Olá, amigos do Dizer o Direito,
O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) editou a Resolução nº 221/2020, dispondo sobre a atuação do Ministério Público nas audiências de custódia.
Irei resumir os principais pontos
da Resolução. No entanto, penso que antes seja necessário relembrar em que
consiste a audiência de custódia.
AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA
Audiência de custódia
Audiência de custódia consiste...
- no direito que a pessoa presa
possui
- de ser conduzida (levada),
- sem demora (em até 24h),
- à presença de uma autoridade
judicial (magistrado)
- que irá analisar se os direitos
fundamentais dessa pessoa foram respeitados (ex: se não houve tortura)
- se a prisão em flagrante foi
legal ou se deve ser relaxada (art. 310, I, do CPP)
- e se a prisão cautelar (antes
do trânsito em julgado) deve ser decretada (art. 310, II) ou se o preso poderá
receber a liberdade provisória (art. 310, III) ou medida cautelar diversa da
prisão (art. 319).
Previsão
A audiência de custódia é
prevista na Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), que ficou conhecida
como “Pacto de San Jose da Costa Rica”, promulgada no Brasil pelo Decreto
678/92.
Veja o que
diz o artigo 7º, item 5, da Convenção:
Artigo 7º - Direito à liberdade
pessoal
(...)
5. Toda pessoa presa, detida ou retida
deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade
autorizada por lei a exercer funções judiciais (...)
Regulamentação
Até o final de 2019, não havia
uma lei (em sentido estrito) no Brasil disciplinando a audiência de custódia.
Diante desse cenário e a fim de
dar concretude à previsão da CADH, o STF, em 09/09/2015, deferiu medida
cautelar na ADPF 347/DF e determinou que, no prazo de até 90 dias, os Juízes e
Tribunais viabilizassem “o comparecimento do preso perante a autoridade
judiciária no prazo máximo de 24 (vinte e quatro) horas, contado do momento da
prisão” (Rel. Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, DJe 19/02/2016)
Em 15/12/2015, o Conselho
Nacional de Justiça editou a Resolução nº 213, disciplinando a audiência de
custódia.
No fim de 2019, foi editada a Lei
nº 13.964/2019 (chamada de Pacote Anticrime) inserindo no CPP a previsão
expressa da audiência de custódia.
A audiência de custódia deve ser
realizada apenas em casos de prisão em flagrante ou também nas demais espécies
de prisão (exs: prisão preventiva, prisão temporária etc)?
Também nas
demais espécies. Nesse sentido, veja o que diz o art. 13 da Resolução 213/2015
do CNJ:
Art. 13. A apresentação à autoridade
judicial no prazo de 24 horas também será assegurada às pessoas presas em
decorrência de cumprimento de mandados de prisão cautelar ou definitiva, aplicando-se,
no que couber, os procedimentos previstos nesta Resolução.
Parágrafo único. Todos os mandados de
prisão deverão conter, expressamente, a determinação para que, no momento de
seu cumprimento, a pessoa presa seja imediatamente apresentada à autoridade
judicial que determinou a expedição da ordem de custódia ou, nos casos em que
forem cumpridos fora da jurisdição do juiz processante, à autoridade judicial
competente, conforme lei de organização judiciária local.
A nova
redação o art. 287 do CPP, dada pela Lei nº 13.964/2019, também indica que não
apenas a prisão em flagrante, mas também as prisões decorrentes de mandado (ex:
prisão preventiva) ensejam a realização de audiência de custódia. Veja:
Art. 287. Se a infração for
inafiançável, a falta de exibição do mandado não obstará a prisão, e o preso,
em tal caso, será
imediatamente apresentado ao juiz que tiver expedido o mandado, para a
realização de audiência de custódia.
RESOLUÇÃO 221/2020-CNMP
Participação obrigatória do
MP
A participação do membro do
Ministério Público na audiência de custódia é obrigatória.
Essa participação é uma
atribuição que decorre do papel constitucional que o MP possui de:
• ser o titular da ação penal; e
• de exercer o controle externo
da atividade policial.
