Dizer o Direito

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Lei 14.064/2020: aumenta a pena do crime de maus-tratos contra cães e gatos (Lei Sansão)

 

Olá, amigos do Dizer o Direito,

Foi publicada hoje (30/09/2020) a Lei nº 14.064/2020, que aumenta a pena do crime de maus-tratos contra cães e gatos. A novidade ficou conhecida como Lei Sansão, uma homenagem a um pitbull que teve as suas patas traseiras decepadas por um homem em Confins/MG.

Vamos entender.

 

Lei nº 9.605/98

A Lei nº 9.605/98 é a Lei de Crimes Ambientais.

No seu art. 32 está previsto o crime de maus-tratos contra animais

A Lei nº 14.064/2020 acrescenta o § 1º-A neste artigo criando uma qualificadora.

Antes de verificar a alteração da Lei nº 14.064/2020, vamos fazer uma breve revisão sobre o crime do art. 32.

 

Caput do art. 32

Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:

Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.

 

Sujeito ativo: trata-se de crime comum (pode ser praticado por qualquer pessoa).

Sujeito passivo: há divergência.

A posição tradicional (antropocêntrica) afirma que o sujeito passivo é a sociedade.

Existe, contudo, corrente mais moderna que sustenta que a vítima é o próprio animal, que não mais poderia ser considerado como mero “objeto de direitos”, sendo também “sujeito de direitos”.

Elemento objetivo:

“O art. 32 incrimina a conduta do sujeito ativo que pratica abuso (exigir demais) ou maus-tratos (causar sofrimento) ou feri (machucar) ou mutila (separar membros do corpo) animais.” (KURKOWSKI, Rafael Schwez. Crime Ambiental. In SOUZA, Renee do Ó. Leis penais especiais. Salvador: Juspodivm, 2018).

Elemento subjetivo: o crime é punido a título de dolo (não existe modalidade culposa).

Art. 64 da Lei de Contravenções Penais

Vale ressaltar que o art. 32 da Lei nº 9.605/98 revogou tacitamente o art. 64 da Lei de Contravenções Penais, que dizia o seguinte:

Art. 64. Tratar animal com crueldade ou submetê-lo a trabalho excessivo:

Pena – prisão simples, de dez dias a um mês, ou multa, de cem a quinhentos mil réis.

§ 1º Na mesma pena incorre aquele que, embora para fins didáticos ou científicos, realiza em lugar público ou exposto ao publico, experiência dolorosa ou cruel em animal vivo.

§ 2º Aplica-se a pena com aumento de metade, se o animal é submetido a trabalho excessivo ou tratado com crueldade, em exibição ou espetáculo público.

 

Figura equiparada do § 1º

§ 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos.


O §1º pune a realização de experiências dolorosas ou cruéis com animais vivos, como é o caso da vivissecção.

Segundo o Dicionário Michaelis, vivissecção consiste na “dissecação ou operação cirúrgica em animais vivos, para estudo de alguns fenômenos anatômicos e fisiológicos.” (http://michaelis.uol.com.br/busca?id=L1RAk)

Essa experiência dolorosa ou cruel pode ocorrer com duas finalidades:

a) com fins didáticos ou científicos

b) sem fins didáticos ou científicos.

 

Vale ressaltar, contudo, que, se a conduta foi realizada com fins didáticos ou científicos, só haverá crime se havia outra alternativa para o pesquisador/cientista, mas ele optou por aquela que causava dor ou que se mostrava cruel.

A Lei nº 11.794/2008 estabelece procedimentos para o uso científico de animais.

O art. 14 traz uma série de requisitos sobre o tema:

Art. 14. O animal só poderá ser submetido às intervenções recomendadas nos protocolos dos experimentos que constituem a pesquisa ou programa de aprendizado quando, antes, durante e após o experimento, receber cuidados especiais, conforme estabelecido pelo CONCEA.

(...)

§ 4º O número de animais a serem utilizados para a execução de um projeto e o tempo de duração de cada experimento será o mínimo indispensável para produzir o resultado conclusivo, poupando-se, ao máximo, o animal de sofrimento.

§ 5º Experimentos que possam causar dor ou angústia desenvolver-se-ão sob sedação, analgesia ou anestesia adequadas.

§ 6º Experimentos cujo objetivo seja o estudo dos processos relacionados à dor e à angústia exigem autorização específica da CEUA, em obediência a normas estabelecidas pelo CONCEA.

(...)

 

Se devidamente cumpridos os requisitos da Lei nº 11.794/2008, não haverá o crime do art. 32.

 

Causa de aumento de pena do § 2º

§ 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal.

