Dizer o Direito

domingo, 29 de novembro de 2020

É legítima a incidência de contribuição social, a cargo do empregador, sobre os valores pagos ao empregado a título de terço constitucional de férias gozadas


Contribuições para a seguridade social

A CF/88 prevê, em seu art. 195, as chamadas “contribuições para a seguridade social”.

Consistem em uma espécie de tributo cuja arrecadação é utilizada para custear a seguridade social (saúde, assistência e previdência social). Veja o texto da Constituição:

Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:

I - do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre:

a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício;

b) a receita ou o faturamento;

c) o lucro;

II - do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, não incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral de previdência social de que trata o art. 201;

III - sobre a receita de concursos de prognósticos;

IV - do importador de bens ou serviços do exterior, ou de quem a lei a ele equiparar.

 

A CF/88 determina que os recursos arrecadados com as contribuições previstas no art. 195, I, “a” e II serão destinados exclusivamente para o pagamento de benefícios previdenciários do RGPS (administrado pelo INSS).

Em razão disso, a maioria dos autores de Direito Previdenciário denomina as contribuições do art. 195, I, “a” e II de “contribuições previdenciárias”, como se fossem uma subespécie das contribuições para a seguridade social. Nesse sentido: Frederico Amado.

 

Contribuições previdenciárias

A contribuição previdenciária é uma espécie de tributo cujo dinheiro arrecadado é destinado ao pagamento dos benefícios do RGPS (aposentadoria, auxílio-doença, pensão por morte etc.)

Existem duas espécies de contribuição previdenciária:

Paga por quem

Incide sobre o que

1ª) Trabalhador e demais segurados do RGPS (art. 195, II).

Incide sobre o salário de contribuição, exceto no caso do segurado especial.

2ª) Empregador, empresa ou entidade equiparada (art. 195, I, “a”).

Incide sobre a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício.

 

Para que incida a contribuição previdenciária sobre os valores pagos aos empregados é necessário que a verba paga tenha duas características cumulativas:

a) precisa ter natureza remuneratória; e

b) deve ter um caráter de habitualidade.

Vamos analisar se os valores pagos a título de férias estão, ou não, sujeitos à contribuição previdenciária.

 

Férias

O art. 7º, XVII, da CF/88 assegura aos trabalhadores o direito a férias anuais.

No mês das férias, o trabalhador, além de ter direito ao descanso, receberá uma verba adicional correspondente a um terço a mais do seu salário normal. A isso chamamos de “terço constitucional de férias” porque foi introduzido pela CF/88.

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

(...)

XVII - gozo de férias anuais remuneradas com, pelo menos, um terço a mais do que o salário normal;

 

Ex: João recebe o salário de R$ 1 mil. Na época das férias, ele receberá R$ 1.300,00, ou seja, o salário normal (R$ 1 mil) acrescido de um terço (R$ 300,00).

 

Incide contribuição previdenciária sobre o salário do trabalhador pago durante as férias por ele gozadas? Ex: no mês de março João estava de férias, mesmo assim, a empresa terá que pagar a contribuição previdenciária?

SIM. Incide contribuição previdenciária sobre o pagamento de férias gozadas. Isso porque essa verba possui natureza remuneratória e salarial, nos termos do art. 148 da CLT. Logo, integra o salário de contribuição.

Em nosso exemplo, a alíquota da contribuição será aplicada sobre os R$ 1 mil.

 

Incide contribuição previdenciária sobre o valor do terço de férias gozadas? No momento de fazer o cálculo da quantia que a empresa irá pagar como contribuição previdenciária, deverá a alíquota recair também sobre o terço de férias?

• STJ: decidiu que não, ou seja, que não deveria incidir. Isso porque, para o STJ, o terço de férias gozadas não teria natureza remuneratória e, além disso, não seria um ganho habitual do empregado. Logo, não preencheu nenhum dos dois requisitos acima mencionados. Veja:

A importância paga a título de terço constitucional de férias possui natureza indenizatória/compensatória, e não constitui ganho habitual do empregado, razão pela qual sobre ela não é possível a incidência de contribuição previdenciária (a cargo da empresa).

STJ. 1ª Seção. REsp 1230957/RS, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 26/02/2014 (Recurso Repetitivo – Tema 479) (Info 536).

 

Assim, em nosso exemplo, segundo o entendimento do STJ, a empresa teria que pagar a contribuição previdenciária sobre o valor das férias (alíquota que incidirá sobre 1.000 reais), mas não sobre o valor do terço de férias (300 reais).

 

• STF: seis anos depois do entendimento acima fixado, o STF decidiu de forma diversa. Confira:

É legítima a incidência de contribuição social, a cargo do empregador, sobre os valores pagos ao empregado a título de terço constitucional de férias gozadas.

STF. Plenário. RE 1072485, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 31/08/2020 (Repercussão Geral – Tema 985) (Info 993 – clipping).

 

Para o STF, o terço constitucional de férias preenche esses dois pressupostos.

 

Primeiro requisito: ser verba remuneratória

Segundo o Min. Marco Aurélio, quando se fala em natureza remuneratória, isso engloba todos “os rendimentos pagos em decorrência do contrato de trabalho em curso”, com exceção das verbas nitidamente indenizatórias. Verbas nitidamente indenizatórias seria aquelas “destinadas a recompor o patrimônio jurídico do empregado, em razão de alguma perda ou violação de direito”.

O terço constitucional pago não teria caráter de verba indenizatória. Logo, seria remuneratória.

 

Segundo requisito: ter natureza de habitualidade

É habitual porque se trata de verba auferida, periodicamente, como complemento à remuneração. Adquire-se o direito, conforme o decurso do ciclo de trabalho, sendo um adiantamento em reforço ao que pago, ordinariamente, ao empregado, quando do descanso.

O contrário de habitual é eventual. Eventual é um recebimento desprovido de previsibilidade. Não se pode dizer que seja o pagamento do terço constitucional de férias seja eventual. Isso porque ele se repete em um contexto temporal e decorre de uma previsibilidade inerente ao contrato de trabalho.

