Dizer o Direito

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

A Lei 14.071/2020 realmente proibiu as penas restritivas de direitos para os crimes do art. 302, § 3º e do art. 303, § 2º do Código de Trânsito?

  

Olá, amigos do Dizer o Direito,

Foi publicada hoje (14/10/2020), a Lei nº 14.071/2020, que altera inúmeros dispositivos do Código de Trânsito Brasileiro.

As principais alterações da Lei nº 14.071/2020 estão relacionadas com a composição do Conselho Nacional de Trânsito e com a ampliação do prazo de validade das habilitações.

Irei, contudo, comentar aqui apenas uma mudança, que está ligada ao Direito Penal: a inserção do art. 312-B ao Código de Trânsito.

Antes de explicar diretamente o novo art. 312-B, é importante relembrarmos alguns conceitos relacionados com crimes de trânsito e aplicação de penas restritivas de direito.

 

Crimes de trânsito

O trânsito de qualquer natureza nas vias terrestres do território nacional, abertas à circulação, rege-se pelo Código de Trânsito Brasileiro (CTB), que é a Lei nº 9.503/97.

O CTB prevê, dentre outras disposições, infrações de natureza administrativa (infrações de trânsito) e infrações de natureza penal (crimes de trânsito).

Os crimes de trânsito estão previstos nos arts. 302 a 312 do CTB.

Quero falar a respeito de dois crimes de trânsito:

• art. 302, § 3º do CTB: homicídio culposo no trânsito qualificado pela embriaguez ou uso de substância psicoativa;

• art. 303, § 2º do CTB: lesão corporal culposa no trânsito qualificada.

 

Homicídio culposo no trânsito qualificado pela embriaguez ou uso de substância psicoativa (art. 302, § 3º do CTB)

O crime de homicídio culposo no trânsito é previsto no art. 302 do CTB.

O § 3º do art. 302 pune a conduta do agente que provoca homicídio culposo no trânsito conduzindo o veículo automotor sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:

Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor:

(...)

§ 3º Se o agente conduz veículo automotor sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:

Penas - reclusão, de cinco a oito anos, e suspensão ou proibição do direito de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

 

Lesão corporal culposa no trânsito qualificada (art. 303, § 2º do CTB)

O art. 303 do CTB trata sobre o crime de lesão corporal culposa no trânsito.

O § 2º do art. 303 prevê uma qualificadora nos seguintes termos:

Art. 303. Praticar lesão corporal culposa na direção de veículo automotor:

(...)

§ 2º A pena privativa de liberdade é de reclusão de dois a cinco anos, sem prejuízo das outras penas previstas neste artigo, se o agente conduz o veículo com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência, e se do crime resultar lesão corporal de natureza grave ou gravíssima.

 

São exigidos três requisitos:

1) deve ter havido lesão corporal culposa cometida pelo agente na direção de veículo automotor;

2) o agente conduzia o veículo com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência; e

3) a lesão corporal provocada na vítima foi de natureza grave ou gravíssima.

 

Penas restritivas de direitos

O Código Penal prevê que, em determinadas situações, em se tratando de pessoa condenada a uma pena privativa de liberdade, pode ser esta reprimenda substituída por uma ou duas penas restritivas de direito.

 

Falando de forma ampla, os crimes de trânsito admitem penas restritivas de direito? Se o réu for condenado por um crime de trânsito, poderá receber penas restritivas de direito?

Em regra, sim. É possível, desde que preenchidos os requisitos do art. 44 do Código Penal:

Art. 44. As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade, quando:

I – aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo;

II – o réu não for reincidente em crime doloso;

III – a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente.

 

Vou organizar melhor para você esses requisitos do art. 44. Eles podem ser assim esquematizados:

1º requisito (objetivo):

Natureza do crime e

quantum da pena

2º requisito (subjetivo):

Não ser reincidente

em crime doloso

3º requisito (subjetivo):

A substituição seja

indicada e suficiente

a) Crime doloso:

• igual ou inferior a 4 anos;

• sem violência ou grave ameaça a pessoa.

 

b) Crime culposo: qualquer que seja a pena aplicada.

Regra: não ser reincidente em crime doloso

Exceção:

§ 3º Se o condenado for reincidente, o juiz poderá aplicar a substituição, desde que, em face de condenação anterior, a medida seja socialmente recomendável e a reincidência não se tenha operado em virtude da prática do mesmo crime.

A culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente (Princípio da suficiência da resposta alternativa ao delito).

 

É possível aplicar penas restritivas de direitos para os crimes do art. 302, § 3º e do art. 303, § 2º do CTB? Se o réu for condenado por um desses dois crimes, o juiz poderá substituir a pena privativa de liberdade por restritivas de direito?

