Dizer o Direito

sábado, 20 de março de 2021

Na hipótese de suspeita de flagrância delitiva, qual a exigência, em termos de standard probatório, para que policiais ingressem no domicílio do suspeito sem mandado judicial?

  

Inviolabilidade de domicílio

A CF/88 prevê, em seu art. 5º, a seguinte garantia:

XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;

 

A inviolabilidade do domicílio é uma das expressões do direito à intimidade do indivíduo.

 

Entendendo o inciso XI:

Só se pode entrar na casa de alguém sem o consentimento do morador nas seguintes hipóteses:

Durante o DIA

Durante a NOITE

• Em caso de flagrante delito;

• Em caso de desastre;

• Para prestar socorro;

• Para cumprir determinação judicial (ex: busca e apreensão; cumprimento de prisão preventiva).

• Em caso de flagrante delito;

• Em caso de desastre;

• Para prestar socorro.

 

 

Assim, guarde isso: não se pode invadir a casa de alguém durante a noite para cumprir ordem judicial.

 

O que é considerado "dia"?

Não há uma unanimidade.

Há os que defendem o critério físico-astronômico, ou seja, dia é o período de tempo que fica entre o crepúsculo e a aurora.

Outros sustentam um critério cronológico: dia vai das 6h às 18h.

Existem, ainda, os que sustentam aplicar o parâmetro previsto no CPC, que fala que os atos processuais serão realizados em dias úteis, das 6 (seis) às 20 (vinte) horas.

O mais seguro é só cumprir a determinação judicial após as 6h e até as 18h.

 

O que se entender por "casa"?

O conceito é amplo e abrange:

a) a casa, incluindo toda a sua estrutura, como o quintal, a garagem, o porão, a quadra etc.

b) os compartimentos de natureza profissional, desde que fechado o acesso ao público em geral, como escritórios, gabinetes, consultórios etc.

c) os aposentos de habitação coletiva, ainda que de ocupação temporária, como quartos de hotel, motel, pensão, pousada etc.

 

Veículo é considerado casa?

Em regra, não. Assim, o veículo, em regra, pode ser examinado mesmo sem mandado judicial.

Exceção: quando o veículo é utilizado para a habitação do indivíduo, como ocorre com trailers, cabines de caminhão, barcos etc.

 

Flagrante delito

Vimos acima que, havendo flagrante delito, é possível ingressar na casa mesmo sem consentimento do morador, seja de dia ou de noite.

Um exemplo comum no cotidiano é o caso do tráfico de drogas. Diversos verbos do art. 33 da Lei nº 11.343/2006 fazem com que este delito seja permanente:

Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

 

Assim, se a casa do traficante funciona como boca-de-fumo, onde ele armazena e vende drogas, a todo momento estará ocorrendo o crime, considerando que ele está praticando os verbos “ter em depósito” e “guardar”.

 

Diante disso, havendo suspeitas de que existe droga em determinada casa, será possível que os policiais invadam a residência mesmo sem ordem judicial e ainda que contra o consentimento do morador?

SIM. No entanto, no caso concreto, devem existir fundadas razões que indiquem que ali está sendo cometido um crime (flagrante delito). Essas razões que motivaram a invasão forçada deverão ser posteriormente expostas pela autoridade, sob pena de ela responder nos âmbitos disciplinar, civil e penal. Além disso, os atos praticados poderão ser anulados.

 

O STF possui uma tese fixada sobre o tema:

A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas “a posteriori”, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade, e de nulidade dos atos praticados.

STF. Plenário. RE 603616/RO, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 4 e 5/11/2015 (repercussão geral – Tema 280) (Info 806).

 

O STJ também possui alguns julgados a respeito do assunto:

A existência de denúncia anônima da prática de tráfico de drogas somada à fuga do acusado ao avistar a polícia, por si sós, não configuram fundadas razões a autorizar o ingresso policial no domicílio do acusado sem o seu consentimento ou sem determinação judicial.