 

Desse modo, como o tema envolve a interpretação do texto constitucional, o STJ terá que se adequar ao entendimento fixado pelo STF. Acompanhem.

Vale registrar que, no que se refere ao âmbito do imposto de renda, o STJ já tinha o entendimento de que essa verba tem natureza remuneratória. Veja:

Incide imposto de renda sobre o adicional de 1/3 (um terço) de férias gozadas.

Essa verba tem natureza remuneratória (e não indenizatória) e configura acréscimo patrimonial.

STJ. 1ª Seção. REsp 1459779-MA, Rel. para acórdão Min. Benedito Gonçalves, julgado em 22/04/2015 (recurso repetitivo) (Info 573).

 

Vamos analisar agora um último aspecto relacionado com o assunto.

 

O que acontece se a pessoa for mandada embora sem ter gozado as férias a que tem direito?

Nesse caso, o empregador deverá pagar uma indenização ao trabalhador. A isso chamamos de “férias indenizadas”. Além da indenização, o trabalhador receberá também o adicional de 1/3.

 

Incide contribuição previdenciária sobre o valor das férias indenizadas? Incide contribuição previdenciária sobre o valor do terço de férias indenizadas?

NÃO. A resposta é não para as duas perguntas.

Não incide contribuição previdenciária sobre o pagamento de férias indenizadas.

Também não incide contribuição previdenciária a cargo da empresa sobre o valor pago a título de terço constitucional de férias indenizadas.

A própria Lei nº 8.212/91 afirma que não incide a contribuição previdenciária. Veja:

Art. 28 (...)

§ 9º Não integram o salário-de-contribuição para os fins desta Lei, exclusivamente:

d) as importâncias recebidas a título de férias indenizadas e respectivo adicional constitucional, inclusive o valor correspondente à dobra da remuneração de férias de que trata o art. 137 da Consolidação das Leis do Trabalho-CLT;

 

Para finalizar, trago à colação os ensinamentos do Min. Maurício Godinho Delgado:

“Terço constitucional de férias é a parcela suplementar que se agrega, necessariamente, ao valor pertinente às férias trabalhistas, à base de um terço desse valor. À figura tem sido consignada também a equívoca denominação “abono constitucional de férias”.

A análise de sua natureza jurídica desenvolve-se a partir da constatação de que a verba tem nítido caráter acessório: trata-se de percentagem incidente sobre as férias. Como acessório que é, assume a natureza da parcela principal a que se acopla. Terá, desse modo, caráter salarial nas férias gozadas ao longo do contrato; terá natureza indenizatória nas férias indenizadas na rescisão.” (Curso de direito do trabalho. 11ª ed. São Paulo: LTr, 2012, p. 1003). 


sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Em regra, o Estado não tem responsabilidade civil por atos praticados por presos foragidos, salvo quando demonstrado nexo causal direto

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

João cumpria pena, em regime fechado, em um presídio.

Em 10/03/2010, ele conseguiu fugir e ficou escondido na casa de um amigo.

Três meses depois da fuga, João juntou-se a uma organização criminosa e eles foram praticar um roubo armada.

João atirou em uma das vítimas que acabou morrendo.

Alguns dias depois, João foi encontrado e preso, tendo retornado à unidade prisional.

Os familiares da vítima ajuizaram ação de indenização por danos morais e materiais contra o Estado alegando que o Poder Público também é responsável pelo evento tendo em vista que foi omisso e deixou de exercer vigilância do preso que estava sob a sua custódia.

 

Requisitos da responsabilidade civil do Estado

A responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito público e das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público é objetiva e baseia-se na teoria do risco administrativo.

Para a configuração do dever de indenizar é necessário o preenchimento dos seguintes requisitos:

a) ocorrência do dano;

b) ação ou omissão administrativa;

c) existência de nexo causal entre o dano e a ação ou omissão administrativa; e

d) ausência de causa excludente da responsabilidade estatal.

 

A responsabilidade civil do Estado em caso de omissão também é objetiva?

SIM. A jurisprudência do STF tem entendido que também é objetiva a responsabilidade civil decorrente de omissão, seja das pessoas jurídicas de direito público, seja das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público. Nesse sentido:

No tocante ao art. 37, § 6º, da Carta Magna, o entendimento do Supremo Tribunal Federal a respeito da matéria encontra-se firmado no sentido de que as pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público respondem objetivamente por suas ações ou omissões em face de reparação de danos materiais suportados por terceiros.

STF. 1ª Turma. ARE 1043232 AgR, Rel. Alexandre de Moraes, julgado em 01/09/2017.

 

Responsabilidade objetiva não é absoluta

O princípio da responsabilidade objetiva não é absoluto.

Como se adota a teoria do risco administrativo, o Estado poderá eximir-se do dever de indenizar caso prove alguma causa excludente de responsabilidade:

a) caso fortuito ou força maior;

b) culpa exclusiva da vítima;

c) culpa exclusiva de terceiro.

 

Ausência de causalidade direta

Não há como se reconhecer nexo causal entre uma suposta omissão genérica do Poder Público e o dano causado, e, consequentemente, não é possível imputar responsabilidade objetiva ao Estado.

No caso concreto, devem ser analisados:

a) o intervalo entre fato administrativo e o fato típico (critério cronológico); e

b) o surgimento de causas supervenientes independentes (v.g., formação de quadrilha), que deram origem a novo nexo causal, contribuíram para suprimir a relação de causa (evasão do apenado do sistema penal) e efeito (fato criminoso).

 

Confira o seguinte julgado do STF que, apesar de antigo, é emblemático:

A responsabilidade do Estado, embora objetiva, não dispensa, obviamente, o requisito, também objetivo, do nexo de causalidade entre a ação ou a omissão atribuída a seus agentes e o dano causado a terceiros.

Em nosso sistema jurídico, a teoria adotada quanto ao nexo de causalidade e a teoria do dano direto e imediato, também denominada teoria da interrupção do nexo causal.

