A situação concreta, com
adaptações, foi a seguinte:
Marta apresenta quadro grave de
Epilepsia Refratária. Essa condição a faz ter dezenas de crises epilépticas
diárias, além de ter sensibilidade extrema a ruídos, o que a impede de levar
uma vida normal.
Diante da ineficiência dos
tratamentos convencionais, Marta passou a fazer uso do óleo de canabidiol (CBD
Oil – um dos princípios ativos da maconha) para fins terapêuticos, o que
resultou em expressiva melhora no seu quadro de saúde, controlando suas crises
epilépticas, trazendo avanços significativos em sua qualidade de vida.
Marta faz a importação legalizada
do óleo que contém canadibiol, no entanto, o processo é burocrático e caro, o
que tem dificultado a continuidade do tratamento prescrito.
Habeas corpus preventivo
Diante desse cenário, Marta
impetrou habeas corpus preventivo pedindo para obter salvo-conduto para que ela
fosse autorizada a importar sementes de maconha e a realizar o cultivo da
maconha e a extração doméstica do óleo, por ser essa a melhor forma de
prosseguir com o tratamento.
O Tribunal Regional Federal da 4ª
Região concedeu parcialmente a ordem e:
a) permitiu a importação das
sementes de maconha;
b) no entanto, negou a autorização
para o plantio.
Inconformada porque não obteve o
segundo pleito, Marta interpôs recurso ordinário dirigido ao STJ reiterando o
pedido de salvo-conduto para que ela possa cultivar a cannabis em casa a fim de
extrair o óleo medicinal.
O que decidiu o STJ? O
pedido da recorrente foi acolhido?
NÃO. Vamos entender com calma.
Atipicidade da importação
de pequenas sementes de maconha
Inicialmente, é importante
registrar que o STF e o STJ consideram que é atípica a conduta de importar pequena
quantidade de sementes de maconha:
É atípica a conduta de importar pequena quantidade de sementes
de maconha.
STJ. 3ª Seção. EREsp 1624564-SP, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado
em 14/10/2020 (Info 683).
STF. 2ª Turma.
HC 144161/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 11/9/2018 (Info 915).
Por quê?
Tetrahidrocanabinol, também
conhecido como THC, é uma substância psicoativa encontrada na planta Cannabis
Sativa, mais popularmente conhecida como maconha.
A THC é prevista expressamente
como droga na Portaria SVS/MS nº 344/1998, da ANVISA.
Logo, a planta Cannabis Sativa é
droga porque possui THC.
As
sementes da maconha (tecnicamente falando: os frutos aquênios da cannabis
sativa linneu) não apresentam THC na sua composição. Por isso, as sementes
da maconha não se enquadram no conceito de droga.
·
Maconha tem THC. É droga.
·
Semente de maconha não tem THC. Não é droga.
Assim, o entendimento
jurisprudencial firmado nos Tribunais Superiores pode ser resumido da seguinte
forma: a conduta de importar pequenas quantidades de sementes de maconha não se
adequa formalmente ao tipo descrito no art. 33 da Lei de Drogas e não se ajusta
materialmente a outros tipos penais, como, por exemplo, o art. 334-A do Código
Penal, em razão do princípio da insignificância.
Eficácia da terapia
canábica no tratamento de doenças e sua regulamentação no Brasil
Existem inúmeros estudos
científicos que comprovam a eficácia da chamada terapia com Cannabis no
tratamento de algumas doenças, como a epilepsia e a paralisia cerebral.
As propriedades medicinais da
maconha são conhecidas há mais de dois mil anos e a planta tem sido usada para
diversos fins.
Mais recentemente, ampliaram-se
os estudos relativos ao emprego de componentes extraídos da maconha para o
controle de convulsões em pacientes portadores de epilepsia refratária e outros
distúrbios de natureza neurológica assemelhados.
