Dizer o Direito

sábado, 12 de setembro de 2020

Não cabe o princípio da insignificância para o caso de estelionato praticado por médico que, no desempenho de cargo público, registra o ponto e se retira do hospital



Imagine a seguinte situação hipotética:
João era médico de um hospital universitário federal.
Ele chegava para trabalhar na instituição, registrava seu ponto, mas em seguida se retirava do local sem cumprir sua carga horária.
Essa conduta teria perdurado por quase dois anos, quando foi descoberta.
Diante disso, o MPF ofereceu denúncia contra João pela prática de estelionato “qualificado”*, previsto no art. 171, § 3º c/c o art. 71 do Código Penal:
Art. 171. Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:
Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, de quinhentos mil réis a dez contos de réis.
(...)
§ 3º - A pena aumenta-se de um terço, se o crime é cometido em detrimento de entidade de direito público ou de instituto de economia popular, assistência social ou beneficência.

Art. 71. Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.

* o § 3º do art. 171 do CP, tecnicamente, não é uma hipótese de qualificadora, mas sim de causa de aumento de pena. Logo, o melhor não seria falar em estelionato qualificado, e sim em estelionato majorado. No entanto, no julgado constou essa denominação.

A defesa do réu pediu a sua absolvição com base no princípio da insignificância. Essa tese foi acolhida pelo STJ?
NÃO.
A jurisprudência do STJ não tem admitido, nos casos de prática de estelionato “qualificado”, a incidência do princípio da insignificância (princípio inspirado na fragmentariedade do Direito Penal). Isso porque se identifica, neste caso, uma maior reprovabilidade da conduta delitiva.
No caso concreto, o STJ afirmou que não era possível o trancamento da ação penal, sob o fundamento de inexistência de prejuízo expressivo para a vítima, considerando que, em se tratando de hospital universitário, os pagamentos aos médicos são provenientes de verbas federais.
STJ. 5ª Turma. AgRg no HC 548.869-RS, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 12/05/2020 (Info 672).

O Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento de que no delito previsto no art. 171, § 3º, do Código Penal não se aplica o princípio da insignificância para o trancamento da ação penal, uma vez que a conduta ofende o patrimônio público, a moral administrativa e a fé pública, bem como é altamente reprovável.
STJ. 5ª Turma. RHC 61.931/RS, Rel. Min. Gurgel de Faria, julgado em 15/12/2015.


Jurisprudência em Teses (ed. 84)
Tese 2: O princípio da insignificância é inaplicável ao crime de estelionato quando cometido contra a administração pública, uma vez que a conduta ofende o patrimônio público, a moral administrativa e a fé pública, possuindo elevado grau de reprovabilidade.

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