Imagine a seguinte situação
hipotética:
João tentou matar sua esposa Regina,
com golpes de faca, quando ela saía de um culto religioso, por imaginar ter
sido traído.
O agente confessou a prática do
crime, que também foi presenciado por testemunhas.
João foi levado a julgamento pelo
Plenário do Tribunal do Júri.
Concluídos os debates, o juiz, o
membro do MP, o advogado e os sete jurados foram para a sala especial, tendo
sido formulados os seguintes quesitos:
1º) Quesito sobre a materialidade
do fato:
“Em XX, por volta de XX horas, na
Rua XX, bairro XX, nesta Comarca, a vítima foi atingida por golpes de faca,
sofrendo as lesões descritas no laudo de fls. XX?”
Por meio das cédulas, os jurados
responderam SIM.
2º) Quesito sobre a autoria:
“O acusado foi o autor dos golpes
de faca?”
Os jurados igualmente responderam
SIM a esse quesito.
3º) Quesito genérico da
absolvição:
“O jurado absolve o acusado?”
Quanto a esse quesito, os jurados
também responderam SIM.
Diante disso, o juiz encerrou a votação e prolatou sentença
absolvendo o réu.
Recurso
O Promotor de
Justiça interpôs apelação afirmando que a decisão dos jurados foi manifestamente
contrária à prova dos autos. Essa hipótese de cabimento é prevista no art. 593,
III, “d”, do CPP:
Art. 593. Caberá apelação no prazo de 5
(cinco) dias:
(...)
III - das decisões do Tribunal do Júri,
quando:
(...)
d) for a decisão dos jurados manifestamente
contrária à prova dos autos.
O Tribunal de Justiça deu
provimento ao recurso para determinar a realização de novo Júri.
Habeas corpus
A defesa do
réu não concordou com o acórdão e impetrou habeas corpus alegando que a decisão
do TJ afrontou a soberania dos jurados, prevista no art. 5º, XXXVIII, da CF/88:
Art. 5º (...)
XXXVIII - é reconhecida a instituição
do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:
(...)
c) a soberania dos veredictos;
O pedido foi acolhido pelo
STF? A decisão do TJ violou o art. 5º, XXXVIII, da CF/88?
SIM. O tema é polêmico, mas
atualmente o que prevalece no STF é que o TJ não pode dar provimento à apelação
interposta contra decisão do Tribunal do Júri que tenha absolvido o réu.
Vamos entender com calma.
Como funciona o recurso
contra a decisão do Tribunal do Júri?
O Júri é uma instituição voltada
a assegurar a participação cidadã na Justiça Criminal. Como forma de valorizar
essa participação, a Constituição consagrou o princípio da soberania dos
veredictos (art. 5º, XXXVIII, “c”, CF/88).
Em decorrência desse princípio, a
única possibilidade de recurso contra a decisão de mérito dos jurados é a
apelação prevista no art. 593, III, “d”, do CPP (decisão manifestamente
contrária à prova dos autos).
Se essa apelação for provida pelo
TJ (ou TRF), o réu será submetido – uma única vez – a novo julgamento pelos
jurados.
Assim, o Tribunal de 2ª instância
(togado) só poderá dar provimento à apelação com base neste fundamento uma única
vez.
Explicando melhor: imagine que o
réu foi condenado pelo júri. A defesa interpôs apelação. O TJ determinou que
seja feito um novo júri. Se os jurados (que serão outros sorteados) decidirem
novamente que o réu deverá ser condenado, ainda que a defesa recorra, o
Tribunal não mais poderá dar provimento à apelação sob o fundamento de que a
decisão do júri foi manifestamente contrária à prova dos autos.
Dito de outro modo, o argumento
do Tribunal de que a decisão dos jurados foi manifestamente contrária à prova
dos autos só pode ser utilizado uma única vez.
Nesse sentido,
veja o que diz o § 3º do art. 593:
Art. 593. Caberá apelação no prazo de 5
(cinco) dias:
(...)
