Dizer o Direito

terça-feira, 15 de setembro de 2020

Se a prova do concurso público foi adiada em virtude de fraude, o candidato que teve prejuízos pode ser indenizado? Quem paga a indenização?



A situação, com adaptações, foi a seguinte:
Em 2007, foi aberto concurso para o cargo de Policial Rodoviário Federal, com vagas apenas para os Estados do Pará e Mato Grosso.
Como se sabe, o Departamento de Polícia Rodoviária Federal é um órgão da União. No entanto, não era a União quem estava executando diretamente o concurso. Como sempre acontece na prática, a União contratou uma instituição para executar as etapas do concurso (receber as inscrições, elaborar as questões, aplicar as provas, corrigir, classificar etc.).
A instituição contratada foi a Fundação Universitária José Bonifácio (FUJB), pessoa jurídica de direito privado ligada à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
As provas estavam marcadas para o dia 08/12/2007, domingo. Ocorre que, na sexta-feira anterior, dia 06/12/2007, uma pessoa foi detida em São João de Meriti, baixada fluminense, com cópia das questões do concurso que ainda iria acontecer.
Segundo restou apurado, o suspeito estaria cobrando R$ 40 mil pelo gabarito da prova.
Diante desse fato, no sábado, véspera da prova, o concurso foi suspenso.

Situação específica de João
João, que morava em Alagoas, se inscreveu no concurso concorrendo para uma vaga no Pará.
Ele comprou uma passagem de Maceió (AL) para Belém (PA), chegando na sexta à noite na capital paraense. De lá seguiu para o hotel que havia reservado.
No domingo, dia da prova, quando estava tomando café, João ficou sabendo que o concurso havia sido suspenso em razão da suspeita de fraude.
Depois de voltar para casa, ele ajuizou ação de indenização por danos materiais contra a União e contra a Fundação Universitária José Bonifácio pedindo o ressarcimento pelas despesas com a inscrição no concurso, passagem aérea, transporte terrestre e hospedagem.
A União contestou a demanda arguindo, dentre outros argumentos, que contratou uma instituição para a realização das provas e que, portanto, essa entidade é que seria a única responsável pelos danos causados aos candidatos em virtude da quebra contratual de sigilo na elaboração das provas.
Vale ressaltar que o contrato firmado entre a União e a fundação previa que a responsabilidade pelos danos causados em virtude da anulação das provas seria da instituição contratada:
“Compete à CONTRATADA:
(...)
3.1.24 – arcar com os prejuízos decorrentes de anulações de provas, ou de avaliações já realizadas ou de alterações de datas de suas aplicações, quando os motivos ensejadores desses fatos forem de responsabilidade exclusiva da CONTRATADA.
(…)
3.1.30 – assegurar absoluto sigilo quanto ao conteúdo das provas até o momento de sua aplicação, sendo de sua plena e inteira responsabilidade a adoção dos atos e medidas necessárias para a apuração de responsabilidade quanto ao possível vazamento de informações confidenciais, arcando inclusive com todos e quaisquer ônus e despesas decorrentes da quebra de sigilo, desde que haja culpa exclusiva da CONTRATADA, conforme obrigações contratuais desta cláusula”.

A Fundação contratada para a execução do concurso terá responsabilidade civil neste caso? Considerando que a Fundação em tela é uma pessoa jurídica de direito privado, a responsabilidade será subjetiva ou objetiva?
SIM. A Fundação contratada terá responsabilidade civil objetiva. Isso porque a fundação estava desempenhando um serviço público.
O contrato administrativo firmado entre a Administração e a instituição organizadora tinha por objeto a realização de um serviço público, consistente na elaboração e condução de concurso público. Logo, deve-se aplicar o art. 37, § 6º, da Constituição Federal:
Art. 37 (...)
§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

A responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público é objetiva e decorre do art. 37, § 6º, da Constituição Federal.

