A situação concreta, com
adaptações, foi a seguinte:
“A”, adulto do sexo masculino, mantinha
relacionamento com “O”, mulher maior de idade.
“O” era mãe de “H”, criança com
poucos meses de vida.
“O” fazia tudo o que “A” exigia
para satisfazer sua lascívia.
Determinado
dia, “A”, em conversa com “O”, por meio de aplicativo de mensagens, solicita
que “O” tire fotos da genitália de “H”.
“O” faz isso e envia as fotos
para “A” pelo aplicativo.
Ainda viria algo mais grave.
“A” exige que “O” toque na
genitália e faça sexo oral na criança. “O” obedece e faz o que “A” pediu.
Nas exatas palavras da denúncia oferecida pelo Ministério
Público:
“Durante
vários momentos do diálogo mantido entre [O.] e [A], são enviadas fotos, pela
mãe da menor para o denunciado, nas quais o órgão genital da criança [H.] é
exibido.
Não obstante,
a pedido de [A.], [O.] chega a fazer sexo oral na própria filha, filmando e
enviando o arquivo a ele. (...)”
Houve ainda a prática de outras
condutas repugnantes, que não influenciam diretamente na explicação e que,
portanto, em respeito aos leitores, não serão detalhadas.
Condenação
“A” foi condenado pela prática do delito do art. 241-A do
ECA e pelo crime de estupro de vulnerável (art. 217-A do CP):
Art. 241-A. Oferecer, trocar,
disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou divulgar por qualquer meio,
inclusive por meio de sistema de informática ou telemático, fotografia, vídeo
ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica
envolvendo criança ou adolescente:
Pena – reclusão, de 3 (três) a 6
(seis) anos, e multa.
Estupro de vulnerável
Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou
praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15
(quinze) anos.
O Tribunal de Justiça manteve a
condenação.
Habeas corpus
Em
habeas corpus impetrado no STJ, a defesa de “A” alegou a atipicidade da conduta
invocando, como principal argumento, o fato de não ter havido contato físico entre
o autor e a criança, vítima do crime.
Assim, o réu “A” argumentou que ele
não praticou conjunção carnal nem qualquer outro ato libidinoso com “H”. Logo,
não poderia ser condenado por esse delito.
A tese da defesa foi
acolhida pelo STJ?
NÃO.
Qualquer ato libidinoso é
suficiente para configurar o estupro de vulnerável
Inicialmente, importante
ressaltar que o estupro de vulnerável se consuma com a prática de qualquer ato
de libidinagem ofensivo à dignidade sexual da vítima.
Ato libidinoso pode ocorrer
mesmo sem contato físico entre agente e vítima
O Código Penal não define o que
seja ato libidinoso, cabendo este papel, portanto, à doutrina.
Segundo a maioria dos autores,
para que se configure ato libidinoso, não se exige contato físico
entre ofensor e vítima.
Assim, por exemplo, o simples
fato de o agente ficar olhando a vítima nua com o objetivo de satisfazer sua
lascívia (contemplação lasciva) já é suficiente para caracterizar ato
libidinoso e, portanto, configurar o crime de estupro (art. 213)
ou de estupro de vulnerável (art. 217-A).
Essa é a posição, por exemplo, de Cleber Masson:
“Na prática de atos libidinosos,
a vítima também pode desempenhar, simultaneamente, papeis ativo e passivo.
Nessas duas últimas condutas - praticar ou permitir que com ele se pratique
outro ato libidinoso é dispensável o contato físico de natureza erótica entre o
estuprador e a vítima”. (MASSON, Cleber. Código Penal comentado. 2ª ed., São
Paulo: Método, 2014, p. 825)
Rogério
Sanches também explica que é desnecessário o contato físico:
“De acordo com
a maioria da doutrina, não há necessidade de contato físico entre o
autor e a vítima, cometendo o crime o agente que, para satisfazer a
sua lascívia, ordena que a vítima explore seu próprio corpo (masturbando-se),
somente para contemplação (tampouco há que se imaginar a vítima desnuda para a
caracterização do crime- RT 429/380).” (Manual de direito penal: parte
especial. 8ª ed., Salvador: Juspodivm, 2016, p. 460).
Esse entendimento é acolhido pelo
STJ:
Em situações excepcionais, tem-se que o crime de estupro pode se
caracterizar, inclusive, em situações nas quais não há contato físico entre o
agente e a vítima.
STJ. 5ª Turma. HC
611.511/SP, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, DJe 15/10/2020.
A conduta de contemplar lascivamente, sem contato físico,
mediante pagamento, menor de 14 anos desnuda em motel pode permitir a
deflagração da ação penal para a apuração do delito de estupro de vulnerável.
Segundo a posição majoritária na doutrina, a simples
contemplação lasciva já configura o “ato libidinoso” descrito nos arts. 213 e
217-A do Código Penal, sendo irrelevante, para a consumação dos delitos, que
haja contato físico entre ofensor e ofendido.
STJ. 5ª Turma.
RHC 70976-MS, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 2/8/2016 (Info
587).
Dignidade sexual não se ofende somente com lesões de natureza física
Vale ressaltar, ainda, que o
delito imputado (estupro de vulnerável) é uma espécie de crime
contra a dignidade sexual. A dignidade sexual da vítima não se ofende somente
com lesões de natureza física.
Voltando ao caso concreto:
Na situação concreta, ficou
devidamente comprovado que o paciente agiu mediante nítido poder de controle
psicológico sobre a mãe da vítima, dado o vínculo afetivo entre eles
estabelecido. Assim, a incitou à prática dos atos de estupro contra a infante,
com o envio das respectivas imagens via aplicativo virtual, as quais permitiram
a referida contemplação lasciva e a consequente adequação da conduta ao tipo do
art. 217-A do Código Penal.
Em se tratando de vítima menor de
14 anos, como no caso concreto, a proteção integral à criança e ao adolescente,
em especial no que se refere às agressões sexuais, é preocupação constante de
nosso Estado (art. 227, caput e § 4º, da CF/88) e de instrumentos
internacionais.
Partícipe também pode ser
condenado pelo estupro
Importante registrar, por fim,
que o STJ reconhece que o agente que concorre para a prática do estupro na
qualidade de partícipe também responde pelo crime: STJ. 5ª Turma. RHC n.
110.301/PR, Rel. Min. Ribeiro Dantas, DJe 11/6/2019.
Em suma:
O estupro de vulnerável se consuma com a prática de
qualquer ato de libidinagem ofensivo à dignidade sexual da vítima.
Para que se configure ato libidinoso, não se exige
contato físico entre ofensor e vítima.
Assim, doutrina e jurisprudência sustentam a
prescindibilidade do contato físico direto do réu com a vítima, a fim de
priorizar o nexo causal entre o ato praticado pelo acusado, destinado à
satisfação da sua lascívia, e o efetivo dano à dignidade sexual sofrido pela
ofendida.
STJ. 6ª Turma. HC 478.310, Rel. Min. Rogério Schietti, julgado em
09/02/2021 (Info 685).