Dizer o Direito

quinta-feira, 11 de março de 2021

Lei 14.125/2021: responsabilidade civil por eventos adversos das vacinas contra a Covid-19

 

Sobre o que trata a Lei nº 14.125/2021

A Lei nº 14.125/2021 trata sobre dois assuntos:

· dispõe sobre qual é a responsabilidade civil em caso de eventos adversos (efeitos colaterais) decorrentes da vacinação contra a Covid-19; e

· autoriza a aquisição e a distribuição de vacinas por pessoas jurídicas de direito privado.

 

Responsabilidade civil pelos efeitos colaterais decorrentes da aplicação de vacinas contra a Covid

Uma das grandes discussões envolvendo as vacinas para prevenir a Covid-19 diz respeito ao seu grau de segurança, ou seja, os efeitos colaterais que poderão advir da aplicação das vacinas. Isso porque como as vacinas foram produzidas em tempo recorde, não foi possível se acompanhar, a longo prazo, eventuais reações à saúde humana.

A Pfizer, um dos maiores laboratórios farmacêuticos do mundo, produziu uma vacina contra a Covid-19. No entanto, esse laboratório somente aceita comercializar a vacina se o ente público assumir o pagamento de quaisquer indenizações que sejam pleiteadas por pessoas prejudicadas pelos efeitos colaterais decorrentes da vacina.

Veja um exemplo dessa cláusula de assunção da responsabilidade:

“Os contratantes (ex: União, Estados, DF e Municípios) indenizarão e isentarão a contratada (ex: a Pfizer) de todos e quaisquer danos e responsabilidades decorrentes de ou associados a reclamações por morte, dano físico, mental ou emocional, doença, incapacidade ou condição relacionadas ou decorrentes do uso ou administração da vacina”.

 

Vale ressaltar que essa cláusula não foi uma exigência apenas da Pfizer, tendo também constado no contrato que a Fiocruz (vinculada ao Ministério da Saúde) e o Instituto Bio-Manguinhos celebraram com a AstraZeneca (https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2021/02/24/clausula-de-responsabilidade-por-eventuais-efeitos-colaterais-da-vacina-e-obstaculo-para-acordo-entre-governo-federal-e-pfizer.ghtml).

 

Como esse tema é juridicamente controverso e havia dúvidas se o Poder Executivo poderia firmar um compromisso nesses moldes sem autorização legislativa, foi editada a Lei nº 14.125/2021 que, em seu art. 1º, autorizou expressamente que a União, os Estados, o DF e os Municípios assumam essa responsabilidade. Veja:

Art. 1º  Enquanto perdurar a Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin), declarada em decorrência da infecção humana pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2), ficam a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios autorizados a adquirir vacinas e a assumir os riscos referentes à responsabilidade civil, nos termos do instrumento de aquisição ou fornecimento de vacinas celebrado, em relação a eventos adversos pós-vacinação, desde que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) tenha concedido o respectivo registro ou autorização temporária de uso emergencial.

(...)

§ 2º A assunção dos riscos relativos à responsabilidade civil de que trata o caput deste artigo restringe-se às aquisições feitas pelo respectivo ente público.

 

A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão constituir garantias ou contratar seguro privado, nacional ou internacional, em uma ou mais apólices, para a cobertura dos riscos de que trata o art. 1º acima transcrito.

 

A previsão acima lembra, guardadas as devidas diferenças, o compromisso que a União assumiu com a Fifa, durante a Copa do Mundo de 2014. Na época, mesmo a Copa do Mundo sendo um evento da Fifa, a União assumiu o compromisso de indenizar as vítimas de danos que fossem resultado de incidentes ou acidentes de segurança relacionados aos Eventos. Veja a redação do art. 23 da Lei nº 12.663/2012:

Art. 23. A União assumirá os efeitos da responsabilidade civil perante a FIFA, seus representantes legais, empregados ou consultores por todo e qualquer dano resultante ou que tenha surgido em função de qualquer incidente ou acidente de segurança relacionado aos Eventos, exceto se e na medida em que a FIFA ou a vítima houver concorrido para a ocorrência do dano.

Parágrafo único. A União ficará sub-rogada em todos os direitos decorrentes dos pagamentos efetuados contra aqueles que, por ato ou omissão, tenham causado os danos ou tenham para eles concorrido, devendo o beneficiário fornecer os meios necessários ao exercício desses direitos.

 

Vale ressaltar que o STF considerou esse dispositivo constitucional:

(...) A disposição contida no art. 37, § 6º, da Constituição Federal não esgota a matéria relacionada à responsabilidade civil imputável à Administração, pois, em situações especiais de grave risco para a população ou de relevante interesse público, pode o Estado ampliar a respectiva responsabilidade, por danos decorrentes de sua ação ou omissão, para além das balizas do supramencionado dispositivo constitucional, inclusive por lei ordinária, dividindo os ônus decorrentes dessa extensão com toda a sociedade. II – Validade do oferecimento pela União, mediante autorização legal, de garantia adicional, de natureza tipicamente securitária, em favor de vítimas de danos incertos decorrentes dos eventos patrocinados pela FIFA, excluídos os prejuízos para os quais a própria entidade organizadora ou mesmo as vítimas tiverem concorrido. Compromisso livre e soberanamente contraído pelo Brasil à época de sua candidatura para sediar a Copa do Mundo FIFA 2014.  (...)

STF. Plenário. ADI 4976, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 07/05/2014.