Mesmo que a audiência seja realizada
fora do fórum, o MP deverá comparecer
O membro do Ministério Público
deverá deslocar-se ao local assinalado para assegurar a realização do ato
judicial nos casos em que a autoridade judicial designe audiência de custódia no
local onde se encontre a pessoa presa, fora das dependências do juízo, por
motivo de grave enfermidade, aqui incluídos casos de sofrimento psíquico grave ou
outra circunstância excepcional.
Membro do MP precisa buscar
elementos para poder se manifestar na audiência
O membro do Ministério Público diligenciará
para reunir elementos que subsidiarão sua manifestação na audiência de custódia.
Em outras palavras, ele deverá buscar
informações, certidões e eventualmente documentos sobre o caso a fim de poder ter
elementos para se manifestar sobre a legalidade da prisão e, em especial, sobre
a necessidade ou não da prisão.
Exemplos de elementos que o
membro deve buscar
O membro do Ministério Público
adotará providências para ter prévio acesso:
I – aos assentamentos anteriores
da pessoa presa, com o objetivo de amparar a manifestação sobre seu perfil
pessoal;
II – a eventuais atos de
encaminhamento da pessoa presa a serviços de proteção social, de assistência à
saúde e de atenção psicossocial;
III – aos resultados de exame de
corpo de delito já realizados na pessoa presa;
IV – às ordens de medidas
protetivas de urgência eventualmente decretadas em face da pessoa presa, se o
motivo da prisão for crime que envolva violência doméstica e familiar contra a
mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência.
O membro do MP deve obter os
documentos diretamente, só requerendo ao Poder Judiciário se não for possível
obtê-los diretamente.
Assim, somente na impossibilidade
de ter prévio acesso aos documentos é que o membro do Ministério Público
diligenciará perante o juízo para obtê-los, a qualquer momento.
MP deve se certificar que os
agentes de Estado não estão participando da audiência de custódia
O art. 4º, parágrafo único, da Resolução nº 213/2015, do
CNJ, afirma que
Art. 4º (...) Parágrafo único. É vedada
a presença dos agentes policiais responsáveis pela prisão ou pela investigação
durante a audiência de custódia.
O objetivo é permitir que o preso possa se sentir à vontade para relatar caso tenha sofrido alguma forma de violência física ou psicológica por parte dos agentes estatais.
A Resolução nº 221/2020, do CNMP, prevê que o membro do MP
deverá fiscalizar para essa garantia seja respeitada. Confira o que diz o art.
3º da Resolução do CNMP:
Art. 3º O membro do Ministério Público
adotará providências para assegurar que os agentes de Estado responsáveis pela
prisão ou investigação do fato determinante da prisão não estejam presentes na
audiência de custódia.
O que o juiz deverá perguntar e
fazer durante a audiência:
De acordo com o art. 8º da Resolução
nº 213/2015, do CNJ, na audiência de custódia, o juiz entrevistará a pessoa
presa em flagrante, devendo:
1) esclarecer o que é a audiência
de custódia, ressaltando as questões a serem analisadas pela autoridade
judicial;
2) assegurar que a pessoa presa
não esteja algemada, salvo em casos de resistência e de fundado receio de fuga
ou de perigo à integridade física própria ou alheia, devendo a excepcionalidade
ser justificada por escrito;
3) dar ciência sobre seu direito
de permanecer em silêncio;
4) questionar se lhe foi dada
ciência e efetiva oportunidade de exercício dos direitos constitucionais
inerentes à sua condição, particularmente o direito de consultar-se com
advogado ou defensor público, o de ser atendido por médico e o de comunicar-se
com seus familiares;
5) indagar sobre as
circunstâncias de sua prisão ou apreensão;
6) perguntar sobre o tratamento
recebido em todos os locais por onde passou antes da apresentação à audiência,
questionando sobre a ocorrência de tortura e maus tratos e adotando as
providências cabíveis;
7)
verificar se houve a realização de exame de corpo de delito, determinando sua
realização nos casos em que:
a) não tiver sido realizado;
b) os registros se mostrarem
insuficientes;
c) a alegação de tortura e maus
tratos referir-se a momento posterior ao exame realizado;
d) o exame tiver sido realizado
na presença de agente policial;
8) abster-se de formular
perguntas com finalidade de produzir prova para a investigação ou ação penal
relativas aos fatos objeto do auto de prisão em flagrante;
9) adotar as providências a seu
cargo para sanar possíveis irregularidades;
10) averiguar, por perguntas e
visualmente, hipóteses de gravidez, existência de filhos ou dependentes sob
cuidados da pessoa presa em flagrante delito, histórico de doença grave,
incluídos os transtornos mentais e a dependência química, para analisar o cabimento
de encaminhamento assistencial e da concessão da liberdade provisória, sem ou
com a imposição de medida cautelar.
