Dizer o Direito

sábado, 5 de dezembro de 2020

É possível a fixação de astreintes em desfavor de terceiros, não participantes do processo, pela demora ou não cumprimento de ordem emanada do Juízo Criminal


 

Imagine a seguinte situação adaptada:

Foi instaurado inquérito policial para apurar o crime do art. 241-a do ECA:

Art. 241-A.  Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou divulgar por qualquer meio, inclusive por meio de sistema de informática ou telemático, fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente:

Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.

 

O juiz acolheu representação da autoridade policial e determinou ao Facebook que fornecesse dados cadastrais, logs de acesso, dados armazenados, inclusive fotografias exibidas, álbuns de fotos, vídeos, recados, depoimentos, listas de amigos do investigado e de comunidades das quais o perfil dele fosse membro.

O magistrado fixou multa de R$ 10 mil por dia de descumprimento.

O Facebook cumpriu a determinação judicial com 10 dias de atraso.

 

Principais características da multa cominatória (astreinte)

• Essa multa coercitiva tornou-se conhecida no Brasil pelo nome de astreinte em virtude de ser semelhante (mas não idêntica) a um instituto processual previsto no direito francês e que lá assim é chamado.

• A finalidade dessa multa é coercitiva, isto é, pressionar o devedor a realizar a prestação. Trata-se de uma técnica judicial de coerção indireta.

• Apresenta um caráter híbrido, possuindo traços de direito material e também de direito processual.

• Não tem finalidade ressarcitória, tanto é que pode ser cumulada com perdas e danos.

• Pode ser imposta pelo juiz de ofício ou a requerimento.

• Apesar de no dia-a-dia ser comum ouvirmos a expressão “multa diária”, essa multa pode ser estipulada também em meses, anos ou até em horas. O CPC/2015, corrigindo essa questão, não fala mais em “multa diária”, utilizando simplesmente a palavra “multa”.

• Atualmente, essa multa encontra-se disciplinada nos arts. 536 e 537 do CPC.

 

Voltando ao caso concreto: o juiz poderia ter fixado essa multa? É possível que o juízo criminal imponha multa mesmo que o destinatário não seja investigado ou réu?

SIM.

É possível a fixação de astreintes em desfavor de terceiros, não participantes do processo, pela demora ou não cumprimento de ordem emanada do Juízo Criminal.

STJ. 3ª Seção. REsp 1.568.445-PR, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, Rel. Acd. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 24/06/2020 (Info 677).

 

O Código de Processo Penal trata sobre multa cominatória (astreintes)?

NÃO. Não se trata, contudo, de um óbice à aplicação das astreintes. Isso porque essa multa é prevista no CPC e as normas de processo civil aplicam-se de forma subsidiária ao processo penal. Essa é a conclusão a que chega a doutrina e a jurisprudência a partir da leitura do art. 3º do CPP:

Art. 3º A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito.

 

Desse modo, é possível a aplicação das normas processuais civis ao processo penal, desde que haja lacuna a ser suprida.

A lei processual penal não tratou, detalhadamente, de todos os poderes conferidos ao julgador no exercício da jurisdição. Portanto, quando houver omissão, legitima-se a aplicação subsidiária do CPC.

 

Multa cominatória é um instrumento para que as decisões judiciais tenham efetividade (sejam cumpridas na prática)

A multa cominatória surge, no direito brasileiro, como uma alternativa à crise de inefetividade das decisões. Trata-se de um meio de se “infiltrar na vontade humana” até então intangível e, por coação psicológica, demover o particular de possível predisposição de descumprir determinada obrigação.

Diante da finalidade da multa cominatória, que é conferir efetividade à decisão judicial, deve-se concluir pela possibilidade de sua aplicação em demandas penais.

 

Um dos fundamentos para a aplicação da multa cominatória é o poder geral de cautela do juiz. Admite-se o chamado “poder geral de cautela” no processo penal?

O tema é polêmico, no entanto, prevalece na jurisprudência do STJ que SIM.

O poder geral de cautela do processo civil também pode ser aplicado, em regra, ao processo penal. O emprego de cautelares inominadas só é proibido no processo penal se atingir a liberdade de ir e vir do indivíduo.

