Imagine a seguinte situação
hipotética:
Em 28 de dezembro de 1990, foi
publicada a Lei Federal nº XXX/1990 criando novo adicional de imposto de renda sobre
o lucro das empresas.
Essa lei disse expressamente que suas
disposições se aplicavam inclusive para o período-base de 1990.
Em outras palavras, a Lei foi publicada
em 28/12/1990 e influenciou no recolhimento do imposto de renda incidente sobre
situações ocorridas em 1990. Como ela foi publicada no final de 1990, acabou
incidindo sobre operações realizadas antes mesmo da sua vigência.
Diante disso, os contribuintes
alegaram a inconstitucionalidade dessa lei porque ela teria violado os
princípios da irretroatividade e da anterioridade.
Súmula 584-STF
A União, por sua vez,
defendeu a constitucionalidade da Lei sob o argumento de que essa prática é
permitida pela jurisprudência do STF cristalizada na Súmula 584, que tem a
seguinte redação:
Súmula 584-STF: Ao
imposto de renda calculado sobre os rendimentos do ano-base, aplica-se a lei
vigente no exercício financeiro em que deve ser apresentada a declaração.
Assim, de acordo com esse raciocínio, o fato gerador do imposto
de renda completa-se somente no dia 31 de dezembro do ano-base. A lei que tenha
sido publicada até essa data poderá ser aplicada no cálculo do imposto correspondente,
nos termos do art. 105 do CTN:
Art. 105. A legislação tributária
aplica-se imediatamente aos fatos geradores futuros e aos pendentes, assim
entendidos aqueles cuja ocorrência tenha tido início mas não esteja completa
nos termos do artigo 116.
Neste caso hipotético, a
jurisprudência atual do STF é favorável ao Fisco ou ao contribuinte?
Ao contribuinte.
E a súmula?
O STF decidiu cancelar a sua
antiga Súmula 584.
O princípio de irretroatividade
tributária assegura ao contribuinte o direito de não ser cobrado com novas hipóteses
de incidência ou majorações ocorridas após o início do período-base.
Veja a
brilhante explicação de Sacha Calmon para a inconstitucionalidade da posição
cristalizada na Súmula 584 do STF:
“Como se sabe,
o imposto de renda, no Brasil, das pessoas físicas e jurídicas, salvo
determinadas exceções, como mudança para o estrangeiro, encerramento de
atividades e outras, está estruturado pelo dualismo: ano-base/ano da
declaração. No ano-base, 1º de janeiro a 31 de dezembro, ocorrem os fatos
jurígenos. No ano da declaração, o contribuinte recata os fatos tributáveis,
aproveita as deduções, compensa os créditos fiscais, dimensiona a base
imponível, aplica as alíquotas, obtém o quantum devido e recolhe o imposto sob
a condição suspensiva de, a posteriori, o Fisco concordar com o imposto
declarado. Em caso de recolhimento a menor, ocorrerão lançamentos
suplementares.
É intuitivo,
na espécie, que o aspecto temporal da hipótese de incidência fecha em 31 de
dezembro do ano-base, porque o fato jurígeno do imposto de renda é continuado.
Em 31 de dezembro cessa o movimento, e tudo cristaliza-se. O filme em exibição
desde 1º de janeiro chega ao fim (no último átimo de tempo do dia 31 de
dezembro de cada ano-base). Nesta data, temos o irreversível. No ano do
exercício da declaração, o que se tem é o relato descritivo e quantitativo dos
fatos jurígenos (suporte da tributação).
Para
satisfazer o princípio da anterioridade, é necessário que a lei de regência do
imposto de renda seja a vigente em 31 de dezembro do ano anterior ao ano-base,
pois teriam os contribuintes a prévia informação do quadro legal que regularia
as suas atividades tributárias, antes de ocorrerem.
A Súmula do
STF, no entanto, entendia o contrário, impressionada por uma polêmica acadêmica
(mas não só por isso) que discutia sobre o dies ad quem do período aquisitivo
da renda, se em 31 de dezembro do ano-base ou em 1º de janeiro do exercício
seguinte (exercício da declaração).
Academicismo irritante, pois o importante é e
sempre será o contribuinte saber, antes de realizar as suas atividades, o
quadro jurídico de regência dessas mesmas atividades, o que leva à tese de que
só o dia 31 de dezembro seria, ética e juridicamente, o dia apropriado. Caso
contrário, falar em princípio da anterioridade traduziria enorme toleima, a
crer-se na seriedade e nas funções do princípio.
Interessa aos
jogadores de um time qualquer, de um esporte qualquer, jogar sem saber das
regras? E só tomar conhecimento delas após o jogo no vestiário? Privilegiado é
o árbitro. Pode valorar a posteriori o vencedor e os vencidos.
Ora, tal era a
situação do IR no Brasil antes da Constituição de 1988. Vale dizer o IR não só
não respeitava o princípio da anterioridade como tornava o imposto retroativo,
contra um princípio geral do Direito universalmente aceito e praticado.
Agora o quadro
é outro. O art. 150, III, “a”, “b” e “c” rechaça a prevalência da Súmula nº
584, sem qualquer sombra de dúvidas. Esse é, ao menos, o nosso sentir, no que
somos acompanhados por grande parte da doutrina e até mesmo por precedentes do
STJ.” (CALMON, Sacha. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 17ª ed.,
Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 274-276).
Em suma:
Encontra-se superado o entendimento exposto na Súmula
584 do STF.
Esse enunciado é incompatível com os princípios da
irretroatividade e da anterioridade.
Por essa razão, o STF decidiu pelo cancelamento do verbete.
STF. Plenário. RE 159180, Rel. Marco Aurélio, julgado em 22/06/2020 (Info 987 – clipping).