 

Se o agente, dolosamente, matar animal silvestre ou nativo, o crime é o do art. 29 da Lei nº 9.605/98.

 

O que fez a Lei nº 14.064/2020?

Acrescentou um parágrafo ao art. 32 prevendo uma qualificadora para os maus-tratos contra cães e gatos, com a seguinte redação:

Art. 32 (...)

§ 1º-A Quando se tratar de cão ou gato, a pena para as condutas descritas no caput deste artigo será de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição da guarda.

 

Alguns pontos de destaque sobre a novidade:

Causar maus-tratos* em animal silvestre, domesticado ou doméstico

(com exceção de cães e gatos)

Causar maus-tratos*

em cães e gatos

Detenção de 3 meses a 1 ano

+ multa.

Reclusão de 2 a 5 anos

+ multa

+ proibição da guarda.

Crime de menor potencial ofensivo

(cabe transação penal e suspensão condicional do processo).

Não é crime de menor potencial ofensivo

(não cabe transação penal nem suspensão condicional do processo)

Em regra, não gera a prisão do infrator sendo aplicadas medidas despenalizadoras.

Pode gerar a prisão do condenado, desde que não seja caso de substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.

Se, em decorrência da conduta, ocorre a morte do animal, haverá aumento de 1/6 a 1/3.

Se, em decorrência da conduta, ocorre a morte do animal, também haverá aumento de 1/6 a 1/3.

 

* a expressão maus-tratos aqui está empregada em sentido amplo, abrangendo qualquer das condutas do caput do art. 32: praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar os animais.

Vale ressaltar que o maus-tratos de pessoas está previsto no art. 136 do Código Penal:

Art. 136. Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina:

Pena - detenção, de dois meses a um ano, ou multa.

§ 1º - Se do fato resulta lesão corporal de natureza grave:

Pena - reclusão, de um a quatro anos.

§ 2º - Se resulta a morte:

Pena - reclusão, de quatro a doze anos.

§ 3º - Aumenta-se a pena de um terço, se o crime é praticado contra pessoa menor de 14 (catorze) anos.

 

A Lei nº 14.064/2020 entrou em vigor na data de sua publicação (30/9/2020).

 

  



terça-feira, 29 de setembro de 2020

INFORMATIVO Comentado 673 STJ



Olá amigos do Dizer o Direito,

Já está disponível o INFORMATIVO Comentado 673 STJ.

Confira abaixo o índice. Bons estudos.

 
ÍNDICE DO INFORMATIVO 673 DO STJ
 
DIREITO CONSTITUCIONAL
DEFENSORIA PÚBLICA
Havendo convênio entre a Defensoria e a OAB possibilitando a atuação dos causídicos quando não houver defensor público para a causa, os honorários podem ser executados nos próprios autos, mesmo se o Estado não tiver participado da ação de conhecimento.
 
DIREITO AMBIENTAL
CÓDIGO FLORESTAL
O art. 15 do Código Florestal não se aplica para situações consolidadas antes de sua vigência
 
DIREITO CIVIL
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
Não há condenação em honorários advocatícios em incidente de desconsideração da personalidade jurídica.
 
RESPONSABILIDADE CIVIL
O ato de vandalismo que resulta no rompimento de cabos elétricos de vagão de trem não exclui necessariamente a responsabilidade da concessionária/transportadora.
 
ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA
O prazo de 5 dias para pagamento da integralidade da dívida é material e, portanto, contado em dias corridos.
 
AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
O juiz deve adotar as medidas do art. 139, IV, do CPC para superar a resistência da pessoa que deveria fornecer o material para exame de DNA, mas está se recusando a fazê-lo.
 
ALIMENTOS
É possível a realização de acordo com a finalidade de exonerar o devedor do pagamento de alimentos devidos e não pagos.
É cabível ação de exigir contas pelo alimentante contra a genitora guardiã do alimentado para obtenção de informações sobre a destinação da pensão paga, desde que proposta sem a finalidade de apurar a existência de eventual crédito
 
PRISÃO CIVIL
Como fica a prisão civil do devedor de alimentos durante a pandemia da Covid-19?
 
DIREITO DO CONSUMIDOR
TRANSPORTE AÉREO
A indenização decorrente de extravio de bagagem e de atraso de voo internacional está submetida à tarifação prevista na Convenção de Montreal?
 
PLANO DE SAÚDE
É devida a cobertura, pelo plano de saúde, do procedimento de criopreservação de óvulos de paciente fértil, até a alta do tratamento quimioterápico, como medida preventiva à infertilidade.
Prazo prescricional para cobrar reembolso de plano de saúde (ou de seguro-saúde) é de 10 anos.
 
