A situação, com adaptações, foi a
seguinte:
Em 2007, foi aberto concurso para
o cargo de Policial Rodoviário Federal, com vagas apenas para os Estados do
Pará e Mato Grosso.
Como se sabe, o Departamento de
Polícia Rodoviária Federal é um órgão da União. No entanto, não era a União
quem estava executando diretamente o concurso. Como sempre acontece na prática,
a União contratou uma instituição para executar as etapas do concurso (receber
as inscrições, elaborar as questões, aplicar as provas, corrigir, classificar
etc.).
A instituição contratada foi a Fundação
Universitária José Bonifácio (FUJB), pessoa jurídica de direito privado ligada
à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
As provas estavam marcadas para o
dia 08/12/2007, domingo. Ocorre que, na sexta-feira anterior, dia 06/12/2007, uma
pessoa foi detida em São João de Meriti, baixada fluminense, com cópia das
questões do concurso que ainda iria acontecer.
Segundo restou apurado, o
suspeito estaria cobrando R$ 40 mil pelo gabarito da prova.
Diante desse fato, no sábado,
véspera da prova, o concurso foi suspenso.
Situação específica de João
João, que morava em Alagoas, se
inscreveu no concurso concorrendo para uma vaga no Pará.
Ele comprou uma passagem de
Maceió (AL) para Belém (PA), chegando na sexta à noite na capital paraense. De
lá seguiu para o hotel que havia reservado.
No domingo, dia da prova, quando
estava tomando café, João ficou sabendo que o concurso havia sido suspenso em
razão da suspeita de fraude.
Depois de voltar para casa, ele
ajuizou ação de indenização por danos materiais contra a União e contra a
Fundação Universitária José Bonifácio pedindo o ressarcimento pelas despesas
com a inscrição no concurso, passagem aérea, transporte terrestre e hospedagem.
A União contestou a demanda arguindo,
dentre outros argumentos, que contratou uma instituição para a realização das
provas e que, portanto, essa entidade é que seria a única responsável pelos
danos causados aos candidatos em virtude da quebra contratual de sigilo na
elaboração das provas.
Vale ressaltar que o contrato
firmado entre a União e a fundação previa que a responsabilidade pelos danos
causados em virtude da anulação das provas seria da instituição contratada:
“Compete à CONTRATADA:
(...)
3.1.24 – arcar com os prejuízos
decorrentes de anulações de provas, ou de avaliações já realizadas ou de
alterações de datas de suas aplicações, quando os motivos ensejadores desses
fatos forem de responsabilidade exclusiva da CONTRATADA.
(…)
3.1.30 – assegurar absoluto
sigilo quanto ao conteúdo das provas até o momento de sua aplicação, sendo de
sua plena e inteira responsabilidade a adoção dos atos e medidas necessárias
para a apuração de responsabilidade quanto ao possível vazamento de informações
confidenciais, arcando inclusive com todos e quaisquer ônus e despesas
decorrentes da quebra de sigilo, desde que haja culpa exclusiva da CONTRATADA,
conforme obrigações contratuais desta cláusula”.
A Fundação contratada para
a execução do concurso terá responsabilidade civil neste caso? Considerando que
a Fundação em tela é uma pessoa jurídica de direito privado, a responsabilidade
será subjetiva ou objetiva?
SIM. A Fundação contratada terá
responsabilidade civil objetiva. Isso porque a fundação estava desempenhando um
serviço público.
O contrato
administrativo firmado entre a Administração e a instituição organizadora tinha
por objeto a realização de um serviço público, consistente na elaboração e
condução de concurso público. Logo, deve-se aplicar o art. 37, § 6º, da
Constituição Federal:
Art. 37 (...)
§ 6º As pessoas jurídicas de direito
público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão
pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado
o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
A responsabilidade civil das
pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público é objetiva
e decorre do art. 37, § 6º, da Constituição Federal.
E o Estado que contratou a
instituição, também terá responsabilidade? O Estado deve responder civilmente
pelos danos materiais causados aos candidatos em concurso público relacionados
com as despesas de inscrição e de deslocamento para cidades diversas daquelas
em que mantenham domicílio, quando a prova é cancelada por ato da própria
Administração Pública em virtude da existência de indícios de fraude no certame?