Perguntas do MP e depois da
defesa
Após o juiz ouvir a pessoa presa,
deverá conceder a palavra ao Ministério Público e depois à defesa técnica, para
que estes façam reperguntas compatíveis com a natureza do ato, devendo
indeferir as perguntas relativas ao mérito dos fatos que possam constituir
eventual imputação.
Consentimento esclarecido e
outras salvaguardas
Seguindo as diretrizes do
Protocolo de Instambul, também denominado de “Manual para a Investigação e Documentação
Eficazes da Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes,
deve-se assegurar que a alegada vítima seja informada, sempre que possível, da
natureza do procedimento, das razões pelas quais é solicitado seu depoimento e
da utilização a ser eventualmente dada às provas apresentadas.
Deve-se explicar à pessoa quais
os elementos do inquérito que serão tornados públicos e quais permanecerão em
sigilo.
Uma informação muito importante:
a vítima tem o direito de se recusar a cooperar na totalidade ou em parte da
investigação.
Contexto do depoimento
Deverá ser concedido tempo
suficiente para a oitiva da presumível vítima de tortura.
Deve-se demonstrar sensibilidade
no tom, na formulação e na sequência das perguntas, dado eventual efeito
traumático que a prestação de depoimento tem para a vítima de tortura.
A pessoa deverá ser informada de
seu direito de interromper o interrogatório a qualquer momento, para fazer uma
pausa se assim o desejar, ou de recusar responder a qualquer questão.
As pessoas não devem ser forçadas
a falar sobre qualquer forma de tortura se não se sentirem à vontade para o
fazer.
O que o MP deverá perguntar?
O art. 4º da
Resolução nº 221/2020, do CNMP, prevê que:
Art. 4º Após a inquirição pelo juiz, o
membro do Ministério Público deverá formular, suplementarmente, questionamentos
que se dirijam ao esclarecimento das circunstâncias da prisão, da realização do
exame de corpo de delito e de eventual notícia de maus-tratos ou de tortura
sofridos pela pessoa presa.
Havendo notícia de maus-tratos ou
de tortura sofridos pela pessoa presa, os questionamentos do Ministério Público
deverão se dirigir à descrição dos fatos e suas circunstâncias, à identificação
e qualificação dos autores das agressões, bem como de eventuais testemunhas, da
forma mais completa possível, respeitando-se a vontade da vítima.
Informações a obter da
presumível vítima
Os questionamentos devem
dirigir-se à obtenção do máximo de elementos possíveis quanto aos aspectos
indicados a seguir:
a) circunstâncias da detenção e
dos atos de tortura ou de maus-tratos: incluem a indicação de data e hora,
duração da detenção, frequência e duração das ações noticiadas de maus-tratos,
agressões ou tortura, bem como identificação das pessoas participantes da
captura, detenção e prática desses atos, assim como de possíveis testemunhas.
b) local e condições da detenção:
é possível inquirir sobre a descrição do local onde aconteceu cada uma das
ações, com vista ao detalhamento das instalações possíveis de ocorrência dos
fatos. Incluem-se aqui questões relativas ao acesso da pessoa à alimentação e a
instalações sanitárias. Recomenda-se que se obtenha a descrição dos alimentos e
bebidas disponíveis, das instalações sanitárias e das condições de iluminação,
temperatura e ventilação.
c) métodos de tortura e
maus-tratos: pode-se pedir a descrição dos atos de tortura e maus-tratos,
incluindo os métodos utilizados, lesões físicas provocadas pela tortura e
descrição de armas ou outros instrumentos utilizados.
Questões de gênero
Os questionamentos deverão
considerar o gênero da pessoa custodiada, dos agentes responsáveis pelos fatos
noticiados de tortura e maus-tratos, bem assim as distintas qualidades de
relatos produzidos em face do gênero do próprio membro do Ministério Público
com atribuição para a audiência de custódia. A adequação da linguagem e do tom
do entrevistador, bem como a presença de pessoas do mesmo gênero ou de gênero diverso,
podem ser necessárias nesse contexto.