E o Estado que contratou a instituição, também terá responsabilidade? O Estado deve responder civilmente pelos danos materiais causados aos candidatos em concurso público relacionados com as despesas de inscrição e de deslocamento para cidades diversas daquelas em que mantenham domicílio, quando a prova é cancelada por ato da própria Administração Pública em virtude da existência de indícios de fraude no certame?
SIM. No entanto, a responsabilidade principal é da instituição contratada e o Poder Público responde apenas de forma subsidiária.
Como consequência, para o Estado ser condenado a indenizar, deve haver a comprovação de que a instituição organizadora se tornou insolvente.

Pessoa jurídica de direito privado possui autonomia e age por sua conta e risco
A pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço público responde diretamente por danos causados a terceiros, considerando que possui personalidade jurídica, patrimônio e capacidade próprios.
Essa é uma entidade distinta do Estado e age por sua conta e risco, devendo arcar com suas próprias obrigações.
O ente estatal, nessas hipóteses, responderá apenas de forma subsidiária, quando a entidade de direito privado se torna insolvente.
O STF afirmou que deveria ser aplicado o mesmo raciocínio utilizado para as concessionárias de serviço público. Nesse sentido:
“Essas entidades de Direito Privado, prestadoras de serviços públicos, respondem em nome próprio, com seu patrimônio, e não o Estado por elas e nem com elas. E assim é pelas seguintes razões: 1) o objetivo da norma constitucional, como visto, foi estender aos prestadores de serviços públicos a responsabilidade objetiva idêntica a do Estado, atendendo reclamo da doutrina ainda sob o regime constitucional anterior. Quem tem os bônus deve suportar os ônus; 2) as pessoas jurídicas prestadoras de serviços públicos têm personalidade jurídica, patrimônio e capacidade próprios. São seres distintos do Estado, sujeitos de direitos e obrigações, pelo que agem por sua conta e risco, devendo responder por suas próprias obrigações; 3) nem mesmo de responsabilidade solidária é possível falar neste caso, porque a solidariedade só pode advir da lei ou do contrato, inexistindo norma legal atribuindo solidariedade ao Estado com os prestadores de serviços públicos. Antes pelo contrário, o art. 25 da Lei n.º 8.927/1995, que dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos, estabelece responsabilidade direta e pessoal da concessionária por todos os prejuízos causados ao poder concedente, aos usuários ou a terceiros; 4) no máximo, poder-se-ia falar em responsabilidade subsidiária do Estado, uma vez exauridos os recursos da entidade prestadora de serviços públicos. Se o Estado escolheu mal aquele a quem atribuiu a execução de serviços públicos, deve responder subsidiariamente caso o mesmo se torne insolvente.” (CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 305-306)

Repetindo:
Quando o concurso público é organizado por pessoa jurídica de direito privado, a entidade organizadora do certame possui responsabilidade DIRETA pelos danos causados aos candidatos inscritos, consistentes nas despesas efetuadas com a inscrição no certame, passagem aérea e transporte terrestre.
Ao Estado caberá somente a responsabilidade SUBSIDIÁRIA, caso a instituição organizadora venha a se tornar insolvente.  Não se deve penalizar diretamente o Poder Público por fraude em certame organizado por pessoa jurídica de direito privado, que, por cláusula contratual, estava obrigada a preservar o conteúdo dos exames aplicados.

Tese fixada
O Estado responde subsidiariamente por danos materiais causados a candidatos em concurso público organizado por pessoa jurídica de direito privado (art. 37, § 6º, da CRFB/88), quando os exames são cancelados por indícios de fraude.
STF. Plenário. RE 662405, Rel. Luiz Fux, julgado em 29/06/2020 (Repercussão Geral – Tema 512) (Info 986 – clipping).

Votos vencidos
O placar acima foi bem apertado e ficaram vencidos os Ministros Alexandre de Moraes, Roberto Barroso, Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli e Gilmar Mendes, que entendiam que o Estado, nesses casos, não tem responsabilidade nem mesmo subsidiária.



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