SIM. No entanto, a
responsabilidade principal é da instituição contratada e o Poder Público responde
apenas de forma subsidiária.
Como consequência, para o Estado
ser condenado a indenizar, deve haver a comprovação de que a instituição
organizadora se tornou insolvente.
Pessoa jurídica de direito
privado possui autonomia e age por sua conta e risco
A pessoa jurídica de direito
privado prestadora de serviço público responde diretamente por danos causados a
terceiros, considerando que possui personalidade jurídica, patrimônio e
capacidade próprios.
Essa é uma entidade distinta do
Estado e age por sua conta e risco, devendo arcar com suas próprias obrigações.
O ente estatal, nessas hipóteses,
responderá apenas de forma subsidiária, quando a entidade de direito privado se
torna insolvente.
O STF afirmou que deveria ser
aplicado o mesmo raciocínio utilizado para as concessionárias de serviço
público. Nesse sentido:
“Essas
entidades de Direito Privado, prestadoras de serviços públicos, respondem em
nome próprio, com seu patrimônio, e não o Estado por elas e nem com elas. E
assim é pelas seguintes razões: 1) o objetivo da norma constitucional, como
visto, foi estender aos prestadores de serviços públicos a responsabilidade
objetiva idêntica a do Estado, atendendo reclamo da doutrina ainda sob o regime
constitucional anterior. Quem tem os bônus deve suportar os ônus; 2) as pessoas
jurídicas prestadoras de serviços públicos têm personalidade jurídica,
patrimônio e capacidade próprios. São seres distintos do Estado, sujeitos de
direitos e obrigações, pelo que agem por sua conta e risco, devendo responder
por suas próprias obrigações; 3) nem mesmo de responsabilidade solidária é
possível falar neste caso, porque a solidariedade só pode advir da lei ou do
contrato, inexistindo norma legal atribuindo solidariedade ao Estado com os
prestadores de serviços públicos. Antes pelo contrário, o art. 25 da Lei n.º
8.927/1995, que dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de
serviços públicos, estabelece responsabilidade direta e pessoal da concessionária
por todos os prejuízos causados ao poder concedente, aos usuários ou a
terceiros; 4) no máximo, poder-se-ia falar em responsabilidade subsidiária do
Estado, uma vez exauridos os recursos da entidade prestadora de serviços
públicos. Se o Estado escolheu mal aquele a quem atribuiu a execução de
serviços públicos, deve responder subsidiariamente caso o mesmo se torne
insolvente.” (CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil.
11ª ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 305-306)
Repetindo:
Quando o concurso público é
organizado por pessoa jurídica de direito privado, a entidade organizadora do
certame possui responsabilidade DIRETA pelos danos causados aos candidatos
inscritos, consistentes nas despesas efetuadas com a inscrição no certame, passagem
aérea e transporte terrestre.
Ao Estado caberá somente a
responsabilidade SUBSIDIÁRIA, caso a instituição organizadora venha a se tornar
insolvente. Não se deve penalizar
diretamente o Poder Público por fraude em certame organizado por pessoa jurídica
de direito privado, que, por cláusula contratual, estava obrigada a preservar o
conteúdo dos exames aplicados.
Tese fixada
O Estado responde subsidiariamente por danos
materiais causados a candidatos em concurso público organizado por pessoa jurídica
de direito privado (art. 37, § 6º, da CRFB/88), quando os exames são cancelados
por indícios de fraude.
STF. Plenário. RE 662405, Rel. Luiz Fux, julgado em 29/06/2020
(Repercussão Geral – Tema 512) (Info 986 – clipping).
Votos vencidos
O placar acima foi bem apertado e
ficaram vencidos os Ministros Alexandre de Moraes, Roberto Barroso, Ricardo
Lewandowski, Dias Toffoli e Gilmar Mendes, que entendiam que o Estado, nesses
casos, não tem responsabilidade nem mesmo subsidiária.