Imagine a seguinte situação
adaptada:
Foi instaurado inquérito policial para apurar o crime do
art. 241-a do ECA:
Art. 241-A. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir,
distribuir, publicar ou divulgar por qualquer meio, inclusive por meio de
sistema de informática ou telemático, fotografia, vídeo ou outro registro que
contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou
adolescente:
Pena – reclusão, de 3 (três) a 6
(seis) anos, e multa.
O juiz acolheu representação da
autoridade policial e determinou ao Facebook que fornecesse dados cadastrais,
logs de acesso, dados armazenados, inclusive fotografias exibidas, álbuns de
fotos, vídeos, recados, depoimentos, listas de amigos do investigado e de
comunidades das quais o perfil dele fosse membro.
O magistrado fixou multa de R$ 10
mil por dia de descumprimento.
O Facebook cumpriu a determinação
judicial com 10 dias de atraso.
Principais características
da multa cominatória (astreinte)
• Essa multa coercitiva tornou-se
conhecida no Brasil pelo nome de astreinte em virtude de ser semelhante (mas
não idêntica) a um instituto processual previsto no direito francês e que lá
assim é chamado.
• A finalidade dessa multa é
coercitiva, isto é, pressionar o devedor a realizar a prestação. Trata-se de
uma técnica judicial de coerção indireta.
• Apresenta um caráter híbrido,
possuindo traços de direito material e também de direito processual.
• Não tem finalidade
ressarcitória, tanto é que pode ser cumulada com perdas e danos.
• Pode ser imposta pelo juiz de
ofício ou a requerimento.
• Apesar de no dia-a-dia ser
comum ouvirmos a expressão “multa diária”, essa multa pode ser estipulada
também em meses, anos ou até em horas. O CPC/2015, corrigindo essa questão, não
fala mais em “multa diária”, utilizando simplesmente a palavra “multa”.
• Atualmente, essa multa
encontra-se disciplinada nos arts. 536 e 537 do CPC.
Voltando ao caso concreto:
o juiz poderia ter fixado essa multa? É possível que o juízo criminal imponha
multa mesmo que o destinatário não seja investigado ou réu?
SIM.
É possível a fixação de astreintes em desfavor de
terceiros, não participantes do processo, pela demora ou não cumprimento de
ordem emanada do Juízo Criminal.
STJ. 3ª
Seção. REsp 1.568.445-PR, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz,
Rel. Acd. Min.
Ribeiro Dantas, julgado em 24/06/2020 (Info 677).
O Código de Processo Penal trata
sobre multa cominatória (astreintes)?
NÃO. Não se trata, contudo, de um óbice à aplicação das astreintes.
Isso porque essa multa é prevista no CPC e as normas de processo civil
aplicam-se de forma subsidiária ao processo penal. Essa é a conclusão a que
chega a doutrina e a jurisprudência a partir da leitura do art. 3º do CPP:
Art. 3º A lei processual penal
admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento
dos princípios gerais de direito.
Desse modo, é possível a
aplicação das normas processuais civis ao processo penal, desde que haja lacuna
a ser suprida.
A lei processual penal não
tratou, detalhadamente, de todos os poderes conferidos ao julgador no exercício
da jurisdição. Portanto, quando houver omissão, legitima-se a aplicação
subsidiária do CPC.
Multa cominatória é um
instrumento para que as decisões judiciais tenham efetividade (sejam cumpridas
na prática)
A multa cominatória surge, no
direito brasileiro, como uma alternativa à crise de inefetividade das decisões.
Trata-se de um meio de se “infiltrar na vontade humana” até então intangível e,
por coação psicológica, demover o particular de possível predisposição de
descumprir determinada obrigação.
Diante da finalidade da multa
cominatória, que é conferir efetividade à decisão judicial, deve-se concluir
pela possibilidade de sua aplicação em demandas penais.
Um dos fundamentos para a
aplicação da multa cominatória é o poder geral de cautela do juiz. Admite-se o
chamado “poder geral de cautela” no processo penal?
O tema é polêmico, no entanto, prevalece
na jurisprudência do STJ que SIM.
O poder geral de cautela do
processo civil também pode ser aplicado, em regra, ao processo penal. O emprego
de cautelares inominadas só é proibido no processo penal se atingir a liberdade
de ir e vir do indivíduo.