 

O art. 1º da Lei nº 14.125/2021 parece ser mais um exemplo de responsabilidade civil com base na teoria do risco social. Conforme explica Alexandre Aragão:

“O ponto extremo da responsabilidade civil estatal é a teoria do risco social ou risco integral, em que o Estado é responsável até por danos não imputáveis ao seu comportamento independentemente até mesmo de nexo de causalidade, sem possibilidade de causas de exclusão (caso fortuito, força maior, culpa de terceiros, da própria vítima, etc.). Além da responsabilidade por danos nucleares (art. 21, XXIII, d, CF, regulamentado pela Lei n. 6.453/77), outro exemplo dessa espécie de obrigação pecuniária do estado, mais de seguridade social que de responsabilidade civil propriamente dita, é a instituída pela Lei n. 10.744, de 09 de outubro de 2003, que, adotando a Teoria do Risco Integral, propicia à União arcar com os prejuízos que venham a ser causados por atos terroristas” (ARAGÃO, Alexandre Santos de. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 561).

 

Marçal Justen Filho, ao tratar sobre a Lei nº 10.744/2003, afirma que essa assunção de responsabilidade, em tese, é possível:

“A lei pode impor a responsabilidade do Estado por atos absolutamente estranhos a ele. O caso não configurará propriamente responsabilidade civil, mas uma forma de outorga de benefício a terceiros lesados. (…) Rigorosamente, a hipótese não é de responsabilidade civil extracontratual. Aliás, se fosse, não haveria necessidade das aludidas leis” (JUSTEN FILHO. Marçal. Curso de Direito Administrativo. 9ª ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 1.327).

 

Aquisição de vacinas por pessoas jurídicas de direito privado (ex: empresas)

O art. 2º da Lei nº 14.125/2021 autoriza que, além dos governos federal, estadual, distrital e municipal,  as pessoas jurídicas de direito privado (ex: empresas) também adquiram vacinas. Para isso, no entanto, são fixadas algumas regras:

 

1ª) Enquanto o Governo não terminar a vacinação dos grupos prioritários (idosos, indígenas, portadores de comorbidades etc.):

As pessoas jurídicas de direito privado poderão adquirir diretamente as vacinas devendo, contudo, doar integralmente para o SUS.

Neste caso, as empresas comprariam as vacinas apenas para colaborar com o Poder Público no programa de imunização, não podendo ficar com nenhuma vacina.

 

2ª) Depois que o Governo terminar a vacinação dos grupos prioritários:

As pessoas jurídicas de direito privado poderão comprar as vacinas, devendo, contudo, doar metade das doses compradas para o SUS.

A outra metade poderá ser livremente distribuída e aplicada, mas desde que isso seja feito de forma gratuita (a pessoa jurídica não poderá vender as vacinas).

 

Confira a redação do art. 2º da Lei:

Art. 2º Pessoas jurídicas de direito privado poderão adquirir diretamente vacinas contra a Covid-19 que tenham autorização temporária para uso emergencial, autorização excepcional e temporária para importação e distribuição ou registro sanitário concedidos pela Anvisa, desde que sejam integralmente doadas ao Sistema Único de Saúde (SUS), a fim de serem utilizadas no âmbito do Programa Nacional de Imunizações (PNI).

§ 1º Após o término da imunização dos grupos prioritários previstos no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19, as pessoas jurídicas de direito privado poderão, atendidos os requisitos legais e sanitários, adquirir, distribuir e administrar vacinas, desde que pelo menos 50% (cinquenta por cento) das doses sejam, obrigatoriamente, doadas ao SUS e as demais sejam utilizadas de forma gratuita.

§ 2º As vacinas de que trata o caput deste artigo poderão ser aplicadas em qualquer estabelecimento ou serviço de saúde que possua sala para aplicação de injetáveis autorizada pelo serviço de vigilância sanitária local, observadas as exigências regulatórias vigentes, a fim de garantir as condições adequadas para a segurança do paciente e do profissional de saúde.

§ 3º As pessoas jurídicas de direito privado deverão fornecer ao Ministério da Saúde, na forma de regulamento, de modo tempestivo e detalhado, todas as informações relativas à aquisição, incluindo os contratos de compra e doação, e à aplicação das vacinas contra a Covid-19.

 

E as clínicas privadas que vendem vacinas? Elas poderão adquirir vacinas contra a Covid-19?

O requisito legal para que essas clínicas importem e comercializem a vacina é que já tenha havido o registro definitivo na Anvisa. A vacina da Pfizer, por exemplo, já obteve esse registro definitivo.

Por outro lado, as clínicas privadas não podem adquirir e comercializar vacinas que tenham ainda apenas registro para uso emergencial, como é o caso da Coronavac e da Oxford/Astrazeneca.

Assim, independentemente de lei, as clínicas privadas já podem, em tese, comprar a vacina da Pfizer e revender para a população em geral. Existem, contudo, dois obstáculos fáticos:

1) a Pfizer já anunciou que, no presente momento, só irá comercializar as vacinas para o Poder Público;

2) ainda que conseguisse adquirir, haveria o risco de a Administração Pública fazer a requisição administrativa das vacinas.

 

Assim, entendo que a previsão do art. 2º da Lei nº 14.125/2021 não se aplica para as clínicas particulares. Estas continuarão dependendo do registro definitivo e, caso adquiram vacinas com registro definitivo, não estarão sujeitas às limitações do art. 2º. A previsão da Lei nº 14.125/2021 é voltada para grandes empresas privadas que anunciaram que desejam colaborar com o Poder Público na imunização da população.

 

Vigência

A Lei nº 14.125/2021 entrou em vigor na data de sua publicação (10/03/2021).

  


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