O dano decorrente do assalto por uma quadrilha de que participava um dos evadidos da prisão não foi o efeito necessário da omissão da autoridade pública que o acórdão recorrido teve como causa da fuga dele, mas resultou de concausas, como a formação da quadrilha, e o assalto ocorrido cerca de vinte e um meses após a evasão.

STF. 1ª Turma. RE 130764, Rel. Moreira Alves, julgado em 12/05/1992.

 

Em suma:

Nos termos do artigo 37, § 6º, da Constituição Federal, não se caracteriza a responsabilidade civil objetiva do Estado por danos decorrentes de crime praticado por pessoa foragida do sistema prisional, quando não demonstrado o nexo causal direto entre o momento da fuga e a conduta praticada.

STF. Plenário. RE 608880, Rel. Min. Marco Aurélio, Relator p/ Acórdão Alexandre de Moraes, julgado em 08/09/2020 (Repercussão Geral – Tema 362) (Info 993). 


É constitucional a multa imposta ao defensor por abandono do processo, prevista no art. 265 do CPP

 

Multa por abandono do processo pelo defensor

O caput do art. 265 do CPP prevê a possibilidade de o juiz aplicar multa ao defensor (advogado ou Defensor Público) que “abandonar o processo”:

Art. 265. O defensor não poderá abandonar o processo senão por motivo imperioso, comunicado previamente o juiz, sob pena de multa de 10 (dez) a 100 (cem) salários mínimos, sem prejuízo das demais sanções cabíveis.

 

Segundo a Min. Cármen Lúcia, “o comportamento exigido pelo art. 265 do Código de Processo Penal para a não aplicação da multa nele prevista é que o advogado comunique ao juízo antes de deixar a defesa do réu ou informe a impossibilidade de prática dos atos processuais que lhe cabem.” (ADI 4398)

O art. 265 do CPP é complementado pelo art. 5º, § 3º da Lei nº 8.906/94 (Estatuto da OAB), de forma que o advogado fica ainda obrigado a continuar prestando assistência jurídica ao seu cliente durante 10 dias após avisar que está renunciando ao mandato, salvo se, antes disso, o próprio cliente já constituir um novo profissional para representá-lo:

Art. 265 (...)

§ 3º O advogado que renunciar ao mandato continuará, durante os dez dias seguintes à notificação da renúncia, a representar o mandante, salvo se for substituído antes do término desse prazo.

 

Infração disciplinar

O abandono do processo pode configurar infração disciplinar, nos termos do art. 34, XI, do Estatuto da OAB:

Art. 34. Constitui infração disciplinar:

(...)

XI - abandonar a causa sem justo motivo ou antes de decorridos dez dias da comunicação da renúncia;

 

O defensor precisa expor ao juiz o motivo pelo qual está abandonando o processo?

SIM. No entanto, não é necessário entrar em detalhes.

Ex: o advogado pode afirmar que está deixando o caso por divergências com o réu em relação às estratégias de defesa. Neste caso, não é preciso que o advogado detalhe quais são essas divergências.

 

O juiz pode discordar do motivo exposto?

NÃO. Não existe essa previsão legal, não devendo o magistrado analisar se o motivo aventado pode, ou não, ser considerado como “imperioso”.

 

O advogado que deixa de comunicar previamente o juiz está sujeito a quais consequências?

Ao pagamento de multa, fixada pelo juiz, em valor que varia de 10 a 100 salários-mínimos.

Vale ressaltar que, além disso, o advogado pode estar sujeito à eventual punição disciplinar, caso a situação se enquadre no art. 34, XI, do Estatuto da OAB. Essa sanção disciplinar, contudo, é aplicada pelo Tribunal de Ética da OAB (e não pelo Poder Judiciário).

 

Imagine que quem abandonou o processo sem prévia comunicação foi um Defensor Público. Neste caso, a multa do art. 265 do CPP deverá ser aplicada contra o Defensor Público ou contra a Defensoria Pública (instituição)?

Contra a Defensoria Pública.

O Defensor Público atua institucionalmente, não sendo razoável responsabilizá-lo pessoalmente se atuou em sua condição de agente presentante do órgão da Defensoria Pública.

Assim, as sanções aplicadas aos seus membros, nesse contexto, devem ser suportadas pela instituição, sem prejuízo de eventual ação regressiva, acaso verificado excesso nos parâmetros ordinários de atuação profissional, com abuso do direito de defesa:

A multa por abandono do plenário do júri por defensor público, com base no art. 265 do CPP, deve ser suportada pela Defensoria Pública, sem prejuízo de eventual ação regressiva.

STJ. 5ª Turma. RMS 54.183-SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, Rel. Acd. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 13/08/2019 (Info 658).

 

O fato de o juiz aplicar a multa prevista no art. 265 do CPP contra o advogado ou Defensor Público viola a autonomia da OAB e da Defensoria Pública, que têm a competência legal de impor sanções contra infrações disciplinares de seus membros?

NÃO.

A punição do advogado, nos termos do art. 265 do CPP, não entra em conflito com sanções aplicáveis pelos órgãos a que estão vinculados os causídicos, uma vez que estas têm caráter administrativo, e a multa do Código de Processo Penal tem caráter processual.

As instâncias judicial-penal e administrativa são independentes.

Além disso, o próprio texto da norma ressalva a possibilidade de aplicação de outras sanções. 

O reconhecimento de que os advogados, membros do Ministério Público e da Defensoria Pública exercem funções essenciais à Justiça não lhes outorga imunidade absoluta.

STJ. 5ª Turma. RMS 54.183-SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, Rel. Acd. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 13/08/2019 (Info 658).

 

A OAB ajuizou ADI contra a multa do caput do art. 265 do CPP alegando, entre outros argumentos, que ela violaria o livre exercício da advocacia (art. 133 da CF/88), além de não oferecer ao profissional a possibilidade de contraditório e ampla defesa. Essa tese foi acolhida pelo STF? Essa multa é inconstitucional?