Nas palavras do Min. Ribeiro Dantas:
“Aplica-se o
poder geral de cautela ao processo penal, só havendo restrição a ele, conforme
reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal, na ADPF 444/DF, no que diz respeito
às cautelares pessoais, que de alguma forma restrinjam o direito de ir e vir da
pessoa.
O princípio do
nemo tenetur se detegere e da vedação à analogia in malam partem são
garantias em favor da defesa (ao investigado, ao indiciado, ao acusado, ao réu
e ao condenado), não se estendendo a quem não esteja submetido à persecução
criminal. Até porque, apesar de ocorrer incidentalmente em uma relação
jurídico-processual-penal, não existe risco de privação de liberdade de terceiros
instados a cumprir a ordem judicial, especialmente no caso dos autos, em que
são pessoas jurídicas. Trata-se, pois, de poder conferido ao juiz, inerente à própria
natureza cogente das decisões judiciais.”
Confira recente julgado do STJ:
Além do mais, por força do poder geral de cautela, de forma excepcional
e motivada, não há óbice ao magistrado impor ao investigado ou acusado medida
cautelar atípica, a fim de evitar a prisão preventiva, isto é, mesmo que não
conste literalmente do rol positivado no art. 319 do CPP, o alcance das
hipóteses típicas pode ser ampliado para, observados os ditames do art. 282 do
CPP, aplicar medida constritiva adequada e necessária à espécie ou, ainda, pode
ser aplicada medida prevista em outra norma do ordenamento.
STJ. 6ª Turma. HC
469.453/SP, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 19/09/2019.
Teoria dos poderes
implícitos
A teoria dos poderes implícitos
também é um fundamento autônomo que, por si só, justificaria a aplicação de
astreintes pelos magistrados. Nesse sentido:
A legalidade da imposição de astreintes a terceiros
descumpridores de decisão judicial encontra amparo também na teoria dos poderes
implícitos, segundo a qual, uma vez estabelecidas expressamente as competências
e atribuições de um órgão estatal, desde que observados os princípios da proporcionalidade
e razoabilidade, ele está implicitamente autorizado a utilizar os meios
necessários para poder exercer essas competências.
Nessa toada, se incumbe ao magistrado autorizar a quebra de
sigilo de dados telemáticos, pode ele se valer dos meios necessários e
adequados para fazer cumprir sua decisão, tanto mais quando a medida coercitiva
imposta (astreintes) está prevista em lei.
STJ. 5ª Turma. AgRg no RMS 55.050/SP, Rel. Min. Reynaldo Soares da
Fonseca, julgado em 03/10/2017.
No caso, o Facebook não é
investigado nem réu. Isso significa que ele não é parte, mas sim terceiro. É possível
que as astreintes incidam sobre “terceiro” no processo penal?
SIM. Sem dúvidas quanto a isso.
No processo penal, a
irregularidade não se verifica quando imposta a multa coativa a terceiro.
Haveria sim invalidade se essa
multa incidisse sobre o réu. Isso porque nesse caso teríamos uma clara violação
ao princípio do nemo tenetur se detegere.
Portanto, não há óbices à
aplicação da multa cominatória a terceiros, ainda que
em sede de processo penal.
Vale observar, a propósito, a
existência de dispositivos expressos, no Código de Processo Penal, que
estipulam multa ao terceiro que não colabora com a justiça criminal. É o caso,
por exemplo, do art. 219 (multa para a testemunha faltosa) e do art. 436, § 2º (multa
para quem se recusa injustificadamente a participar como jurado).
Marco Civil da Internet
No caso concreto, tem-se um outro
elemento importante.
O Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) prevê expressamente
a possibilidade da aplicação de multa ao descumpridor de suas normas quanto à guarda
e disponibilização de registros conteúdos:
Art. 10. A guarda e a disponibilização
dos registros de conexão e de acesso a aplicações de internet de que trata esta
Lei, bem como de dados pessoais e do conteúdo de comunicações privadas, devem
atender à preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das
partes direta ou indiretamente envolvidas.
(...)
§ 2º O conteúdo das comunicações
privadas somente poderá ser disponibilizado mediante ordem judicial, nas
hipóteses e na forma que a lei estabelecer, respeitado o disposto nos incisos
II e III do art. 7º.
Art. 12. Sem prejuízo das demais
sanções cíveis, criminais ou administrativas, as infrações às normas previstas
nos arts. 10 e 11 ficam sujeitas, conforme o caso, às seguintes sanções,
aplicadas de forma isolada ou cumulativa:
(...)