STJ. 5ª Turma. RHC 89.853-SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 18/02/2020 (Info 666).

STJ. 6ª Turma. RHC 83.501-SP, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 06/03/2018 (Info 623).

 

O ingresso regular da polícia no domicílio, sem autorização judicial, em caso de flagrante delito, para que seja válido, necessita que haja fundadas razões (justa causa) que sinalizem a ocorrência de crime no interior da residência.

A mera intuição acerca de eventual traficância praticada pelo agente, embora pudesse autorizar abordagem policial em via pública para averiguação, não configura, por si só, justa causa a autorizar o ingresso em seu domicílio, sem o seu consentimento e sem determinação judicial.

STJ. 6ª Turma. REsp 1574681-RS, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, julgado em 20/4/2017 (Info 606).

 

Abuso de autoridade

Veja o novo crime inserido pela Lei nº 13.869/2019 (Lei de Abuso de Autoridade):

Art. 22. Invadir ou adentrar, clandestina ou astuciosamente, ou à revelia da vontade do ocupante, imóvel alheio ou suas dependências, ou nele permanecer nas mesmas condições, sem determinação judicial ou fora das condições estabelecidas em lei:

Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos e multa.

§ 1º Incorre na mesma pena, na forma prevista no caput deste artigo, quem:

I - coage alguém, mediante violência ou grave ameaça, a franquear-lhe o acesso a imóvel ou suas dependências;

II - (VETADO);

III - cumpre mandado de busca e apreensão domiciliar após as 21h (vinte e uma horas) ou antes das 5h (cinco horas).

§ 2º Não haverá crime se o ingresso for para prestar socorro, ou quando houver fundados indícios que indiquem a necessidade do ingresso em razão de situação de flagrante delito ou de desastre.

 

Vale ressaltar, no entanto, que, para a configuração do delito, é indispensável a presença do dolo acrescido de elemento subjetivo especial, nos termos do art. 1º, § 1º da Lei nº 13.869/2019:

Art. 1º (...)

§ 1º As condutas descritas nesta Lei constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal.

 

Imagine agora a seguinte situação hipotética:

Os policiais se deslocaram para o bairro Bom Jesus para verificar “denúncias anônimas”, recebidas pelo “disque denúncia”, de que estaria sendo praticado tráfico de drogas.

Ao chegarem no local, encontraram João na frente de uma casa.

Os policiais fizeram busca pessoal em João, mas não encontraram substância entorpecente.

Em seguida, os policiais perguntaram onde ficava a casa de João, tendo ele indicado.

Os policiais alegaram que João autorizou a entrada na residência para fins de busca e apreensão e que, ao revistarem o local, encontram grande quantidade de drogas escondida no armário.

João foi preso em flagrante e denunciado por tráfico de drogas.

Em seu interrogatório judicial, o réu negou veementemente que tenha autorizado a entrada dos policiais.

 

Essa apreensão foi lícita?

NÃO. O STJ entendeu que a busca foi ilícita, assim como todas as provas dela derivadas. Isso porque não houve comprovação de consentimento válido para o ingresso no domicílio do réu.

 

Na hipótese de suspeita de flagrância delitiva, qual a exigência, em termos de standard probatório*, para que policiais ingressem no domicílio do suspeito sem mandado judicial?

Para garantir a devida proteção da garantia constitucional à inviolabilidade do domicílio, os policiais deverão adotar as seguintes providências:

 

1) Autorização assinada pelo morador e por testemunhas

Os policiais deverão obter a autorização assinada pelo morador afirmando que permite a entrada, indicando, ainda, o nome de testemunhas que atestem que o morador consentiu com a entrada e que acompanhem a busca realizada. Isso deve ser registrado em auto circunstanciado.

Tal providência, aliás, já é determinada pelo art. 245, § 7º, do CPP, que prevê:

Art. 245.  As buscas domiciliares serão executadas de dia, salvo se o morador consentir que se realizem à noite, e, antes de penetrarem na casa, os executores mostrarão e lerão o mandado ao morador, ou a quem o represente, intimando-o, em seguida, a abrir a porta.