Antes da Lei nº 14.071/2020: SIM

Não havia, em princípio, qualquer vedação legal abstrata para que o indivíduo condenado pelos crimes do art. 302, § 3º e do art. 303, § 2º do CTB tivessem a pena privativa de liberdade substituída por penas restritivas de direitos, desde que, obviamente, fossem cumpridos os demais requisitos do art. 44 do Código Penal.

Vale ressaltar que o inciso I do art. 44 do Código Penal não era óbice para a aplicação da pena restritiva de direitos mesmo no caso do art. 302, § 3º, do CTB, que tem pena de 5 a 8 anos. Isso porque se trata de crime culposo e, portanto, não se encontra submetido ao limite de pena de 4 anos previsto no inciso I do art. 44 do CP. Essa era, por exemplo, a lição de Jamil Chaim Alves:

“Apesar da elevada pena mínima (sobretudo para um crime culposo), tal crime admite a substituição por restritiva de direito. Afinal, o limite de 4 anos previsto no art. 44, I, do Código Penal, refere-se exclusivamente a crimes dolosos. Evidentemente, o juiz pode deixar de proceder à substituição no caso concreto por falta dos requisitos subjetivos.” (ALVES, Jamil Chaim. Manual de Direito Penal. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 539).

 

O que pretendeu fazer a Lei nº 14.071/2020?

A Lei nº 14.071/2020 inseriu o art. 312-B do CTB com o objetivo de proibir a aplicação de penas restritivas de direitos para os crimes do art. 302, § 3º e do art. 303, § 2º do CTB. Essa foi a intenção do legislador conforme se observa pelas notícias divulgadas pelos sites oficiais do Senado Federal e da Presidência da República:

“O presidente Jair Bolsonaro sancionou a Lei 14.071, que promove uma série de alterações no Código de Trânsito Brasileiro (CTB). A norma, que foi publicada com vetos na edição desta quarta-feira (13) do Diário Oficial da União, entra em vigor dentro de 180 dias. 

(...)

A nova norma prevê também que, em casos de lesão corporal e homicídio causados por motorista embriagado, mesmo que sem intenção, a pena de reclusão não pode mais ser substituída por outra mais branda, restritiva de direitos.” (https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/10/14/mudancas-no-codigo-de-transito-sao-sancionadas-com-vetos”

 

“O presidente da República, Jair Bolsonaro, sancionou a Lei 14.071/20, com mudanças na lei de trânsito aprovadas pelo Congresso Nacional. Dentre as principais alterações, destacam-se:

(...)

Proibir a conversão de pena privativa de liberdade em pena restritiva de direitos quando o motorista comete homicídio culposo ou lesão corporal sob efeito de álcool ou outro psicoativo;”

(https://www.gov.br/secretariageral/pt-br/noticias/2020/outubro/presidente-bolsonaro-sanciona-alteracoes-no-codigo-de-transito-brasileiro-ctb)

 

Penso, contudo, que houve uma considerável falha legislativa. Veja a redação do dispositivo inserido:

Art. 312-B. Aos crimes previstos no § 3º do art. 302 e no § 2º do art. 303 deste Código não se aplica o disposto no inciso I do caput do art. 44 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal).

 

A possibilidade de substituição da pena restritiva de direitos está prevista no caput do art. 44 do Código Penal. O caput traz a regra geral: “Art. 44. As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade, quando:”

Os incisos do caput do art. 44 trazem os requisitos, ou seja, as condições para que se possa aplicar a substituição.

Logo, ao afirmar que o inciso I do art. 44 do CP não se aplica para os crimes previstos no § 3º do art. 302 e no § 2º do art. 303 do CTB, o art. 312-B do CTB está apenas dizendo que esse requisito não é exigido. É como se o art. 312-B do CTB estivesse afirmando que, para a aplicação das penas restritivas de direito para os crimes do art. 302, § 3º e do art. 303, § 2º do CTB basta o cumprimento dos requisitos dos incisos II e III do art. 44 do CP. Obs: o requisito do inciso II do art. 44 do CP também não se aplica a crimes culposos. Isso significa que, na prática, para a aplicação das penas restritivas de direito aos crimes do art. 302, § 3º e do art. 303, § 2º do CTB basta atender o inciso III do art. 44 do CP.

Assim, ainda que tenha sido, supostamente, a intenção do legislador endurecer o tratamento penal, o certo é que a literalidade do art. 312-B do CTB não proibiu a aplicação das penas restritivas de direitos para os crimes do art. 302, § 3º e do art. 303, § 2º do CTB.

Houve, repito, grave falha do legislador que, penso, não pode ser suprida mediante interpretação extensiva porque se trata de norma que tolhe direitos.

 

Márcio André Lopes Cavalcante

Juiz Federal 


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