DIREITO EMPRESARIAL
FALÊNCIA
A regra do art. 104, III, da atual Lei de Falências pode ser aplicada para as falências ocorridas antes da sua vigência.
 
ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
COMPETÊNCIA
De quem é a competência para executar a verba honorária sucumbencial arbitrada pelo Juízo da Infância e Juventude?
 
ASPECTOS CÍVEIS
Em ACP na qual se questiona acolhimento institucional de menor, não é admissível o julgamento de improcedência liminar ou o julgamento antecipado do pedido, especialmente quando não há tese jurídica fixada em precedente vinculante
 
DIREITO PROCESSUAL CIVIL
CUMPRIMENTO DE SENTENÇA
Ainda que citado pessoalmente na fase de conhecimento, é devida a intimação por carta do réu revel, sem procurador constituído, para o cumprimento de sentença.
O acréscimo de 10% de honorários advocatícios, previsto pelo art. 523, § 1º, do CPC/2015, quando não ocorrer o pagamento voluntário no cumprimento de sentença, não admite relativização.
 
EXPROPRIAÇÃO
Compete ao juízo da execução realizar a alienação judicial eletrônica, ainda que o bem esteja situado em comarca diversa.
 
DIREITO PENAL
LEI DE DROGAS
Transportar folhas de coca: crime do art. 33, § 1º, I, da Lei nº 11.343/2006.
 
DIREITO PROCESSUAL PENAL
COMPETÊNCIA
Em regra, compete à Justiça Estadual julgar habeas corpus preventivo destinado a permitir o cultivo e o porte de maconha para fins medicinais.
Os crimes relacionados com pirâmide financeira envolvendo criptomoedas são, em princípio, de competência da Justiça Estadual.
 
PRISÃO
A Recomendação 62/2020 do CNJ não é aplicável ao acusado que não está privado de liberdade no sistema penal brasileiro.
 
TRABALHO EXTERNO
Durante a pandemia da Covid-19, os apenados que tiveram suspenso o exercício do trabalho externo, possuem direito à prisão domiciliar?
 
DIREITO TRIBUTÁRIO
PROCESSO TRIBUTÁRIO
O Secretário de Estado da Fazenda não está legitimado a figurar, como autoridade coatora, em mandados de segurança que visa evitar a prática de lançamento fiscal.
 










INFORMATIVO Comentado 673 STJ - Versão Resumida


Olá amigos do Dizer o Direito,

Já está disponível o INFORMATIVO Comentado 673 STJ - Versão Resumida.

Bons estudos.




sábado, 26 de setembro de 2020

Lei 14.063/2020: dispõe sobre as assinaturas eletrônicas em interações com entes públicos

  

Olá, amigos do Dizer o Direito,

Foi publicada no dia 24/09/2020, a Lei nº 14.063/2020, que dispõe sobre o uso de assinaturas eletrônicas em interações com entes públicos.

Vamos entender sobre o que trata a Lei, mas antes são necessários alguns esclarecimentos.

 

Assinatura eletrônica

Assinatura eletrônica é uma forma, prevista em lei, por meio do qual a pessoa pode assinar virtualmente um documento com a mesma validade jurídica da assinatura presencial.

A Lei nº 14.063/2020 define assinatura eletrônica como sendo “os dados em formato eletrônico que se ligam ou estão logicamente associados a outros dados em formato eletrônico e que são utilizados pelo signatário para assinar, observados os níveis de assinaturas apropriados para os atos previstos nesta Lei”.

 

Assinatura eletrônica em processos judiciais

Segundo a Lei nº 11.419/2006, a assinatura eletrônica, no processo judicial, pode ocorrer de duas formas:

a) o usuário (ex: o advogado) se cadastra perante uma Autoridade Certificadora Credenciada (exs.: SERPRO, SERASA, Certisign) e, com isso, obtém um “token” (uma espécie de chave digital), parecido com um “pen drive”, que é inserido no computador e, após a pessoa digitar sua senha, poderá assinar eletronicamente o documento. É também chamada de assinatura digital; ou

b) o usuário, mediante senha, entra em um sistema informatizado do respectivo Tribunal e assina os seus documentos. Para isso, esse usuário deve ser previamente cadastrado.

Existem outras formas de assinatura eletrônica, mas os dois modelos acima explicados são os mais comuns no Poder Judiciário, tendo sido previstos na Lei nº 11.419/2006.

A definição legal de assinatura digital encontra-se prevista no § 2º do art. 1º da referida Lei:

Art. 1º O uso de meio eletrônico na tramitação de processos judiciais, comunicação de atos e transmissão de peças processuais será admitido nos termos desta Lei.