Nas palavras do Min. Ribeiro Dantas:

“Aplica-se o poder geral de cautela ao processo penal, só havendo restrição a ele, conforme reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal, na ADPF 444/DF, no que diz respeito às cautelares pessoais, que de alguma forma restrinjam o direito de ir e vir da pessoa.

O princípio do nemo tenetur se detegere e da vedação à analogia in malam partem são garantias em favor da defesa (ao investigado, ao indiciado, ao acusado, ao réu e ao condenado), não se estendendo a quem não esteja submetido à persecução criminal. Até porque, apesar de ocorrer incidentalmente em uma relação jurídico-processual-penal, não existe risco de privação de liberdade de terceiros instados a cumprir a ordem judicial, especialmente no caso dos autos, em que são pessoas jurídicas. Trata-se, pois, de poder conferido ao juiz, inerente à própria natureza cogente das decisões judiciais.”

 

Confira recente julgado do STJ:

Além do mais, por força do poder geral de cautela, de forma excepcional e motivada, não há óbice ao magistrado impor ao investigado ou acusado medida cautelar atípica, a fim de evitar a prisão preventiva, isto é, mesmo que não conste literalmente do rol positivado no art. 319 do CPP, o alcance das hipóteses típicas pode ser ampliado para, observados os ditames do art. 282 do CPP, aplicar medida constritiva adequada e necessária à espécie ou, ainda, pode ser aplicada medida prevista em outra norma do ordenamento.

STJ. 6ª Turma. HC 469.453/SP, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 19/09/2019.

 

Teoria dos poderes implícitos

A teoria dos poderes implícitos também é um fundamento autônomo que, por si só, justificaria a aplicação de astreintes pelos magistrados. Nesse sentido:

A legalidade da imposição de astreintes a terceiros descumpridores de decisão judicial encontra amparo também na teoria dos poderes implícitos, segundo a qual, uma vez estabelecidas expressamente as competências e atribuições de um órgão estatal, desde que observados os princípios da proporcionalidade e razoabilidade, ele está implicitamente autorizado a utilizar os meios necessários para poder exercer essas competências.

Nessa toada, se incumbe ao magistrado autorizar a quebra de sigilo de dados telemáticos, pode ele se valer dos meios necessários e adequados para fazer cumprir sua decisão, tanto mais quando a medida coercitiva imposta (astreintes) está prevista em lei.

STJ. 5ª Turma. AgRg no RMS 55.050/SP, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 03/10/2017.

 

No caso, o Facebook não é investigado nem réu. Isso significa que ele não é parte, mas sim terceiro. É possível que as astreintes incidam sobre “terceiro” no processo penal?

SIM. Sem dúvidas quanto a isso.

No processo penal, a irregularidade não se verifica quando imposta a multa coativa a terceiro.

Haveria sim invalidade se essa multa incidisse sobre o réu. Isso porque nesse caso teríamos uma clara violação ao princípio do nemo tenetur se detegere.

Portanto, não há óbices à aplicação da multa cominatória a terceiros, ainda que

em sede de processo penal.

Vale observar, a propósito, a existência de dispositivos expressos, no Código de Processo Penal, que estipulam multa ao terceiro que não colabora com a justiça criminal. É o caso, por exemplo, do art. 219 (multa para a testemunha faltosa) e do art. 436, § 2º (multa para quem se recusa injustificadamente a participar como jurado).

 

Marco Civil da Internet

No caso concreto, tem-se um outro elemento importante.

O Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) prevê expressamente a possibilidade da aplicação de multa ao descumpridor de suas normas quanto à guarda e disponibilização de registros conteúdos:

Art. 10. A guarda e a disponibilização dos registros de conexão e de acesso a aplicações de internet de que trata esta Lei, bem como de dados pessoais e do conteúdo de comunicações privadas, devem atender à preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das partes direta ou indiretamente envolvidas.

(...)

§ 2º O conteúdo das comunicações privadas somente poderá ser disponibilizado mediante ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer, respeitado o disposto nos incisos II e III do art. 7º.

 

Art. 12. Sem prejuízo das demais sanções cíveis, criminais ou administrativas, as infrações às normas previstas nos arts. 10 e 11 ficam sujeitas, conforme o caso, às seguintes sanções, aplicadas de forma isolada ou cumulativa:

(...)