O Conselho Federal de Medicina,
inclusive, já regulamentou o uso de canabidiol no tratamento da epilepsia por
meio da Resolução nº 2.113/2014.
No plano internacional, tem-se
vislumbrado alguns acenos na direção de diminuir os entraves ao uso terapêutico
da maconha, seja pela aprovação de medicamentos contendo canabidiol e THC, seja
permitindo o cultivo da planta e a manufatura de óleos e produtos contendo
essas substâncias.
O tema está em análise do STF, na
ADI 5.708/DF, ainda não julgada.
Também há debates no Congresso
Nacional, onde tramitam inúmeros projetos de lei sobre o tema.
O STJ, no Resp 1.657.075/PE,
autorizou, por via transversa, a importação de medicamento contendo canabidiol
para paciente portadora de paralisia cerebral grave.
Antes disso, a ANVISA já havia
classificado a maconha como planta medicinal (RDC 130/2016) e incluiu
medicamentos à base de canabidiol e THC que contenham até 30mg/ml de cada uma
dessas substâncias na lista A3 da Portaria n. 344/1998, de modo que a
prescrição passou a ser autorizada por meio de Notificação de Receita A e de
Termo de Consentimento Informado do Paciente.
O cenário, portanto, se encaminha
para a regulamentação do uso de produtos medicinais elaborados partir de
maconha.
Ausência de autorização
legislativa
A despeito de todo esse movimento
nacional e internacional, o certo é que ainda não existe, no Brasil,
autorização legislativa para o plantio de maconha para fins medicinais.
Diante da falta de
regulamentação, a ANVISA tem adotado providências no sentido de permitir o
acesso a produtos obtidos a partir da maconha aos pacientes que deles
necessitam.
O procedimento, no entanto, é
extremamente burocrático e caro, o que, na prática, inviabiliza o acesso ao
medicamento da maneira necessária para garantir a continuidade e a eficácia do
tratamento.
Impossibilidade de atender
ao pedido em habeas corpus
O STJ afirmou que está ciente da
relevância do tema e sensibilizado pela situação, no entanto, apesar disso, entendeu
que não era possível atender o pleito formulado, especialmente considerando a
estreiteza cognitiva do habeas corpus e a própria competência do Tribunal.
A concessão de autorização para o
cultivo de maconha depende de critérios técnicos cujo estudo refoge à
competência do juízo criminal, que não pode se imiscuir em temas cuja análise incumbe
aos órgãos de vigilância sanitária. Isso porque uma decisão desse tipo depende
de estudo de diversos elementos relativos à extensão do cultivo, número de
espécimes suficientes para atender à necessidade da recorrente, mecanismos de
controle da produção do medicamento, dentre outros fatores, cujo exame escapa
ao conjunto de competências técnicas do magistrado.
Essa incumbência está a cargo da
ANSIVA que, diante das peculiaridades do caso concreto, poderá autorizar ou não
o cultivo e colheita de plantas das quais se possam extrair as substâncias
necessárias para a produção artesanal dos medicamentos. Aliás, a própria ANVISA
já regulamenta esse tipo de atividade no âmbito industrial, por meio da RDC n.
16, de 1º de abril de 2014, podendo aplicar esses critérios, de forma
extensiva, ao cultivo doméstico, caso as demais condições técnicas sejam atendidas.
Portanto, a melhor solução é,
inicialmente, submeter a questão ao exame da autarquia responsável pela
vigilância sanitária e, em caso de demora ou de negativa, apresentar o tema ao
Poder Judiciário, devendo o pleito ser direcionado à jurisdição cível
competente.
Em suma:
É
incabível salvo-conduto para o cultivo da cannabis visando a extração do óleo
medicinal, ainda que na quantidade necessária para o controle da epilepsia,
posto que a autorização fica a cargo da análise do caso concreto pela ANVISA.
STJ. 5ª Turma. RHC 123.402-RS, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca,
julgado em 23/03/2021 (Info 690).