(...)

§ 2º Para o disposto nesta Lei, considera-se:

(...)

III — assinatura eletrônica as seguintes formas de identificação inequívoca do signatário:

a) assinatura digital baseada em certificado digital emitido por Autoridade Certificadora credenciada, na forma de lei específica;

b) mediante cadastro de usuário no Poder Judiciário, conforme disciplinado pelos órgãos respectivos.

 

Assinatura eletrônica, portanto, não é o mesmo que assinatura digitalizada

A assinatura digitalizada não se confunde com a assinatura eletrônica:

Assinatura ELETRÔNICA

Assinatura DIGITALIZADA

Para a assinatura eletrônica, exige-se um prévio cadastramento perante a autoridade certificadora ou perante os órgãos do Poder Judiciário. Isso faz com que se possa ter uma maior segurança de que a pessoa que está assinando eletronicamente é o usuário cadastrado (advogado). Justamente por essa razão, a assinatura digital passa a ter o mesmo valor da assinatura original, escrita de próprio punho pelo advogado, na peça processual.

Na assinatura digitalizada, normalmente feita mediante o processo de escaneamento, há uma “mera chancela eletrônica sem qualquer regulamentação e cuja originalidade não é possível afirmar sem o auxílio de perícia técnica” (STF. 1ª Turma. AI 564.765-RJ, DJ 17/3/2006).

A reprodução de uma assinatura, por meio do escaneamento, sem qualquer regulamentação, é arriscada, na medida em que pode ser copiada por qualquer pessoa que tenha acesso ao documento original e inserida em outros documentos.

Desse modo, não há garantia alguma de autenticidade.

É válida, podendo ser aposta nas petições em geral e nos recursos.

NÃO é válida. Se for aposta no recurso, este não será conhecido, sendo reputado inexistente.

 

Lei nº 14.063/2020

A Lei nº 14.063/2020 dispõe sobre o uso de assinaturas eletrônicas em interações com entes públicos.

 

ASSINATURA ELETRÔNICA EM INTERAÇÕES COM ENTES PÚBLICOS

A palavra “interação” pode ser entendida aqui como qualquer forma de contato, comunicação, relacionamento. Essa interação pode ocorrer em três níveis:

a) interação dentro de um mesmo órgão ou entidade. Ex: o servidor do Ministério da Economia elaborar um parecer destinado ao Ministro. Ele irá assinar a manifestação e encaminhá-la ao titular da pasta. Nessa interação, poderá utilizar a assinatura eletrônica, na forma disciplinada pela Lei nº 14.063/2020.

b) interação entre particulares e a Administração Pública. Ex: um comerciante deseja regularizar uma pendência relacionada com seu alvará de funcionamento. Esse requerimento dirigido à municipalidade poderá ser assinado eletronicamente.

c) interação entre os entes públicos. Ex: o Município formula requerimento ao Estado pedindo a cessão de determinado servidor público. Nessa interação, as assinaturas poderão ser feitas eletronicamente.

Confira a redação da Lei nº 14.063/2020 neste ponto:

Art. 2º Este Capítulo estabelece regras e procedimentos sobre o uso de assinaturas eletrônicas no âmbito da:

I – interação interna dos órgãos e entidades da administração direta, autárquica e fundacional dos Poderes e órgãos constitucionalmente autônomos dos entes federativos;

II – interação entre pessoas naturais ou pessoas jurídicas de direito privado e os entes públicos de que trata o inciso I do caput deste artigo;

III – interação entre os entes públicos de que trata o inciso I do caput deste artigo.

 

SITUAÇÕES REGIDAS PELA LEI 14.063/2020

As regras e procedimentos sobre o uso de assinaturas eletrônicas previstas na Lei 14.063/2020 se aplicam no âmbito da:

Interno

I – interação interna dos órgãos e entidades da administração pública direta, autárquica e fundacional dos três Poderes e órgãos constitucionalmente autônomos (MP e Defensoria Pública).

Obs: vale tanto para União, Estados, DF e Municípios.

Particulares e entes públicos

II – interação entre pessoas naturais ou pessoas jurídicas de direito privado e os entes públicos;

Entre entes públicos

III – interação entre os entes públicos de que trata o inciso I do caput deste artigo.

 

SITUAÇÕES NÃO REGIDAS PELA LEI 14.063/2020

As regras da

Lei 14.063/2020

NÃO se aplicam:

I – aos processos judiciais;

II – à interação:

a) entre pessoas naturais ou entre pessoas jurídicas de direito privado;

b) na qual seja permitido o anonimato;

c) na qual seja dispensada a identificação do particular;

III – aos sistemas de ouvidoria de entes públicos;

IV – aos programas de assistência a vítimas e a testemunhas ameaçadas;

V – às outras hipóteses nas quais deva ser dada garantia de preservação de sigilo da identidade do particular na atuação perante o ente público.