NÃO.

 

Previsão está de acordo com os princípios da razoabilidade e proporcionalidade

A previsão de multa, de dez a cem salários mínimos, para o advogado que abandona injustificadamente o processo afigura-se compatível com os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.

A multa não se mostra inadequada nem desnecessária. Ao contrário, mostra-se razoável como meio prévio para evitar o comportamento prejudicial à administração da justiça e ao direito de defesa do réu, tendo em vista a imprescindibilidade da atuação do profissional da advocacia para o regular andamento do processo penal.

Embora elevado o valor da sanção estabelecida no art. 265 do CPP, não se mostra desproporcional ou desarrazoada, tendo em vista as graves consequências da conduta que se busca evitar.

Ademais, os parâmetros quantitativos previstos no dispositivo legal permitem ao magistrado fixar a pena com observância à gravidade da conduta do advogado e à sua capacidade econômica.

 

Não há ofensa ao contraditório e à ampla defesa

A multa do art. 265 do CPP não ofende o contraditório, a ampla defesa, o devido processo legal ou a presunção de não culpabilidade.

Não há necessidade de instauração de processo autônomo e de manifestação prévia do defensor, no entanto, é possível que ele se justifique.

O profissional que receber a multa poderá se insurgir no próprio processo em que aplicada a sanção, por pedido de reconsideração. Outra alternativa é a impetração de mandado de segurança contra a decisão pela qual imposta a multa quando não caracterizada a situação legal descrita.

 

Em suma:

É constitucional a multa imposta ao defensor por abandono do processo, prevista no art. 265 do CPP.

STF. Plenário. ADI 4398, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 05/08/2020 (Info 993). 




quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Cabe apelação com fundamento no art. 593, III, “d”, do CPP (decisão manifestamente contrária à prova dos autos) se o júri absolver o réu?

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

João tentou matar sua esposa Regina, com golpes de faca, quando ela saía de um culto religioso, por imaginar ter sido traído.

O agente confessou a prática do crime, que também foi presenciado por testemunhas.

João foi levado a julgamento pelo Plenário do Tribunal do Júri.

Concluídos os debates, o juiz, o membro do MP, o advogado e os sete jurados foram para a sala especial, tendo sido formulados os seguintes quesitos:

1º) Quesito sobre a materialidade do fato:

“Em XX, por volta de XX horas, na Rua XX, bairro XX, nesta Comarca, a vítima foi atingida por golpes de faca, sofrendo as lesões descritas no laudo de fls. XX?”

Por meio das cédulas, os jurados responderam SIM.

 

2º) Quesito sobre a autoria:

“O acusado foi o autor dos golpes de faca?”

Os jurados igualmente responderam SIM a esse quesito.

 

3º) Quesito genérico da absolvição:

“O jurado absolve o acusado?”

Quanto a esse quesito, os jurados também responderam SIM.

 

Diante disso, o juiz encerrou a votação e prolatou sentença absolvendo o réu.

 

Recurso

O Promotor de Justiça interpôs apelação afirmando que a decisão dos jurados foi manifestamente contrária à prova dos autos. Essa hipótese de cabimento é prevista no art. 593, III, “d”, do CPP:

Art. 593. Caberá apelação no prazo de 5 (cinco) dias:

(...)

III - das decisões do Tribunal do Júri, quando:

(...)

d) for a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos.

 

O Tribunal de Justiça deu provimento ao recurso para determinar a realização de novo Júri.

 

Habeas corpus

A defesa do réu não concordou com o acórdão e impetrou habeas corpus alegando que a decisão do TJ afrontou a soberania dos jurados, prevista no art. 5º, XXXVIII, da CF/88:

Art. 5º (...)

XXXVIII - é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:

(...)

c) a soberania dos veredictos;

 

O pedido foi acolhido pelo STF? A decisão do TJ violou o art. 5º, XXXVIII, da CF/88?

SIM. O tema é polêmico, mas atualmente o que prevalece no STF é que o TJ não pode dar provimento à apelação interposta contra decisão do Tribunal do Júri que tenha absolvido o réu.

Vamos entender com calma.

 

Como funciona o recurso contra a decisão do Tribunal do Júri?

O Júri é uma instituição voltada a assegurar a participação cidadã na Justiça Criminal. Como forma de valorizar essa participação, a Constituição consagrou o princípio da soberania dos veredictos (art. 5º, XXXVIII, “c”, CF/88).

Em decorrência desse princípio, a única possibilidade de recurso contra a decisão de mérito dos jurados é a apelação prevista no art. 593, III, “d”, do CPP (decisão manifestamente contrária à prova dos autos).

Se essa apelação for provida pelo TJ (ou TRF), o réu será submetido – uma única vez – a novo julgamento pelos jurados.

Assim, o Tribunal de 2ª instância (togado) só poderá dar provimento à apelação com base neste fundamento uma única vez.

Explicando melhor: imagine que o réu foi condenado pelo júri. A defesa interpôs apelação. O TJ determinou que seja feito um novo júri. Se os jurados (que serão outros sorteados) decidirem novamente que o réu deverá ser condenado, ainda que a defesa recorra, o Tribunal não mais poderá dar provimento à apelação sob o fundamento de que a decisão do júri foi manifestamente contrária à prova dos autos.

Dito de outro modo, o argumento do Tribunal de que a decisão dos jurados foi manifestamente contrária à prova dos autos só pode ser utilizado uma única vez.

Nesse sentido, veja o que diz o § 3º do art. 593:

Art. 593. Caberá apelação no prazo de 5 (cinco) dias:

(...)

III - das decisões do Tribunal do Júri, quando:

(...)

d) for a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos.

(...)

§ 3º Se a apelação se fundar no nº III, d, deste artigo, e o tribunal ad quem se convencer de que a decisão dos jurados é manifestamente contrária à prova dos autos, dar-lhe-á provimento para sujeitar o réu a novo julgamento; não se admite, porém, pelo mesmo motivo, segunda apelação.

