A Administração Pública pode anular
seus próprios atos quando estes forem ilegais?
SIM. Trata-se do princípio da autotutela
(ou poder de autotutela), segundo o qual a Administração tem o poder-dever de
controlar seus próprios atos, com a possibilidade de anular aqueles que forem
ilegais e revogar os que se mostrarem inconvenientes ou inoportunos, sem
precisar recorrer ao Poder Judiciário.
Existem duas súmulas do STF que preveem
esse princípio:
Súmula 346-STF: A administração pública
pode declarar a nulidade dos seus próprios atos.
Súmula 473-STF: A administração pode
anular os seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais,
porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência
ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os
casos, a apreciação judicial.
Necessidade de garantir contraditório e
ampla defesa para se realizar a autotutela
Vale ressaltar que a prerrogativa de a
Administração Pública controlar seus próprios atos não prescinde (não dispensa)
a instauração de processo administrativo no qual sejam assegurados o
contraditório e a ampla defesa. Assim, a Administração deve dar oportunidade ao
interessado para que ele se manifeste sobre a ilegalidade que foi, a princípio,
detectada:
A Administração, à luz do princípio da
autotutela, tem o poder de rever e anular seus próprios atos, quando detectada
a sua ilegalidade, consoante reza a Súmula 473/STF. Todavia, quando os
referidos atos implicam invasão da esfera jurídica dos interesses individuais
de seus administrados, é obrigatória a instauração de prévio processo
administrativo, no qual seja observado o devido processo legal e os corolários
da ampla defesa e do contraditório.
STJ. 1ª Turma. AgInt no AgRg no AREsp
760.681/SC, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 03/06/2019.
É necessária a prévia instauração de
procedimento administrativo, assegurados o contraditório e a ampla defesa,
sempre que a Administração, exercendo seu poder de autotutela, anula atos
administrativos que repercutem na esfera de interesse do administrado.
STF. 1ª Turma. RE 946481 AgR, Rel. Min.
Roberto Barroso, julgado em 18/11/2016.
Ao Estado é facultada a revogação de
atos que repute ilegalmente praticados; porém, se de tais atos já decorreram
efeitos concretos, seu desfazimento deve ser precedido de regular processo
administrativo. STF. Plenário. RE 594296, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em
21/09/2011 (repercussão geral).
Lei nº 9.784/99 e prazo decadencial
para o exercício da autotutela
A Lei nº
9.784/99 regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública
Federal. Esta Lei prevê expressamente a possibilidade de o Poder Público
exercer a autotutela:
Art. 53. A Administração deve anular seus
próprios atos, quando eivados de vício de legalidade, e pode revogá-los por
motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos.
Logo em seguida, a Lei nº 9.784/99
estabelece um prazo decadencial para a revisão de atos administrativos no
âmbito da Administração Pública federal, ou seja, um prazo para o exercício da
autotutela.
Qual
o prazo de que dispõe a Administração Pública federal para anular um ato administrativo ilegal? |
|
Regra |
5 anos, contados da data em que o ato
foi praticado. |
Exceção 1 |
Em caso de má-fé. Se ficar comprovada a má-fé, não
haverá prazo, ou seja, a Administração Pública poderá anular o ato administrativo
mesmo que já tenha se passado mais de 5 anos. |
Exceção 2 |
Em caso de afronta direta à
Constituição Federal. O prazo decadencial de 5 anos do art.
54 da Lei nº 9.784/99 não se aplica quando o ato a ser anulado afronta
diretamente a Constituição Federal. Trata-se de exceção construída pela
jurisprudência do STF. Não há previsão na lei desta exceção 2. STF. Plenário. MS 26860/DF, Rel. Min.
Luiz Fux, julgado em 2/4/2014 (Info 741). |
O prazo
decadencial para a revisão dos atos administrativos no âmbito da Administração
Pública federal está previsto no art. 54 da Lei nº 9.784/99:
Art. 54. O direito da Administração de
anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os
destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo
comprovada má-fé.
Inconstitucionalidade da Lei estadual
que preveja prazo de 10 anos
A Lei estadual nº 10.177/98, do Estado
de São Paulo, regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública
estadual.
O art. 10, I, dessa Lei prevê que o prazo decadencial para a
anulação dos atos administrativos no Estado de São Paulo é de 10 anos:
Art. 10. A Administração anulará seus atos inválidos, de ofício ou por
provocação de pessoa interessada, salvo quando:
I - ultrapassado o prazo de 10 (dez) anos contado de sua produção;
(...)
Foi proposta ADI contra essa previsão
sob o argumento de que a norma violaria:
· a competência
privativa da União para legislar sobre direito civil (art. 22, I, da CF/88) e
sobre contratos administrativos (art. 22, XXVII);
· os
princípios da razoabilidade e proporcionalidade.
Essa lei estadual usurpou competência
privativa da União?
NÃO. Essa lei, na verdade, está inserida
na competência constitucional dos Estados-membros para legislar sobre direito
administrativo (art. 25, § 1º, CF/88).
A forma federativa de Estado adotada
pela Constituição não admite que seja editada uma lei nacional sobre processo administrativo.
Isso afrontaria a autonomia dos entes federativos.