 

Classificação das Assinaturas Eletrônicas

As assinaturas eletrônicas são classificadas de acordo com o nível de confiança que ela transmite.

Assim, quanto maior a confiança, maior é a certeza sobre a identidade e a manifestação de vontade do titular.

A assinatura eletrônica menos confiável é a simples.

A avançada tem uma confiabilidade média.

A assinatura eletrônica qualificada, por sua vez, é a que possui nível mais elevado de confiabilidade.

CLASSIFICAÇÃO DAS ASSINATURAS ELETRÔNICAS

Assinatura eletrônica

SIMPLES

É aquela que:

a) permite identificar o seu signatário;

b) anexa ou associa dados a outros dados em formato eletrônico do signatário.

Por ter menor grau de confiabilidade, a assinatura eletrônica simples pode ser admitida nas interações com ente público de menor impacto e que não envolvam informações protegidas por grau de sigilo.

Assinatura eletrônica

AVANÇADA

É aquela que utiliza certificados não emitidos pela ICP-Brasil ou outro meio de comprovação da autoria e da integridade de documentos em forma eletrônica, desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento, com as seguintes características:

a) está associada ao signatário de maneira unívoca;

b) utiliza dados para a criação de assinatura eletrônica cujo signatário pode, com elevado nível de confiança, operar sob o seu controle exclusivo;

c) está relacionada aos dados a ela associados de tal modo que qualquer modificação posterior é detectável.

A assinatura eletrônica avançada pode ser admitida:

a) no registro de atos perante as juntas comerciais.

b) nas mesmas hipóteses em que se admite a assinatura simples.

Assinatura eletrônica

QUALIFICADA

É a que utiliza certificado digital, nos termos do § 1º do art. 10 da MP 2.200-2/2001.

 

A MP 2.200-2/2001 instituiu a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil).  No Brasil, a infraestrutura de chaves públicas é de responsabilidade de uma autarquia federal, o ITI - Instituto Nacional de Tecnologia da Informação.

 

A assinatura eletrônica qualificada será admitida em qualquer interação eletrônica com ente público, independentemente de cadastramento prévio.

Vale ressaltar que, por ser mais confiável, a assinatura qualificada pode ser utilizada nas hipóteses em que se admite a utilização das demais assinaturas.

 

É OBRIGATÓRIO o uso de assinatura eletrônica qualificada:

I - nos atos assinados por chefes de Poder, por Ministros de Estado ou por titulares de Poder ou de órgão constitucionalmente autônomo de ente federativo;

II - nas emissões de notas fiscais eletrônicas, com exceção daquelas cujos emitentes sejam pessoas físicas ou Microempreendedores Individuais (MEIs), situações em que o uso torna-se facultativo;

III - nos atos de transferência e de registro de bens imóveis;

IV - nas demais hipóteses previstas em lei.

 

Antes da edição da Lei nº 14.063/2020 (que é fruto da MP 983/2020), nas relações com o poder público somente se admitia assinatura eletrônica emitida com certificado digital no padrão Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileiras (ICP-Brasil). Em outras palavras, só era admitida a assinatura eletrônica qualificada.

 

Revogação ou cancelamento

Devem ser asseguradas formas de revogação ou de cancelamento definitivo do meio utilizado para as assinaturas eletrônicas, sobretudo em casos de comprometimento de sua segurança ou de vazamento de dados.

 

Aceitação e da Utilização de Assinaturas Eletrônicas pelos Entes Públicos

O titular do Poder ou do órgão constitucionalmente autônomo de cada ente federativo deverá editar um ato estabelecendo o nível mínimo exigido para a assinatura eletrônica em documentos e em interações com o ente público.

O ente público informará em seu site os requisitos e os mecanismos estabelecidos internamente para reconhecimento de assinatura eletrônica avançada.

 

Conflitos de exigências entre entes distintos

No caso de conflito entre normas vigentes ou de conflito entre normas editadas por entes distintos, prevalecerá o uso de assinaturas eletrônicas qualificadas.

 

Certidões emitidas pelo sistema da Justiça Eleitoral

As certidões emitidas por sistema eletrônico da Justiça Eleitoral possuem fé pública.

Vale ressaltar, inclusive, que essas certidões substituem os cartórios de registro de pessoas jurídicas para constituição dos órgãos partidários estaduais e municipais, dispensados quaisquer registros em cartórios da circunscrição do respectivo órgão partidário.