II - multa de até 10% (dez por cento) do faturamento do grupo econômico no Brasil no seu último exercício, excluídos os tributos, considerados a condição econômica do infrator e o princípio da proporcionalidade entre a gravidade da falta e a intensidade da sanção;

 

No ponto, poderia surgir a dúvida quanto à aplicabilidade das astreintes a terceiro não integrante da relação jurídico-processual . Entretanto, é curioso notar que, no processo penal, a irregularidade não se verifica quando imposta a multa coativa a terceiro. Haveria, sim, invalidade se ela incidisse sobre o réu, pois ter-se-ia clara violação ao princípio do nemo tenetur se detegere.Exclusão.Na prática jurídica, não se verifica empecilho à aplicação ao terceiro e, na doutrina majoritária, também se entende que o terceiro pode perfeitamente figurar como destinatário da multa. Ademais, não é exagero lembrar, ainda, que o Marco Civil da Internet traz expressamente a possibilidade da aplicação de multa ao descumpridor de suas normas quanto à guarda e disponibilização de registros conteúdos.10. Por fim, vale observar, a propósito, a existência de dispositivos expressos, no próprio Código de Processo Penal, que estipulam multa ao terceiro que não colabora com a justiça criminal (arts. 219 e 436, § 2º). 

 

Astreintes não é o mesmo que multa por litigância de má-fé

Cuidado para não confundir.

A multa cominatória é diferente da multa por litigância de má-fé.

A jurisprudência do STJ é firme no sentido de que a multa por litigância de má-fé não tem previsão no CPP e não pode ser aplicada ao processo penal.

É pacífico o entendimento do Superior Tribunal de Justiça de que, em virtude da vedação à analogia in malam partem e pela ausência de disposição expressa no Código de Processo Penal, é descabida a imposição de multa por litigância de má-fé em processos de natureza criminal.

STJ. 6ª Turma. HC 452.713/PR, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 25/09/2018.

 

É possível ao juízo criminal efetivar o bloqueio via Bacen-Jud ou a inscrição em dívida ativa dos valores arbitrados a título de astreintes?

SIM.

Por derivar do poder geral de cautela, cabe ao magistrado, diante do caso concreto, avaliar qual a melhor medida coativa ao cumprimento da determinação judicial, não havendo impedimento ao emprego do sistema Bacen-Jud.

STJ. 3ª Seção. REsp 1.568.445-PR, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, Rel. Acd. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 24/06/2020 (Info 677).

 

Uma vez intimada a pessoa jurídica para o cumprimento da ordem judicial, o que se espera é a sua concretização. No entanto, caracterizada a mora no seu cumprimento, o magistrado não pode ficar à mercê de um procedimento próprio à espera da realização da ordem, que pode não ser cumprida.

Em razão da natureza das astreintes e do poder geral de cautela do magistrado, este deve ter uma maneira para estimular o terceiro ao cumprimento da ordem judicial, sobretudo pela relevância para o deslinde de condutas criminosas.

Fica-se, então, na ponderação entre esses valores: de um lado, o interesse da coletividade, que pode ser colocado a perder pelo descumprimento ou mora; do outro, o patrimônio eventualmente constrito, que, inclusive, pode ser posteriormente liberado.

Por fim, é importante enfatizar não haver um procedimento legal específico, nem tampouco previsão de instauração do contraditório. Como visto, por derivar do poder geral de cautela, cabe ao magistrado, diante do caso concreto, avaliar qual a melhor medida coativa ao cumprimento da determinação judicial, não havendo impedimento ao emprego do sistema Bacen-Jud.

 

Caso ocorra o descumprimento e haja o recolhimento da multa, quem será o destinatário dos valores?

• No processo civil: o valor da multa deve ser revertido em favor da pessoa que seria beneficiada com a conduta que deveria ter sido cumprida. É que o prevê atualmente, de forma expressa, o art. 537, § 2º do CPC/2015:

Art. 537 (...)

§ 2º O valor da multa será devido ao exequente.

 

• No processo penal: os valores deverão ser revertidos ao Estado (em sentido amplo). Logo, se aplicada a multa pela Justiça federal, eventuais valores bloqueados serão revertidos em favor da União; se, porém, a medida foi adotada pela Justiça estadual, os valores deverão ficar com o Estado-membro respectivo. 


Dizer o Direito!