(...)

§ 7º Finda a diligência, os executores lavrarão auto circunstanciado, assinando-o com duas testemunhas presenciais, sem prejuízo do disposto no § 4º.

 

Embora esse dispositivo se refira ao cumprimento de mandado de busca e apreensão domiciliar, por óbvio ele também deve se aplicar para qualquer forma de busca e apreensão efetuada pelo Estado em domicílios de suspeitos, com ou sem mandado judicial.

 

2) A diligência deverá ser integralmente registrada em vídeo e áudio

Além disso, será de fundamental importância que se registre, em vídeo e áudio, toda a diligência, especialmente nas situações em que, por ausência justificada do formulário ou por impossibilidade qualquer de sua assinatura, seja indispensável comprovar o livre consentimento do morador para o ingresso domiciliar.

A prova da legalidade e da voluntariedade do consentimento para o ingresso na residência do suspeito incumbe, em caso de dúvida, ao Estado, e deve ser feita com declaração assinada pela pessoa que autorizou o ingresso domiciliar, indicando-se, sempre que possível, testemunhas do ato. Em todo caso, a operação deve ser registrada em áudio-vídeo e preservada a prova enquanto durar o processo.

STJ. 6ª Turma. HC 598.051/SP, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, julgado em 02/03/2021 (Info 687).

 

Principais conclusões do STJ:

1) Na hipótese de suspeita de crime em flagrante, exige-se, em termos de standard probatório para ingresso no domicílio do suspeito sem mandado judicial, a existência de fundadas razões (justa causa), aferidas de modo objetivo e devidamente justificadas, de maneira a indicar que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito.

2) O tráfico ilícito de entorpecentes, em que pese ser classificado como crime de natureza permanente, nem sempre autoriza a entrada sem mandado no domicílio onde supostamente se encontra a droga. Apenas será permitido o ingresso em situações de urgência, quando se concluir que do atraso decorrente da obtenção de mandado judicial se possa objetiva e concretamente inferir que a prova do crime (ou a própria droga) será destruída ou ocultada.

3) O consentimento do morador, para validar o ingresso de agentes estatais em sua casa e a busca e apreensão de objetos relacionados ao crime, precisa ser voluntário e livre de qualquer tipo de constrangimento ou coação.

4) A prova da legalidade e da voluntariedade do consentimento para o ingresso na residência do suspeito incumbe, em caso de dúvida, ao Estado, e deve ser feita com declaração assinada pela pessoa que autorizou o ingresso domiciliar, indicando-se, sempre que possível, testemunhas do ato. Em todo caso, a operação deve ser registrada em áudio-vídeo e preservada tal prova enquanto durar o processo.

5) A violação a essas regras e condições legais e constitucionais para o ingresso no domicílio alheio resulta na ilicitude das provas obtidas em decorrência da medida, bem como das demais provas que dela decorrerem em relação de causalidade, sem prejuízo de eventual responsabilização penal do(s) agente(s) público(s) que tenha(m) realizado a diligência.

 

Prazo de 1 ano para adaptações

O Min. Relator propôs e a 6ª Turma concordou com a fixação do prazo de 1 (um) ano para permitir o aparelhamento das polícias, treinamento e demais providências necessárias para a adaptação às diretrizes da presente decisão, de modo a evitar situações de ilicitude, que, entre outros efeitos, poderá implicar responsabilidade administrativa, civil e/ou penal do agente estatal, à luz da legislação vigente (art. 22 da Lei 13.869/2019), sem prejuízo do eventual reconhecimento, no exame de casos a serem julgados, da ilegalidade de diligências pretéritas.

 

* O que são standards de prova?

Standards de prova “são critérios que estabelecem o grau de confirmação probatória necessário para que o julgador considere um enunciado fático como provado” (BADARÓ, Gustavo H. Epistemologia judiciária e prova penal. São Paulo: RT, 2019, p. 236).

 

 

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