 

ATOS PRATICADOS POR PARTICULARES PERANTE ENTES PÚBLICOS

As assinaturas eletrônicas qualificadas contidas em atas deliberativas de assembleias, de convenções e de reuniões das pessoas jurídicas de direito privado constantes do art. 44 do Código Civil devem ser aceitas pelas pessoas jurídicas de direito público e pela administração pública direta e indireta pertencentes aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

 

ASSINATURA ELETRÔNICA EM QUESTÃO DE SAÚDE PÚBLICA

Os receituários de medicamentos sujeitos a controle especial e os atestados médicos em meio eletrônico, previstos em ato do Ministério da Saúde, somente serão válidos quando subscritos com assinatura eletrônica qualificada do profissional de saúde.

 

Os documentos eletrônicos subscritos por profissionais de saúde e relacionados à sua área de atuação são válidos para todos os fins quando assinados por meio de:

I - assinatura eletrônica avançada; ou

II - assinatura eletrônica qualificada.

O receituário de medicamentos terá validade em todo o território nacional, independentemente do ente federativo em que tenha sido emitido, inclusive o de medicamentos sujeitos ao controle sanitário especial, nos termos da regulação.

As receitas em meio eletrônico, ressalvados os atos internos no ambiente hospitalar, somente serão válidas se contiverem a assinatura eletrônica avançada ou qualificada do profissional e atenderem aos requisitos da Anvisa ou do Ministério da Saúde, conforme as respectivas competências.

É obrigatória a utilização de assinaturas eletrônicas qualificadas para receituários de medicamentos sujeitos a controle especial e para atestados médicos em meio eletrônico.

Essas exigências de nível mínimo não se aplicam aos atos internos do ambiente hospitalar.

 

SISTEMAS DE INFORMAÇÃO E DE COMUNICAÇÃO DOS ENTES PÚBLICOS

Os sistemas de informação e de comunicação desenvolvidos exclusivamente por órgãos e entidades da administração direta, autárquica e fundacional dos Poderes e órgãos constitucionalmente autônomos dos entes federativos são regidos por licença de código aberto, permitida a sua utilização, cópia, alteração e distribuição sem restrições por todos os órgãos e entidades.

Não estão sujeitos à regra acima exposta:

I - os sistemas de informação e de comunicação cujo código-fonte possua restrição de acesso à informação, nos termos do Capítulo IV da Lei nº 12.527/2011;

II - os dados armazenados pelos sistemas de informação e de comunicação;

III - os componentes de propriedade de terceiros; e

IV - os contratos de desenvolvimento de sistemas de informação e de comunicação que tenham sido firmados com terceiros antes da data de entrada em vigor da Lei nº 14.063/2020 e que contenham cláusula de propriedade intelectual.

 

DISPOSIÇÕES FINAIS E TRANSITÓRIAS

Art. 17. O disposto nesta Lei não estabelece obrigação aos órgãos e entidades da administração direta, indireta, autárquica e fundacional dos Poderes e órgãos constitucionalmente autônomos dos entes federativos de disponibilizarem mecanismos de comunicação eletrônica em todas as hipóteses de interação com pessoas naturais ou jurídicas.

 

Art. 18. Os sistemas em uso na data de entrada em vigor desta Lei que utilizem assinaturas eletrônicas e que não atendam ao disposto no art. 5º desta Lei serão adaptados até 1º de julho de 2021.

 

Vigência

A Lei nº 14.063/2020 entrou em vigor na data da sua publicação (24/09/2020).

 

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

A indenização decorrente de extravio de bagagem e de atraso de voo internacional está submetida à tarifação prevista na Convenção de Montreal?

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

Letícia passou sua lua de mel em Paris.

Ela voltou da França em um voo direto que pousou em Natal (RN).

A viagem dos sonhos acabou se transformando em um pesadelo ao final. Isso porque a mala de Letícia foi extraviada pela companhia aérea, que simplesmente perdeu a bagagem.

Além do transtorno, Letícia sofreu um enorme prejuízo econômico. Na mala, havia duas bolsas de grife francesa e cinco vestidos da última coleção.

Diante disso, Letícia ajuizou ação de indenização contra a “Air Paris” pedindo o pagamento de R$ 100 mil a título de danos materiais, além de reparação por danos morais.

 

Contestação: tese da indenização tarifada (Convenção de Varsóvia)

O valor de todos os produtos que estavam na mala de Letícia foi de R$ 100 mil, sendo esta a quantia cobrada por ela da “Air Paris”.