 

Tese de que esse art. 593, III, “d”, do CPP só vale para decisões condenatórias

Até 2008, não havia qualquer dúvida de que essa possibilidade de apelação poderia ser aplicada tanto para decisões condenatórias como absolutórias proferidas pelo Tribunal do Júri.

Assim, se o júri condenasse o réu, a defesa poderia interpor a apelação alegando que a decisão era manifestamente contrária à prova dos autos.

Da mesma forma, se o júri absolvesse o réu, o Ministério Público também poderia interpor apelação argumentando que a decisão era manifestamente contrária à prova dos autos e pedindo a realização de novo júri.

Ocorre que, em 2008, foi editada a Lei nº 11.689, que incluiu o § 2º ao art. 483 do CPP prevendo um quesito genérico de absolvição do réu:

Art. 483. Os quesitos serão formulados na seguinte ordem, indagando sobre:

I – a materialidade do fato;

II – a autoria ou participação;

III – se o acusado deve ser absolvido;

IV – se existe causa de diminuição de pena alegada pela defesa;

V – se existe circunstância qualificadora ou causa de aumento de pena reconhecidas na pronúncia ou em decisões posteriores que julgaram admissível a acusação.

(...)

§ 2º Respondidos afirmativamente por mais de 3 (três) jurados os quesitos relativos aos incisos I e II do caput deste artigo será formulado quesito com a seguinte redação:

O jurado absolve o acusado?

 

Diante disso, como esse quesito é genérico, diversos doutrinadores sustentaram a tese de que os jurados

Passaram a gozar de ampla e irrestrita autonomia no momento de decidir pela absolvição, não se achando adstritos nem vinculados, em seu processo decisório, às teses suscitadas em plenário ou a quaisquer outros fundamentos de índole estritamente jurídica.

Assim, a decisão dos jurados não está vinculada à prova dos autos. Eles podem absolver o réu porque ficaram com “pena” dele, por exemplo. É a chamada absolvição por clemência.

Veja o que explica o Prof. Aury Lopes Jr.:

“Com a nova sistemática do tribunal do júri – inserida na reforma de 2008 e ainda sendo assimilada –, foi inserido o famoso quesito genérico da absolvição (obrigatório), estabelecendo-se um novo problema: será que ainda tem cabimento a apelação por ser a decisão manifestamente contrária à prova dos autos (artigo 593, III, ‘d’) quando o réu é absolvido ou condenado com base na votação do quesito ‘o jurado absolve o acusado?’

Já que está autorizado que o jurado absolva por qualquer motivo, por suas próprias razões, mesmo que elas não encontrem amparo na prova objetivamente produzida nos autos, será que ainda cabe esse recurso? A resposta sempre nos pareceu negativa, não cabendo mais esse recurso por parte do Ministério Público quando a absolvição for com base no quesito genérico, até porque a resposta não precisa refletir e encontrar respaldo na prova, ao contrário dos dois primeiros (materialidade e autoria), que seguem exigindo ancoragem probatória pela própria determinação com que são formulados. O réu pode ser legitimamente absolvido por qualquer motivo, inclusive metajurídico, como é a ‘clemência’ e aqueles de caráter humanitário.

Obviamente, o recurso com base na letra ‘d’ segue sendo admitido contra a decisão condenatória, pois não existe um quesito genérico para condenação. Para condenar, estão os jurados adstritos e vinculados à prova dos autos, de modo que a condenação ‘manifestamente contrária à prova dos autos’ pode e deve ser impugnada com base no artigo 593, III, ‘ d’. É regra elementar do devido processo penal. Sublinhe-se: o que a reforma de 2008 inseriu foi um quesito genérico para absolver por qualquer motivo, não para condenar. Portanto, a sentença condenatória somente pode ser admitida quando amparada pela prova.” (“Tribunal do Júri: A Problemática Apelação do Artigo 593, III, do CPP”. CONJUR. Disponível em https://www.conjur.com.br/2017-ago-18/limite-penal-tribunal-juri-problematica-apelacao-artigo593-iii-cpp).

 

O STJ acolhe essa tese defensiva? A possibilidade de apelação com base no art. 593, III, “d”, do CPP passou a ser exclusiva da defesa quando o réu é condenado pelo Tribunal do Júri?

NÃO. O STJ, por meio da sua 3ª Seção, pacificou o tema nos seguintes termos:

(...) 2. As decisões proferidas pelo conselho de sentença não são irrecorríveis ou imutáveis, podendo o Tribunal ad quem, nos termos do art. 593, III, d, do CPP, quando verificar a existência de decisão manifestamente contrária às provas dos autos, cassar a decisão proferida, uma única vez, determinando a realização de novo julgamento, sendo vedada, todavia, a análise do mérito da demanda.

3. A absolvição do réu pelos jurados, com base no art. 483, III, do CPP, ainda que por clemência, não constitui decisão absoluta e irrevogável, podendo o Tribunal cassar tal decisão quando ficar demonstrada a total dissociação da conclusão dos jurados com as provas apresentadas em plenário. Assim, resta plenamente possível o controle excepcional da decisão absolutória do Júri, com o fim de evitar arbitrariedades e em observância ao duplo grau de jurisdição.

Entender em sentido contrário exigiria a aceitação de que o conselho de sentença disporia de poder absoluto e peremptório quanto à absolvição do acusado, o que, ao meu ver não foi o objetivo do legislador ao introduzir a obrigatoriedade do quesito absolutório genérico, previsto no art. 483, III, do CPP. (...)

STJ. 3ª Seção. HC 313.251/RJ, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 28/02/2018.

 

Esse entendimento do STJ vem sendo reiterado em julgados recentes: STJ. 5ª Turma. HC 560.668/SP, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 18/08/2020.

 

E o STF?

A posição majoritária é no sentido de, tendo havido absolvição pelos jurados, não cabe apelação a ser interposta pelo Ministério Público nem mesmo na hipótese do art. 593, III, “d”, do CPP. Nesse sentido:

A absolvição do réu, ante resposta a quesito genérico de absolvição previsto no art. 483, § 2º, do CPP, não depende de elementos probatórios ou de teses veiculadas pela defesa. Isso porque vigora a livre convicção dos jurados.

