com Cannabis no tratamento de algumas doenças, como a epilepsia e a paralisia cerebral.

As propriedades medicinais da maconha são conhecidas há mais de dois mil anos e a planta tem sido usada para diversos fins.

Mais recentemente, ampliaram-se os estudos relativos ao emprego de componentes extraídos da maconha para o controle de convulsões em pacientes portadores de epilepsia refratária e outros distúrbios de natureza neurológica assemelhados.

O Conselho Federal de Medicina, inclusive, já regulamentou o uso de canabidiol no tratamento da epilepsia por meio da Resolução nº 2.113/2014.

No plano internacional, tem-se vislumbrado alguns acenos na direção de diminuir os entraves ao uso terapêutico da maconha, seja pela aprovação de medicamentos contendo canabidiol e THC, seja permitindo o cultivo da planta e a manufatura de óleos e produtos contendo essas substâncias.

O tema está em análise do STF, na ADI 5.708/DF, ainda não julgada.

Também há debates no Congresso Nacional, onde tramitam inúmeros projetos de lei sobre o tema.

O STJ, no Resp 1.657.075/PE, autorizou, por via transversa, a importação de medicamento contendo canabidiol para paciente portadora de paralisia cerebral grave.

Antes disso, a ANVISA já havia classificado a maconha como planta medicinal (RDC 130/2016) e incluiu medicamentos à base de canabidiol e THC que contenham até 30mg/ml de cada uma dessas substâncias na lista A3 da Portaria n. 344/1998, de modo que a prescrição passou a ser autorizada por meio de Notificação de Receita A e de Termo de Consentimento Informado do Paciente.

O cenário, portanto, se encaminha para a regulamentação do uso de produtos medicinais elaborados partir de maconha.

 

Ausência de autorização legislativa

A despeito de todo esse movimento nacional e internacional, o certo é que ainda não existe, no Brasil, autorização legislativa para o plantio de maconha para fins medicinais.

Diante da falta de regulamentação, a ANVISA tem adotado providências no sentido de permitir o acesso a produtos obtidos a partir da maconha aos pacientes que deles necessitam.

O procedimento, no entanto, é extremamente burocrático e caro, o que, na prática, inviabiliza o acesso ao medicamento da maneira necessária para garantir a continuidade e a eficácia do tratamento.

 

Impossibilidade de atender ao pedido em habeas corpus

O STJ afirmou que está ciente da relevância do tema e sensibilizado pela situação, no entanto, apesar disso, entendeu que não era possível atender o pleito formulado, especialmente considerando a estreiteza cognitiva do habeas corpus e a própria competência do Tribunal.

A concessão de autorização para o cultivo de maconha depende de critérios técnicos cujo estudo refoge à competência do juízo criminal, que não pode se imiscuir em temas cuja análise incumbe aos órgãos de vigilância sanitária. Isso porque uma decisão desse tipo depende de estudo de diversos elementos relativos à extensão do cultivo, número de espécimes suficientes para atender à necessidade da recorrente, mecanismos de controle da produção do medicamento, dentre outros fatores, cujo exame escapa ao conjunto de competências técnicas do magistrado.

Essa incumbência está a cargo da ANSIVA que, diante das peculiaridades do caso concreto, poderá autorizar ou não o cultivo e colheita de plantas das quais se possam extrair as substâncias necessárias para a produção artesanal dos medicamentos. Aliás, a própria ANVISA já regulamenta esse tipo de atividade no âmbito industrial, por meio da RDC n. 16, de 1º de abril de 2014, podendo aplicar esses critérios, de forma extensiva, ao cultivo doméstico, caso as demais condições técnicas sejam atendidas.

Portanto, a melhor solução é, inicialmente, submeter a questão ao exame da autarquia responsável pela vigilância sanitária e, em caso de demora ou de negativa, apresentar o tema ao Poder Judiciário, devendo o pleito ser direcionado à jurisdição cível competente.

 

Em suma:

É incabível salvo-conduto para o cultivo da cannabis visando a extração do óleo medicinal, ainda que na quantidade necessária para o controle da epilepsia, posto que a autorização fica a cargo da análise do caso concreto pela ANVISA.

STJ. 5ª Turma. RHC 123.402-RS, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 23/03/2021 (Info 690).

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