Na contestação, contudo, a companhia aérea alegou que, no transporte internacional, deve vigorar os limites de indenização impostos pela “Convenção de Varsóvia”.

A Convenção de Varsóvia é um tratado internacional, assinado pelo Brasil em 1929 e promulgado por meio do Decreto nº 20.704/31. Posteriormente, ela foi alterada pelo Protocolo Adicional 4, assinado na cidade canadense de Montreal em 1975 (ratificado e promulgado pelo Decreto 2.861/1998). Daí falarmos em Convenções de Varsóvia e de Montreal.

Essas Convenções estipulam valores máximos que o transportador poderá ser obrigado a pagar em caso de responsabilidade civil decorrente de transporte aéreo internacional. Dessa forma, tais Convenções adotam o princípio da indenizabilidade restrita ou tarifada.

Em caso de extravio de bagagens, por exemplo, a Convenção determina que o transportador somente poderá ser obrigado a pagar uma quantia máxima de cerca de R$ 5.940,00.

Assim, em vez de receber R$ 100 mil, Letícia teria que se contentar com o limite máximo de indenização (por volta de R$ R$ 5.940,00).

 

Conflito entre dois diplomas

No presente caso, temos um conflito entre dois diplomas legais:

• O CDC, que garante ao consumidor o princípio da reparação integral do dano;

• As Convenções de Varsóvia e de Montreal, que determinam a indenização tarifada em caso de transporte internacional.

Assim, a antinomia ocorre entre o art. 14 do CDC, que impõe ao fornecedor do serviço o dever de reparar os danos causados, e o art. 22 da Convenção de Varsóvia, que fixa limite máximo para o valor devido pelo transportador, a título de reparação.

 

Qual dos dois diplomas irá prevalecer? Em caso de apuração dos danos materiais decorrentes de extravio de bagagem ocorrido em transporte internacional envolvendo consumidor, aplica-se o CDC ou a indenização tarifada prevista nas Convenções de Varsóvia e de Montreal?

As Convenções internacionais.

Nos termos do art. 178 da Constituição da República, as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor.

STF. Plenário. RE 636331/RJ, Rel. Min. Gilmar Mendes e ARE 766618/SP, Rel. Min. Roberto Barroso, julgados em 25/05/2017 (Repercussão Geral – Tema 210) (Info 866).

 

Veja como esse tema já foi muito explorado em provas:

þ (Promotor MP/GO 2019) Nos termos do artigo 178 da Constituição Federal da República, as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor. (certo)

þ (Promotor MP/BA 2018) nos termos do artigo 178 da Constituição da República brasileira, as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor. (certo)

ý (Juiz TJ/BA 2019 CEBRASPE) Pela sua especificidade, as normas previstas no CDC têm prevalência em relação àquelas previstas nos tratados internacionais que limitam a responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros pelo desvio de bagagem, especialmente as Convenções de Varsóvia e de Montreal. (errado)

O STJ passou a acompanhar o mesmo entendimento do STF:

É possível a limitação, por legislação internacional especial, do direito do passageiro à indenização por danos materiais decorrentes de extravio de bagagem.

STJ. 3ª Turma. REsp 673.048-RS, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 08/05/2018 (Info 626).

 

Por que prevalecem as Convenções?

Porque a Constituição Federal de 1988 determinou que, em matéria de transporte internacional, deveriam ser aplicadas as normas previstas em tratados internacionais. Veja:

Art. 178. A lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre, devendo, quanto à ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade.

 

Assim, em virtude dessa previsão expressa quanto ao transporte internacional, deve-se afastar o Código de Defesa do Consumidor e aplicar o regramento do tratado internacional.

 

Critérios para resolver esta antinomia

A Convenção de Varsóvia, enquanto tratado internacional comum, possui natureza de lei ordinária e, portanto, está no mesmo nível hierárquico que o CDC. Logo, não há diferença de hierarquia entre os diplomas normativos. Diante disso, a solução do conflito envolve a análise dos critérios cronológico e da especialidade.

Em relação ao critério cronológico, os acordos internacionais referidos são mais recentes que o CDC. Isso porque, apesar de o Decreto 20.704 ter sido publicado em 1931, ele sofreu sucessivas modificações posteriores ao CDC.

Além disso, a Convenção de Varsóvia – e os regramentos internacionais que a modificaram – são normas especiais em relação ao CDC, pois disciplinam modalidade especial de contrato, qual seja, o contrato de transporte aéreo internacional de passageiros.

 

Duas importantes observações:

1) as Convenções de Varsóvia e de Montreal regulam apenas o transporte internacional (art. 178 da CF/88). Em caso de transporte nacional, aplica-se o CDC;

2) as Convenções de Varsóvia e de Montreal devem ser aplicadas não apenas na hipótese de extravio de bagagem, mas também em outras questões envolvendo o transporte aéreo internacional.