Requisições do MP
O membro do Ministério Público
requisitará a realização de exame de corpo de delito nos casos em que:
I – essa modalidade de prova não
tenha sido realizada;
II – os registros se mostrem
insuficientes;
III – a alegação de maus-tratos
ou tortura refira-se a momento posterior ao exame realizado;
IV – o exame tenha-se realizado
na presença do agente policial de quem se noticia a prática de maus-tratos ou
de tortura ou de quaisquer ilegalidades no curso da prisão.
O Ministério Público poderá também
requerer a realização de registro fotográfico e audiovisual sempre que a pessoa
custodiada apresentar relatos ou sinais de tortura ou tratamentos cruéis,
desumanos ou degradantes.
Verificar se pessoa presa
está grávida ou se tem filhos ou dependentes sob seus cuidados
O membro do Ministério Público
deverá averiguar, por perguntas e visualmente, hipóteses de gravidez,
existência de filhos ou dependentes sob cuidados da pessoa presa em flagrante
delito, histórico de doença grave, incluídos os transtornos mentais e a
dependência química, para analisar a hipótese de requerer encaminhamento
assistencial e a concessão da liberdade provisória, com a imposição de medida
cautelar, ou encaminhar o caso para o órgão do Ministério Público com
atribuição para a curadoria de saúde.
Requerimentos do MP após a
oitiva
Após os esclarecimentos, o membro
do Ministério Público deverá requerer, conforme o caso:
I – o relaxamento da prisão em
flagrante;
II – a concessão da liberdade
provisória com aplicação de medida cautelar diversa da prisão;
III – a conversão da prisão em
prisão preventiva;
IV – a adoção de outras medidas
necessárias à preservação de direitos da pessoa presa.
O pedido de aplicação de medida
cautelar diversa da prisão (art. 319 do CPP) deverá ser fundamentado na
necessidade e na adequação da medida eleita para o caso concreto.
Crimes que envolvam
violência doméstica e familiar contra mulher, criança, adolescente, idoso,
enfermo ou pessoa com deficiência
Nos crimes que envolvam violência
doméstica e familiar contra mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou
pessoa com deficiência, o membro do Ministério Público:
I – diligenciará para assegurar
que, caso a vítima tenha formulado pedido de medidas protetivas de urgência
quando do registro da ocorrência, tais pedidos sejam apreciados pelo juiz da
audiência de custódia quando da eventual concessão de liberdade provisória ao
autuado;
II – avaliará a conveniência de
requerer medidas protetivas de urgência para condicionarem a liberdade do
autuado, mesmo que a vítima não tenha formulado requerimentos de tal natureza;
III – requererá ao juízo, no caso
de concessão e liberdade provisória ao autuado, para que se realize a intimação
da vítima, nos termos do art. 21 da Lei Maria da Penha.
IV – analisará a presença de
fatores de risco próprios do contexto dessa forma de criminalidade para avaliar
a necessidade de requerimento de decretação da prisão preventiva, especialmente
em casos de desobediência à ordem de medida protetiva de urgência.
Se houver indícios de que a
pessoa presa sofreu maus-tratos ou tortura
Havendo notícia da prática de
maus-tratos ou de tortura, o membro do Ministério Público avaliará a
necessidade de requerer a concessão da medida de proteção cabível, primordialmente
para assegurar a integridade pessoal do denunciante, das testemunhas, do servidor
que constatou a ocorrência da prática abusiva e de seus familiares. Se
conveniente, avaliará ainda a formulação de pedido de sigilo das informações.
Além disso, o membro do
Ministério Público que participou da audiência deverá, imediatamente,
requisitar a instauração de investigação dos fatos noticiados ou determinar a
abertura de procedimento de investigação criminal, sem prejuízo da atribuição
do membro do Ministério Público com atuação perante o juízo competente para
eventual e futura ação penal.
O Ministério Público diligenciará
para que o registro das declarações prestadas pelo preso na audiência de
custódia, em mídia ou em qualquer outro tipo de documentação, instrua os autos
da apuração da notícia de maus-tratos ou de tortura.