II - multa de até 10% (dez por cento)
do faturamento do grupo econômico no Brasil no seu último exercício, excluídos
os tributos, considerados a condição econômica do infrator e o princípio da
proporcionalidade entre a gravidade da falta e a intensidade da sanção;
No ponto, poderia surgir a dúvida
quanto à aplicabilidade das astreintes a terceiro não integrante da relação
jurídico-processual . Entretanto, é curioso notar que, no processo penal, a
irregularidade não se verifica quando imposta a multa coativa a terceiro.
Haveria, sim, invalidade se ela incidisse sobre o réu, pois ter-se-ia clara
violação ao princípio do nemo tenetur se detegere.Exclusão.Na prática jurídica,
não se verifica empecilho à aplicação ao terceiro e, na doutrina majoritária,
também se entende que o terceiro pode perfeitamente figurar como destinatário
da multa. Ademais, não é exagero lembrar, ainda, que o Marco Civil da Internet
traz expressamente a possibilidade da aplicação de multa ao descumpridor de
suas normas quanto à guarda e disponibilização de registros conteúdos.10. Por
fim, vale observar, a propósito, a existência de dispositivos expressos, no
próprio Código de Processo Penal, que estipulam multa ao terceiro que não
colabora com a justiça criminal (arts. 219 e 436, § 2º).
Astreintes não é o mesmo
que multa por litigância de má-fé
Cuidado para não confundir.
A multa cominatória é diferente
da multa por litigância de má-fé.
A jurisprudência do STJ é firme
no sentido de que a multa por litigância de má-fé não tem previsão no CPP e não
pode ser aplicada ao processo penal.
É pacífico o entendimento do Superior Tribunal de Justiça de
que, em virtude da vedação à analogia in malam partem e pela ausência de
disposição expressa no Código de Processo Penal, é descabida a imposição de
multa por litigância de má-fé em processos de natureza criminal.
STJ. 6ª Turma. HC 452.713/PR, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em
25/09/2018.
É possível ao juízo
criminal efetivar o bloqueio via Bacen-Jud ou a inscrição em dívida ativa dos
valores arbitrados a título de astreintes?
SIM.
Por derivar do poder geral de cautela, cabe ao
magistrado, diante do caso concreto, avaliar qual a melhor medida coativa ao cumprimento
da determinação judicial, não havendo impedimento ao emprego do sistema
Bacen-Jud.
STJ. 3ª
Seção. REsp 1.568.445-PR, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, Rel. Acd. Min.
Ribeiro Dantas, julgado em 24/06/2020 (Info 677).
Uma vez intimada a pessoa
jurídica para o cumprimento da ordem judicial, o que se espera é a sua
concretização. No entanto, caracterizada a mora no seu cumprimento, o
magistrado não pode ficar à mercê de um procedimento próprio à espera da
realização da ordem, que pode não ser cumprida.
Em razão da natureza das
astreintes e do poder geral de cautela do magistrado, este deve ter uma maneira
para estimular o terceiro ao cumprimento da ordem judicial, sobretudo pela
relevância para o deslinde de condutas criminosas.
Fica-se, então, na ponderação
entre esses valores: de um lado, o interesse da coletividade, que pode ser
colocado a perder pelo descumprimento ou mora; do outro, o patrimônio
eventualmente constrito, que, inclusive, pode ser posteriormente liberado.
Por fim, é importante enfatizar
não haver um procedimento legal específico, nem tampouco previsão de
instauração do contraditório. Como visto, por derivar do poder geral de
cautela, cabe ao magistrado, diante do caso concreto, avaliar qual a melhor
medida coativa ao cumprimento da determinação judicial, não havendo impedimento
ao emprego do sistema Bacen-Jud.
Caso ocorra o
descumprimento e haja o recolhimento da multa, quem será o destinatário dos
valores?
• No processo civil: o valor da multa deve ser revertido em
favor da pessoa que seria beneficiada com a conduta que deveria ter sido
cumprida. É que o prevê atualmente, de forma expressa, o art. 537, § 2º do CPC/2015:
Art. 537 (...)
§ 2º O valor da multa será devido ao
exequente.
• No processo penal: os valores deverão ser revertidos ao Estado (em sentido amplo). Logo, se aplicada a multa pela Justiça federal, eventuais valores bloqueados serão revertidos em favor da União; se, porém, a medida foi adotada pela Justiça estadual, os valores deverão ficar com o Estado-membro respectivo.