STF. 1ª Turma. HC 178777/MG, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 29/9/2020 (Info 993).

 

Na reforma legislativa de 2008, alterou-se substancialmente o procedimento do júri, inclusive a sistemática de quesitação aos jurados. Inseriu-se um quesito genérico e obrigatório, em que se pergunta ao julgador leigo: “O jurado absolve o acusado?” (art. 483, III e §2º, CPP). Ou seja, o Júri pode absolver o réu sem qualquer especificação e sem necessidade de motivação.

Considerando o quesito genérico e a desnecessidade de motivação na decisão dos jurados, configura-se a possibilidade de absolvição por clemência, ou seja, mesmo em contrariedade manifesta à prova dos autos. Se ao responder o quesito genérico o jurado pode absolver o réu sem especificar os motivos, e, assim, por qualquer fundamento, não há absolvição com tal embasamento que possa ser considerada “manifestamente contrária à prova dos autos”.

Limitação ao recurso da acusação com base no art. 593, III, “d”, CPP, se a absolvição tiver como fundamento o quesito genérico (art. 483, III e §2º, CPP). Inexistência de violação à paridade de armas. Presunção de inocência como orientação da estrutura do processo penal. Inexistência de violação ao direito ao recurso (art. 8.2.h, CADH). Possibilidade de restrição do recurso acusatório.

STF. 2ª Turma. HC 185068, Rel. Celso de Mello, Relator p/ Acórdão Gilmar Mendes, julgado em 20/10/2020.

 

A previsão normativa do quesito genérico de absolvição no procedimento penal do júri (CPP, art. 483, III, e respectivo § 2º), formulada com o objetivo de conferir preeminência à plenitude de defesa, à soberania do pronunciamento do Conselho de Sentença e ao postulado da liberdade de íntima convicção dos jurados, legitima a possibilidade de os jurados – que não estão vinculados a critérios de legalidade estrita – absolverem o réu segundo razões de índole eminentemente subjetiva ou de natureza destacadamente metajurídica, como, p. ex., o juízo de clemência, ou de equidade, ou de caráter humanitário, eis que o sistema de íntima convicção dos jurados não os submete ao acervo probatório produzido ao longo do processo penal de conhecimento, inclusive à prova testemunhal realizada perante o próprio plenário do júri. Isso significa, portanto, que a apelação do Ministério Público, fundada em alegado conflito da deliberação absolutória com a prova dos autos (CPP, art. 593, III, “d”), caso admitida fosse, implicaria frontal transgressão aos princípios constitucionais da soberania dos veredictos do Conselho de Sentença, da plenitude de defesa do acusado e do modelo de íntima convicção dos jurados, que não estão obrigados – ao contrário do que se impõe aos magistrados togados (art. 93, IX, da CF/88) – a decidir de forma necessariamente motivada, mesmo porque lhes é assegurado, como expressiva garantia de ordem constitucional, “o sigilo das votações” (CF, art. 5º, XXXVIII, “b”), daí resultando a incognoscibilidade da apelação interposta pelo “Parquet”.

STF. 2ª Turma. HC 178856, Rel. Celso de Mello, julgado em 10/10/2020.

 

Vale ressaltar, no entanto, que existem Ministros que já se manifestaram contrariamente a essa tese: Luiz Fux, Alexandre de Moraes, Roberto Barroso, Edson Fachin e Cármen Lúcia.

 

Repercussão Geral – Tema 1087

Vale ressaltar que a questão será pacificada quando o STF julgar o ARE 1225185 RG, submetido ao regime da repercussão geral. Trata-se do Tema 1087: Possibilidade de Tribunal de 2º grau, diante da soberania dos veredictos do Tribunal do Júri, determinar a realização de novo júri em julgamento de recurso interposto contra absolvição assentada no quesito genérico, ante suposta contrariedade à prova dos autos.

A definição quanto ao tema dependerá da posição que será adotada pelo Min. Nunes Marques e pelo julgador que suceder o Min. Marco Aurélio quando de sua aposentadoria.

 

Atualizar o Info 969 do STF

No Info 969, foi divulgada decisão em sentido contrário ao explicado acima:

A anulação de decisão do tribunal do júri, por ser manifestamente contrária à prova dos autos, não viola a regra constitucional que assegura a soberania dos veredictos do júri (art. 5º, XXXVIII, c, da CF/88).

Vale ressaltar, ainda, que não há contrariedade à cláusula de que ninguém pode ser julgado mais de uma vez pelo mesmo crime. Ainda que se forme um segundo Conselho de Sentença, o julgamento é um só, e termina com o trânsito em julgado da decisão.

STF. 1ª Turma. RHC 170559/MT, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min. Alexandre de Moraes, julgado em 10/3/2020 (Info 969).

 

A mudança de entendimento se deve à alteração na composição do colegiado, em razão da saída do Min. Luiz Fux para a Presidência da Corte e do ingresso do Min. Dias Toffoli na 1ª Turma.

O Min. Luiz Fux votava pela possibilidade da apelação, enquanto que o Min. Dias Toffoli entende que deve prevalecer a soberania dos veredictos. 



sábado, 21 de novembro de 2020

INFORMATIVO Comentado 992 STF


Olá amigos do Dizer o Direito,

Já está disponível o INFORMATIVO Comentado 992 STF.

Bons estudos.

 

ÍNDICE DO INFORMATIVO 992 DO STF

 

Direito Constitucional

COMPETÊNCIAS

É constitucional lei estadual que proíba a prática de fidelização nos contratos de consumo.

 

AUTONOMIA DOS ENTES

Não é possível o envio da Força Nacional de Segurança para atuar no Estado-membro sem que tenha havido pedido ou concordância do Governador

 

DIREITO ADMINISTRATIVO

APOSENTADORIA

(Im) possibilidade de conversão do tempo especial em tempo comum.