III - das decisões do Tribunal do Júri,
quando:
(...)
d) for a decisão dos jurados
manifestamente contrária à prova dos autos.
(...)
§ 3º Se a apelação se fundar no nº III,
d, deste artigo, e o tribunal ad quem se convencer de que a decisão dos jurados
é manifestamente contrária à prova dos autos, dar-lhe-á provimento para
sujeitar o réu a novo julgamento; não se admite, porém, pelo mesmo motivo,
segunda apelação.
Tese de que esse art. 593,
III, “d”, do CPP só vale para decisões condenatórias
Até 2008, não havia qualquer
dúvida de que essa possibilidade de apelação poderia ser aplicada tanto para
decisões condenatórias como absolutórias proferidas pelo Tribunal do Júri.
Assim, se o júri condenasse o réu,
a defesa poderia interpor a apelação alegando que a decisão era manifestamente
contrária à prova dos autos.
Da mesma forma, se o júri
absolvesse o réu, o Ministério Público também poderia interpor apelação argumentando
que a decisão era manifestamente contrária à prova dos autos e pedindo a
realização de novo júri.
Ocorre que, em 2008, foi editada a Lei nº 11.689, que
incluiu o § 2º ao art. 483 do CPP prevendo um quesito genérico de absolvição do
réu:
Art. 483. Os quesitos serão formulados
na seguinte ordem, indagando sobre:
I – a materialidade do fato;
II – a autoria ou participação;
III – se o acusado deve ser absolvido;
IV – se existe causa de diminuição de
pena alegada pela defesa;
V – se existe circunstância
qualificadora ou causa de aumento de pena reconhecidas na pronúncia ou em
decisões posteriores que julgaram admissível a acusação.
(...)
§ 2º Respondidos afirmativamente por
mais de 3 (três) jurados os quesitos relativos aos incisos I e II do caput
deste artigo será formulado quesito com a seguinte redação:
O jurado absolve o acusado?
Diante disso, como esse quesito é
genérico, diversos doutrinadores sustentaram a tese de que os jurados
Passaram a gozar de ampla e
irrestrita autonomia no momento de decidir pela absolvição, não se achando
adstritos nem vinculados, em seu processo decisório, às teses suscitadas em
plenário ou a quaisquer outros fundamentos de índole estritamente jurídica.
Assim, a decisão dos jurados não
está vinculada à prova dos autos. Eles podem absolver o réu porque ficaram com “pena”
dele, por exemplo. É a chamada absolvição por clemência.
Veja o que explica o Prof. Aury Lopes Jr.:
“Com a nova
sistemática do tribunal do júri – inserida na reforma de 2008 e ainda sendo
assimilada –, foi inserido o famoso quesito genérico da absolvição
(obrigatório), estabelecendo-se um novo problema: será que ainda tem cabimento
a apelação por ser a decisão manifestamente contrária à prova dos autos (artigo
593, III, ‘d’) quando o réu é absolvido ou condenado com base na votação do
quesito ‘o jurado absolve o acusado?’
Já que está
autorizado que o jurado absolva por qualquer motivo, por suas próprias razões,
mesmo que elas não encontrem amparo na prova objetivamente produzida nos autos,
será que ainda cabe esse recurso? A resposta sempre nos pareceu negativa, não
cabendo mais esse recurso por parte do Ministério Público quando a absolvição
for com base no quesito genérico, até porque a resposta não precisa refletir e
encontrar respaldo na prova, ao contrário dos dois primeiros (materialidade e
autoria), que seguem exigindo ancoragem probatória pela própria determinação
com que são formulados. O réu pode ser legitimamente absolvido por qualquer
motivo, inclusive metajurídico, como é a ‘clemência’ e aqueles de caráter humanitário.