Cada ente possui autonomia para estruturar
a sua organização e a sua forma de atuação (art. 25, CF/88).
Desse modo, Estados e Municípios podem
editar leis dizendo como será o processo administrativo na Administração
Pública estadual ou municipal.
Em outras palavras, assim como a União editou
a Lei nº 9.784/99, Estados e Municípios também podem editar suas próprias leis
de processo administrativo.
Logo, o art. 10, I, da lei paulista não
invadiu competência privativa da União.
Essa previsão de 10 anos da lei
paulista violou o princípio da segurança jurídica?
NÃO. O prazo decadencial de 10 anos não
tem o potencial de causar, por si só, insegurança jurídica apta a invalidar a
norma em controle de constitucionalidade. Trata-se de lapso temporal amplamente
utilizado no direito brasileiro em outras hipóteses relevantes, tais como: (i)
prazo prescricional geral do Código Civil (art. 205 do CC); (ii) prazo para
revisão de benefícios previdenciários do Regime Geral de Previdência Social –
RGPS (art. 103 da Lei nº 8.213/91); e (iii) prazo para ajuizamento de ações de indenização
por desapropriação indireta na hipótese em que o Poder Público tenha realizado
obras no local ou atribuído natureza de utilidade pública ou de interesse
social ao imóvel (Tema 1019 do STJ).
Essa previsão de 10 anos da lei
paulista violou os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade?
Também NÃO.
O prazo decadencial previsto no
dispositivo contestado não é arbitrário ou desproporcional, sendo fruto de
ponderação legislativa razoável, tendo em vista o potencial de dano ao
interesse público pela convalidação de atos e contratos administrativos
contrários à lei e à Constituição e a necessidade de se estipular um prazo
legal para o exercício do poder de autotutela administrativa, sob pena de
frustração das legítimas expectativas dos particulares na constância e
estabilidade da atuação do Poder Público.
Isso significa que o prazo de 10 anos
para autotutela previsto na lei paulista é constitucional?
NÃO. O STF afirmou que a previsão é
inconstitucional, no entanto, com base em um outro argumento não invocado pela
autora da ADI: violação ao princípio da igualdade.
O prazo de 5 anos, previsto na Lei nº 9.784/99
consolidou-se como marco temporal geral nas relações entre o Poder Público e particulares.
Como exemplos, podemos citar o art. 1º do Decreto nº 20.910/1932 e o art. 173
do CTN.
A maioria dos Estados-membros aplica o
prazo quinquenal para anulação de atos administrativos, seja por previsão em lei
própria ou por aplicação analógica do art. 54 da Lei nº 9.784/99.
Logo, “não há fundamento constitucional
que justifique a situação excepcional do Estado de São Paulo, justamente o mais
rico e certamente um dos mais eficientes da Federação, impondo-se o tratamento
igualitário nas relações Estado-cidadão”.
Somente são admitidas exceções ao
princípio da isonomia quando houver fundamento razoável baseado na necessidade
de remediar um desequilíbrio específico entre as partes.
Em suma:
É
inconstitucional lei estadual que estabeleça prazo decadencial de 10 (dez) anos
para anulação de atos administrativos reputados inválidos pela Administração
Pública estadual.
STF. Plenário. ADI 6019/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, redator do acórdão
Min. Roberto Barroso, julgado em 12/4/2021 (Info 1012).
Com base nesse entendimento, o Plenário
do STF, por maioria, julgou procedente o pedido formulado em ação direta para
declarar a inconstitucionalidade do art. 10, I, da Lei 10.177/98, do Estado de
São Paulo.
E se o Estado ou o Município não
estipular um prazo em sua legislação? Se não houver lei estadual ou municipal
fixando um prazo para o exercício da autotutela, será possível aplicar, por
analogia integrativa, o prazo de 5 anos do art. 54 da Lei nº 9.784/99?
SIM. É
isso que preconiza a súmula 633 do STJ:
Súmula 633-STJ: A
Lei nº 9.784/99, especialmente no que diz respeito ao prazo decadencial para a
revisão de atos administrativos no âmbito da Administração Pública federal, pode
ser aplicada, de forma subsidiária, aos estados e municípios, se inexistente
norma local e específica que regule a matéria.
Qual é o
fundamento para essa aplicação?
Os
princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Se não houvesse a aplicação
do prazo da Lei nº 9.784/99, a Administração Pública estadual ou municipal que
não editasse a sua lei ficaria, em tese, completamente livre para exercer a
autotutela a qualquer tempo. Isso, contudo, seria uma afronta à segurança
jurídica. Confira:
Com vistas nos princípios da
razoabilidade e da proporcionalidade, este Superior Tribunal de Justiça tem
admitido a aplicação, por analogia integrativa, da Lei Federal nº 9.784/1999,
que disciplina a decadência quinquenal para revisão de atos administrativos no
âmbito da administração pública federal, aos Estados e Municípios, quando
ausente norma específica, não obstante a autonomia legislativa destes para
regular a matéria em seus territórios.
STJ. 2ª Turma. AgRg no AREsp 345831 PR,
Rel. Min. Assusete Magalhães, julgado em 09/06/2016.