Dizer o Direito

sábado, 19 de setembro de 2020

É possível a realização de acordo com a finalidade de exonerar o devedor do pagamento de alimentos devidos e não pagos

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

Ana, criança de 5 anos de idade, representada por sua mãe Carla, ingressou com execução de alimentos contra Pedro (pai da autora) cobrando R$ 5 mil de parcelas atrasadas.

Algumas semanas após ter início o processo, as partes fizeram um acordo extrajudicial e o advogado da exequente apresentou uma petição ao juiz na qual Carla declarava que estava renunciando os R$ 5 mil cobrados na execução.

Diante disso, o magistrado extinguiu o processo com resolução do mérito, nos termos do art. 487, III, “c”, do CPC:

Art. 487.  Haverá resolução de mérito quando o juiz:

(...)

III - homologar:

(...)

c) a renúncia à pretensão formulada na ação ou na reconvenção.

 

O Promotor de Justiça que estava atuando no processo como fiscal da ordem jurídica não concordou e interpôs apelação alegando que a obrigação alimentar possui caráter irrenunciável e personalíssimo e, portanto, não seria possível que a genitora tivesse renunciado a verba alimentar da qual sua filha, absolutamente incapaz, é credora.

O Tribunal de Justiça manteve a sentença e a questão chegou até o STJ.

 

O STJ acolheu a tese do Ministério Público?

NÃO.

 

Não se pode renunciar alimentos presentes e futuros

O art. 1.707 do Código Civil prevê a seguinte regra:

Art. 1.707. Pode o credor não exercer, porém lhe é vedado renunciar o direito a alimentos, sendo o respectivo crédito insuscetível de cessão, compensação ou penhora.

 

O STJ, ao interpretar esse dispositivo, afirma que:

• o direito aos alimentos presentes e futuros é irrenunciável;

• essa proibição de renúncia não se aplica para as prestações vencidas;

• assim, o credor pode deixar de cobrar as prestações vencidas mesmo que já esteja na fase executiva.

A proibição de que haja renúncia do direito aos alimentos decorre da natureza protetiva do instituto dos alimentos. Contudo, essa irrenunciabilidade atinge tão somente o direito, e não o seu exercício.

“(...) A irrenunciabilidade atinge o direito, não seu exercício. Se de um lado, não é possível a renúncia ao direito a alimentos, de outro não se pode obrigar o beneficiário a exercer esse direito. (...)

A irrenunciabilidade diz com o direito a alimentos e não com as prestações vencidas e não pagas. Não alcança o débito alimentar. Mesmo quando o credor é incapaz, é admissível transação reduzindo o valor da dívida.

Ou seja, o credor não pode renunciar ao direito de pleitear alimentos. Mas, em sede de cobrança, a transação perdoando ou reduzindo débitos pretéritos pode ser homologado judicialmente.” (DIAS, Maria Berenice. Alimentos: direito, ação, eficácia e execução. 2ª ed. São Paulo: RT, 2017, págs. 38-39)

 

Assim, repetindo: a irrenunciabilidade e a proibição de transação só se aplicam para os alimentos presentes e futuros, não havendo qualquer obstáculo para que isso ocorra quanto aos alimentos pretéritos.

 

Em suma:

É irrenunciável o direito aos alimentos presentes e futuros (art. 1.707 do Código Civil).

O credor pode, contudo, renunciar aos alimentos pretéritos devidos e não prestados. Isso porque a irrenunciabilidade atinge o direito, e não o seu exercício.

STJ. 3ª Turma. REsp 1.529.532-DF, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 09/06/2020 (Info 673).

 

No caso, a extinção da execução em virtude da celebração de acordo em que o débito foi exonerado não resultou em prejuízo, pois não houve renúncia aos alimentos vincendos, indispensáveis ao sustento da alimentanda.

As partes transacionaram somente o crédito das parcelas específicas dos alimentos executados (alimentos pretéritos). Para isso, não existe óbice legal.

Vale ressaltar, ainda, que, especialmente no âmbito do Direito de Família, é salutar o estímulo à autonomia das partes para a realização de acordo, de autocomposição, como instrumento para se alcançar o equilíbrio e a manutenção dos vínculos afetivos. 


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