Obviamente, o
recurso com base na letra ‘d’ segue sendo admitido contra a decisão
condenatória, pois não existe um quesito genérico para condenação. Para
condenar, estão os jurados adstritos e vinculados à prova dos autos, de modo
que a condenação ‘manifestamente contrária à prova dos autos’ pode e deve ser
impugnada com base no artigo 593, III, ‘ d’. É regra elementar do devido
processo penal. Sublinhe-se: o que a reforma de 2008 inseriu foi um quesito
genérico para absolver por qualquer motivo, não para condenar. Portanto, a
sentença condenatória somente pode ser admitida quando amparada pela prova.” (“Tribunal
do Júri: A Problemática Apelação do Artigo 593, III, do CPP”. CONJUR. Disponível
em https://www.conjur.com.br/2017-ago-18/limite-penal-tribunal-juri-problematica-apelacao-artigo593-iii-cpp).
O STJ acolhe essa tese
defensiva? A possibilidade de apelação com base no art. 593, III, “d”, do CPP
passou a ser exclusiva da defesa quando o réu é condenado pelo Tribunal do Júri?
NÃO. O STJ, por meio da sua 3ª Seção,
pacificou o tema nos seguintes termos:
(...) 2. As decisões proferidas pelo conselho de sentença não
são irrecorríveis ou imutáveis, podendo o Tribunal ad quem, nos termos do art.
593, III, d, do CPP, quando verificar a existência de decisão manifestamente
contrária às provas dos autos, cassar a decisão proferida, uma única vez,
determinando a realização de novo julgamento, sendo vedada, todavia, a análise
do mérito da demanda.
3. A absolvição do réu pelos jurados, com base no art. 483, III,
do CPP, ainda que por clemência, não constitui decisão absoluta e irrevogável,
podendo o Tribunal cassar tal decisão quando ficar demonstrada a total
dissociação da conclusão dos jurados com as provas apresentadas em plenário.
Assim, resta plenamente possível o controle excepcional da decisão absolutória do
Júri, com o fim de evitar arbitrariedades e em observância ao duplo grau de
jurisdição.
Entender em sentido contrário exigiria a aceitação de que o
conselho de sentença disporia de poder absoluto e peremptório quanto à
absolvição do acusado, o que, ao meu ver não foi o objetivo do legislador ao
introduzir a obrigatoriedade do quesito absolutório genérico, previsto no art.
483, III, do CPP. (...)
STJ. 3ª Seção. HC 313.251/RJ, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik,
julgado em 28/02/2018.
Esse entendimento do STJ vem
sendo reiterado em julgados recentes: STJ. 5ª Turma. HC 560.668/SP, Rel. Min. Reynaldo
Soares da Fonseca, julgado em 18/08/2020.
E o STF?
A posição majoritária é no sentido de, tendo havido absolvição
pelos jurados, não cabe apelação a ser interposta pelo Ministério Público nem
mesmo na hipótese do art. 593, III, “d”, do CPP. Nesse sentido:
A
absolvição do réu, ante resposta a quesito genérico de absolvição previsto no
art. 483, § 2º, do CPP, não depende de elementos probatórios ou de teses
veiculadas pela defesa. Isso porque vigora a livre convicção dos jurados.
STF.
1ª Turma. HC 178777/MG, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 29/9/2020 (Info
993).
Na reforma legislativa de 2008, alterou-se substancialmente o
procedimento do júri, inclusive a sistemática de quesitação aos jurados.
Inseriu-se um quesito genérico e obrigatório, em que se pergunta ao julgador
leigo: “O jurado absolve o acusado?” (art. 483, III e §2º, CPP). Ou seja, o
Júri pode absolver o réu sem qualquer especificação e sem necessidade de
motivação.
Considerando o quesito genérico e a desnecessidade de motivação
na decisão dos jurados, configura-se a possibilidade de absolvição por
clemência, ou seja, mesmo em contrariedade manifesta à prova dos autos. Se ao
responder o quesito genérico o jurado pode absolver o réu sem especificar os
motivos, e, assim, por qualquer fundamento, não há absolvição com tal
embasamento que possa ser considerada “manifestamente contrária à prova dos
autos”.
Limitação ao recurso da acusação com base no art. 593, III, “d”,
CPP, se a absolvição tiver como fundamento o quesito genérico (art. 483, III e
§2º, CPP). Inexistência de violação à paridade de armas. Presunção de inocência
como orientação da estrutura do processo penal. Inexistência de violação ao
direito ao recurso (art. 8.2.h, CADH). Possibilidade de restrição do recurso
acusatório.
