Dizer o Direito

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

O crime de exercício arbitrário das próprias razões (art. 345 do CP) é material ou formal?

  

Imagine a seguinte situação hipotética:

Regina estava devendo R$ 1.000,00 a João.

Depois de vários meses cobrando a devedora sem que ela pagasse, João resolveu “fazer justiça com as próprias mãos”. Ao encontrar Regina na rua, ele passou a exigir que Regina lhe desse o aparelho de telefonia celular que ela tinha nas mãos como pagamento da dívida. Ela fugiu e ele correu atrás, chegando a puxá-la pelo braço e pelo cabelo, mas sem êxito. Regina conseguiu escapar sem nenhuma lesão e com seu telefone celular.

 

Diante disso, indaga-se: qual foi o crime praticado por João?

Exercício arbitrário das próprias razões, delito tipificado no art. 345 do Código Penal:

Art. 345. Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite:

Pena - detenção, de quinze dias a um mês, ou multa, além da pena correspondente à violência.

Parágrafo único - Se não há emprego de violência, somente se procede mediante queixa.

 

Esse crime pune a pessoa que age por conta própria para satisfazer uma pretensão (legítima ou ilegítima), sem se utilizar dos instrumentos legalmente cabíveis.

 

A defesa de João argumentou que o crime foi apenas tentado, considerando que o agente não conseguiu tomar o aparelho de telefone celular. O crime do art. 345 do CP é material ou formal?

Existem duas correntes na doutrina.

1ª posição: trata-se de crime material. Se o agente não conseguiu o resultado pretendido, ele não fez justiça pelas próprias mãos. Logo, o delito não se consumou. Era a corrente sustentada por Nelson Hungria e Mirabete.

2ª posição: consiste em crime formal. Desse modo, o delito se consuma com o emprego dos meios executórios para satisfazer a pretensão, ainda que o agente não consiga atingir o resultado pretendido. É defendida pela maioria da doutrina, como, por exemplo, Cezar Roberto Bitencourt, Guilherme de Souza Nucci e Cleber Masson.

 

Qual foi a posição adotada pela 6ª Turma do STJ?

A 2ª corrente. Trata-se de crime formal.

O crime de exercício arbitrário das próprias razões é formal e consuma-se com o emprego do meio arbitrário, ainda que o agente não consiga satisfazer a sua pretensão.

STJ. 6ª Turma. REsp 1.860.791, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 09/02/2021 (Info 685).

 

O tipo penal afirma que o sujeito age “para satisfazer” a sua pretensão. Logo, é suficiente, para a consumação do delito, que o agente tenha praticado atos para fazer justiça com as próprias mãos, ainda que não tenha conseguido. Não é necessário, portanto, que o agente tenha atingido efetivamente o seu objetivo. A satisfação, se ocorrer, constitui mero exaurimento da conduta.

 

No caso concreto, por que o agente não respondeu também por lesão corporal?

Porque a vítima não sofreu lesão corporal, ou seja, não houve uma ofensa à sua integridade corporal ou à sua saúde.

Se ela tivesse sofrido, o agente responderia pelo art. 345 do CP em concurso material com o delito de lesão corporal. É o que prevê a parte final do preceito secundário do art. 345:

Art. 345. (...)

Pena - detenção, de quinze dias a um mês, ou multa, além da pena correspondente à violência.

 

O puxão de cabelo e o puxão no braço, em regra, configuram apenas “vias de fato”, que é uma contravenção penal prevista no art. 21 do Decreto-Lei nº 3.688/41:

Art. 21. Praticar vias de fato contra alguém:

Pena – prisão simples, de quinze dias a três meses, ou multa, de cem mil réis a um conto de réis, se o fato não constitui crime.

Parágrafo único. Aumenta-se a pena de 1/3 (um terço) até a metade se a vítima é maior de 60 (sessenta) anos.

 

João responderá, então, por exercício arbitrário das próprias razões em concurso com vias de fato?

NÃO. A contravenção penal de vias de fato fica absorvida. Isso porque o art. 21 do DL 3.688/41 possui uma regra de subsidiariedade expressa e diz que o agente somente será punido pela contravenção “se o fato não constitui crime”.

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