 

DIREITO PROCESSUAL CIVIL

RECURSO EXTRAORDINÁRIO

Não cabe recurso extraordinário se houver a necessidade de se analisar normas infraconstitucionais para se chegar à conclusão contrária à adotada pelo tribunal de origem.

 

DIREITO PENAL

DESACATO

Desacato continua sendo crime.

 

DIREITO TRIBUTÁRIO

TAXAS

É inconstitucional a criação de taxa de combate a incêndios.

 

CONTRIBUIÇÕES

As contribuições devidas ao Sebrae, à Apex e à ABDI com fundamento na Lei nº 8.029/90 continuam válidas mesmo após a Emenda Constitucional 33/2001. 

 




 



 


INFORMATIVO Comentado 992 STF - Versão Resumida


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Bons estudos.



 

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Aposentadoria especial de servidor público e a discussão quanto à possibilidade de conversão do tempo especial em tempo comum

 

SÚMULA VINCULANTE 33 – ANTES DA EC 103/2019

O que é aposentadoria especial?

Aposentadoria especial é aquela cujos requisitos e critérios exigidos do beneficiário são mais favoráveis que os estabelecidos normalmente para as demais pessoas.

 

Quem tem direito à aposentadoria especial no serviço público?

Antes da Reforma da Previdência (EC 103/2019), a Constituição Federal dizia o seguinte:

Art. 40 (...) § 4º É vedada a adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria aos abrangidos pelo regime de que trata este artigo, ressalvados, nos termos definidos em leis complementares, os casos de servidores:

I - portadores de deficiência;

II - que exerçam atividades de risco;

III - cujas atividades sejam exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física.

 

O § 4º do art. 40 da CF exigia, portanto, que fossem editadas leis complementares definindo os critérios para a concessão da aposentadoria especial aos servidores públicos em cada uma das hipóteses dos incisos acima listados.

 

A lei complementar de que trata o inciso III já tinha sido editada?

NÃO.

 

O que acontecia, já que não existia a LC?

Como ainda não havia a referida lei complementar disciplinando a aposentadoria especial do servidor público, o STF reconheceu que o Presidente da República estava em “mora legislativa” por ainda não ter enviado ao Congresso Nacional o projeto de lei para regulamentar o antigo art. 40, § 4º, III da CF/88. Diante disso, o STF, ao julgar o Mandado de Injunção nº 721/DF (e vários outros que foram ajuizados depois), determinou que, enquanto não fosse editada a LC regulamentando o antigo art. 40, § 4º, III, da CF/88, deveriam ser aplicadas, aos servidores públicos, as regras de aposentadoria especial dos trabalhadores em geral (regras do Regime Geral de Previdência Social — RGPS), previstas no art. 57 da Lei nº 8.213/91.

Logo, os servidores públicos que exerciam atividades sob condições especiais que prejudiquem a sua saúde ou integridade física (antigo art. 40, § 4º, III da CF/88) teriam direito de se aposentar com menos tempo de contribuição que os demais agentes públicos.

O STF editou uma súmula espelhando o entendimento:

Súmula vinculante 33-STF: Aplicam-se ao servidor público, no que couber, as regras do Regime Geral de Previdência Social sobre aposentadoria especial de que trata o artigo 40, parágrafo 4º, inciso III, da Constituição Federal, até edição de lei complementar específica.

 

Vale ressaltar que a SV 33-STF somente trata sobre a aposentadoria especial do servidor público baseada no inciso III do § 4º do art. 40 da CF/88 (atividades sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física), não abrangendo as hipóteses dos incisos I (deficientes) e II (atividades de risco).

 

CONVERSÃO DO TEMPO ESPECIAL EM TEMPO COMUM – ANTES DA EC 103/2019

Imagine a seguinte situação hipotética:

A lei prevê a aposentadoria especial para aqueles que trabalharam durante 25 anos em condições insalubres.

Maria laborou, em uma empresa privada, durante 20 anos em atividades especiais (trabalho exposto a radiação) e 6 anos em atividade comum (não insalubres). Logo, não terá direito à aposentadoria especial, que exige 25 anos de atividades especiais para o caso de radiação (item 1.1.4 do Decreto nº 53.831/64).

 

Poderá ela somar os 20 anos de atividades insalubres com os 6 anos de atividades comuns? 

SIM.

 

Ao converter estes 20 anos de atividades especiais em tempo de atividades comuns, haverá algum tipo de acréscimo (contagem de tempo diferenciada)?

SIM. O tempo de trabalho exercido sob condições especiais consideradas prejudiciais à saúde ou à integridade física será convertido em “tempo comum” (exercido em atividade comum) e nesta conversão vão ser aplicados alguns índices matemáticos que farão com que o tempo se torne maior.

Ex.: 20 anos = 7300 dias de tempo comum. No entanto, como esses 20 anos foram prestados em atividade especial, para serem convertidos em tempo comum, eles devem ser multiplicados por 1,2. Assim, teremos 7.300 x 1,2 = 8.760.

Logo, 7.300 dias trabalhados sob o regime especial podem se transformar em 8.760 dias caso este período de tempo especial seja convertido em tempo comum.

No exemplo acima, Maria trabalhou 20 anos (7.300 dias) em atividades especiais e 6 anos (2.190 dias) em atividade comum. Logo, não conseguirá a aposentadoria especial (que exige 25 anos de atividade especial).

Maria irá, então, somar os períodos para ver se consegue a aposentadoria comum (não especial).

Os 7.300 dias trabalhados irão virar 8.760 dias.

Dessa forma, ela irá somar 8.760 + 2.190 = 10.950 dias (30 anos) para fins de aposentadoria.

 

Onde está previsto este índice de conversão de 1,20?

Os índices de conversão de “tempo especial” em “tempo comum” estão previstos no art. 70 do Decreto nº 3.048/99. Ressalte-se que há outros índices, além deste de 1,20 e eles irão variar de acordo com a atividade especial (Obs.: há muitas polêmicas sobre esse tema, mas elas não interessam para os objetivos desta explicação).