STF. 2ª Turma. HC 185068, Rel. Celso de Mello, Relator p/
Acórdão Gilmar Mendes, julgado em 20/10/2020.
A previsão normativa do quesito genérico de absolvição no
procedimento penal do júri (CPP, art. 483, III, e respectivo § 2º), formulada
com o objetivo de conferir preeminência à plenitude de defesa, à soberania do
pronunciamento do Conselho de Sentença e ao postulado da liberdade de íntima
convicção dos jurados, legitima a possibilidade de os jurados – que não estão
vinculados a critérios de legalidade estrita – absolverem o réu segundo razões
de índole eminentemente subjetiva ou de natureza destacadamente metajurídica,
como, p. ex., o juízo de clemência, ou de equidade, ou de caráter humanitário,
eis que o sistema de íntima convicção dos jurados não os submete ao acervo
probatório produzido ao longo do processo penal de conhecimento, inclusive à
prova testemunhal realizada perante o próprio plenário do júri. Isso significa,
portanto, que a apelação do Ministério Público, fundada em alegado conflito da
deliberação absolutória com a prova dos autos (CPP, art. 593, III, “d”), caso
admitida fosse, implicaria frontal transgressão aos princípios constitucionais
da soberania dos veredictos do Conselho de Sentença, da plenitude de defesa do
acusado e do modelo de íntima convicção dos jurados, que não estão obrigados –
ao contrário do que se impõe aos magistrados togados (art. 93, IX, da CF/88) –
a decidir de forma necessariamente motivada, mesmo porque lhes é assegurado,
como expressiva garantia de ordem constitucional, “o sigilo das votações” (CF,
art. 5º, XXXVIII, “b”), daí resultando a incognoscibilidade da apelação
interposta pelo “Parquet”.
STF. 2ª Turma. HC 178856, Rel. Celso de Mello, julgado em
10/10/2020.
Vale ressaltar, no entanto, que
existem Ministros que já se manifestaram contrariamente a essa tese: Luiz Fux,
Alexandre de Moraes, Roberto Barroso, Edson Fachin e Cármen Lúcia.
Repercussão Geral – Tema 1087
Vale
ressaltar que a questão será pacificada quando o STF julgar o ARE 1225185 RG, submetido
ao regime da repercussão geral. Trata-se do Tema 1087: Possibilidade de
Tribunal de 2º grau, diante da soberania dos veredictos do Tribunal do Júri, determinar
a realização de novo júri em julgamento de recurso interposto contra absolvição
assentada no quesito genérico, ante suposta contrariedade à prova dos autos.
A
definição quanto ao tema dependerá da posição que será adotada pelo Min. Nunes
Marques e pelo julgador que suceder o Min. Marco Aurélio quando de sua
aposentadoria.
Atualizar o Info 969 do STF
No Info 969, foi divulgada
decisão em sentido contrário ao explicado acima:
A anulação de decisão do tribunal do júri, por ser
manifestamente contrária à prova dos autos, não viola a regra constitucional
que assegura a soberania dos veredictos do júri (art. 5º, XXXVIII, c, da
CF/88).
Vale ressaltar, ainda, que não há contrariedade à cláusula de
que ninguém pode ser julgado mais de uma vez pelo mesmo crime. Ainda que se
forme um segundo Conselho de Sentença, o julgamento é um só, e termina com o
trânsito em julgado da decisão.
STF. 1ª Turma.
RHC 170559/MT, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min.
Alexandre de Moraes, julgado em 10/3/2020 (Info 969).
A mudança de entendimento se deve
à alteração na composição do colegiado, em razão da saída do Min. Luiz Fux para
a Presidência da Corte e do ingresso do Min. Dias Toffoli na 1ª Turma.
O Min. Luiz Fux votava pela possibilidade da apelação, enquanto que o Min. Dias Toffoli entende que deve prevalecer a soberania dos veredictos.