 

Antes da Reforma da Previdência (EC 103/2019), os servidores públicos que exerçam atividades sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física (art. 40, § 4º, III da CF/88) podiam se valer destes índices para fazer a conversão do “tempo especial” trabalhado em “tempo comum”?

SIM.

Até a edição da EC 103/2019, o direito à conversão, em tempo comum, do prestado sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física de servidor público era possível. Isso decorria da previsão contida na CF/88 no sentido de que deveriam ser adotados requisitos e critérios diferenciados para a jubilação (aposentadoria) da pessoa enquadrada na hipótese prevista no inciso III do § 4º do art. 40 da CF/88.

Logo, deveriam ser aplicadas as normas da aposentadoria especial do regime geral, previstas na Lei nº 8.213/91 enquanto não houvesse lei complementar disciplinando a matéria.

 

Exemplo:

João era servidor público estadual, ocupando o cargo de assistente agropecuário. Durante 10 anos, ele exerceu esse cargo, prestando o serviço em condições insalubres. Em seguida, ele pediu exoneração.

João não chegou a completar o tempo necessário para adquirir a aposentadoria especial. No entanto, a despeito disso, ele terá direito de averbar o tempo de serviço prestado em atividades prejudiciais à saúde, com a conversão em tempo comum, mediante contagem diferenciada, para a obtenção de benefícios previdenciários. Em outras palavras, ele poderá utilizar os índices matemáticos de conversão para aproveitar esse tempo especial como tempo comum.

 

REGIME POSTERIOR À EC 103/2019

A Reforma da Previdência (EC 103/2019) alterou a redação do § 4º do art. 40:

CONSTITUIÇÃO FEDERAL

Antes da EC 103/2019

Depois da EC 103/2019

Art. 40 (...)

§ 4º É vedada a adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria aos abrangidos pelo regime de que trata este artigo, ressalvados, nos termos definidos em leis complementares, os casos de servidores:

I - portadores de deficiência;

II - que exerçam atividades de risco;

III - cujas atividades sejam exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física.

Art. 40 (...)

§ 4º É vedada a adoção de requisitos ou critérios diferenciados para concessão de benefícios em regime próprio de previdência social, ressalvado o disposto nos §§ 4º-A, 4º-B, 4º-C e 5º.

Não havia § 4º-C.

Art. 40 (...)

§ 4º-C. Poderão ser estabelecidos por lei complementar do respectivo ente federativo idade e tempo de contribuição diferenciados para aposentadoria de servidores cujas atividades sejam exercidas com efetiva exposição a agentes químicos, físicos e biológicos prejudiciais à saúde, ou associação desses agentes, vedada a caracterização por categoria profissional ou ocupação.

 

A EC 103/2019 previu agora que ente federado poderá estabelecer, por lei complementar, idade e tempo de contribuição diferenciados para aposentadoria de servidores cujas atividades sejam exercidas com efetiva exposição a agentes químicos, físicos e biológicos prejudiciais à saúde, ou associação desses agentes, vedada a caracterização por categoria profissional ou ocupação.

Desse modo, após EC 103/2019, não se pode mais afirmar que os servidores tenham direito à conversão com base na aplicação do regime geral. Para se ter direito à conversão, é necessário que o respectivo ente edite uma lei complementar prevendo.

 

Em suma:

Até a edição da Emenda Constitucional nº 103/2019, o direito à conversão, em tempo comum, do prestado sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física de servidor público decorre da previsão de adoção de requisitos e critérios diferenciados para a jubilação daquele enquadrado na hipótese prevista no então vigente inciso III do § 4º do art. 40 da Constituição da República, devendo ser aplicadas as normas do regime geral de previdência social relativas à aposentadoria especial contidas na Lei nº 8.213/91 para viabilizar sua concretização enquanto não sobrevier lei complementar disciplinadora da matéria.

Após a vigência da EC nº 103/2019, o direito à conversão em tempo comum, do prestado sob condições especiais pelos servidores obedecerá à legislação complementar dos entes federados, nos termos da competência conferida pelo art. 40, § 4º-C, da Constituição da República.

STF. Plenário. RE 1014286, Rel. Luiz Fux, Relator p/ Acórdão Edson Fachin, julgado em 31/08/2020 (Repercussão Geral – Tema 942) (Info 992 – clipping).

 

Observação:

Cuidado com o segundo parágrafo da tese acima exposta. Isso porque essa tese, aparentemente, está em desarmonia com o § 3º do art. 10 da EC 103/2019. Veja:

Art. 10. Até que entre em vigor lei federal que discipline os benefícios do regime próprio de previdência social dos servidores da União, aplica-se o disposto neste artigo.

(...)

§ 3º A aposentadoria a que se refere o § 4º-C do art. 40 da Constituição Federal observará adicionalmente as condições e os requisitos estabelecidos para o Regime Geral de Previdência Social, naquilo em que não conflitarem com as regras específicas aplicáveis ao regime próprio de previdência social da União, vedada a conversão de tempo especial em comum.

 

O STF não debateu com profundidade o tema porque o objeto do recurso envolvia um caso anterior à EC 103/2019. Mais para frente esse assunto deverá ser novamente discutido com maior atenção pela Corte.

Por enquanto, para fins de provas, guarde essas duas afirmações como corretas:

• Após a vigência da EC nº 103/2019, o direito à conversão em tempo comum, do prestado sob condições especiais pelos servidores obedecerá à legislação complementar dos entes federados, nos termos da competência conferida pelo art. 40, § 4º-C, da Constituição da República. (certo)

• A aposentadoria especial a que se refere o § 4º-C do art. 40 da Constituição Federal observará adicionalmente as condições e os requisitos estabelecidos para o Regime Geral de Previdência Social, naquilo em que não conflitarem com as regras específicas aplicáveis ao regime próprio de previdência social da União, vedada a conversão de tempo especial em comum. (certo).

 




Dizer o Direito!