 

E quanto aos danos morais? Também se aplica se aplicam as referidas Convenções?

NÃO.

As indenizações por danos morais decorrentes de extravio de bagagem e de atraso de voo internacional não estão submetidas à tarifação prevista na Convenção de Montreal, devendo-se observar, nesses casos, a efetiva reparação do consumidor preceituada pelo CDC.

STJ. 3ª Turma. REsp 1.842.066-RS, Rel. Min. Moura Ribeiro, julgado em 09/06/2020 (Info 673).

 

O art. 22 da Convenção de Montreal não mencionou claramente a espécie de danos aos quais se referia, mas é preciso considerar que ele representou uma mera atualização da Convenção de Varsóvia, firmada em 1929, quando nem sequer se cogitava de indenização por danos morais.

Assim, se a norma original cuidou apenas de danos materiais, parece razoável sustentar que a norma atualizadora também se ateve a essa mesma categoria de danos. Quisesse o contrário, assim teria dito.

Além disso, os prejuízos de ordem extrapatrimonial, pela sua própria natureza, não admitem tabelamento prévio ou tarifação (STJ. 4ª Turma. AgInt no REsp 1.608.573/RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 23/8/2019).

Assim, se os países signatários da Convenção de Montreal tinham a intenção de impor limites à indenização por danos morais nos casos de atraso de voo e de extravio de bagagem/carga, deveriam tê-lo feito de modo expresso.

Ainda é preciso recordar que a própria Convenção de Montreal admitiu a possibilidade de o passageiro elidir o limite indenizatório nela previsto para os casos de extravio de bagagem, realizando uma declaração especial que indique o valor dos bens transportados.

Da mesma forma, o nº 4 do art. 22 deixa claro que a indenização devida em caso de destruição, perda, avaria ou atraso da carga deve levar em consideração o peso total ou o volume da carga transportada.

Ora, se o passageiro pode afastar o limite legal mediante declaração especial do valor patrimonial da bagagem transportada é porque referido limite legal tem por objetivo reparar danos patrimoniais. De igual maneira, se a indenização máxima em caso de extravio de carga está atrelada ao volume e peso total da carga transportada é porque referida indenização visa a compensar prejuízos de ordem material.

Em suma, seja porque a Convenção de Montreal representou mera atualização da Convenção de Viena, que não tratou de danos morais; seja porque a quantificação dos danos extrapatrimoniais segue sistemática própria avessa a qualquer tipo de tarifação ou tabelamento; seja, finalmente, porque a própria Convenção de Montreal admitiu o afastamento do limite indenizatório legal quando feita declaração especial do valor da bagagem transportada, é possível concluir que ela não incluiu os danos morais.

Nesses termos, muito embora se trate de norma posterior ao CDC e constitua lex specialis em relação aos contratos de transporte aéreo internacional, não pode ser aplicada para limitar a indenização devida aos passageiros em caso de danos morais decorrentes de atraso de voo ou extravio de bagagem.

 

Mas e a decisão do STF no RE 636331?

A tese fixada pelo STF no RE 636331/RJ (Tema 210) tem aplicação apenas aos pedidos de reparação por danos materiais.

Examinando o inteiro teor do acórdão, é possível verificar que, naquele caso, não se discutia limitação da indenização por danos morais, mas apenas a reparação por danos materiais decorrentes do extravio de bagagem.

Vale ressaltar, ainda, que os Ministros Gilmar Mendes d Ricardo Lewandowski afirmaram, a título de obiter dictum, que os limites indenizatórios da Convenção de Montreal não se aplicavam às hipóteses de indenização por danos extrapatrimoniais.

 

Recapitulando. A indenização decorrente de extravio de bagagem e de atraso de voo internacional está submetida à tarifação prevista na Convenção de Montreal?

• Em caso de danos MATERIAIS: SIM.

• Em caso de danos MORAIS: NÃO.

A tese fixada pelo STF no RE 636331/RJ (Tema 210) tem aplicação apenas aos pedidos de reparação por danos materiais.


terça-feira, 22 de setembro de 2020

Não há condenação em honorários advocatícios em incidente de desconsideração da personalidade jurídica

 

Princípio da autonomia patrimonial

As pessoas jurídicas são sujeitos de direitos. Isso significa que possuem personalidade jurídica distinta de seus instituidores. Assim, por exemplo, não é porque o sócio morreu que, obrigatoriamente, a pessoa jurídica será extinta.

De igual modo, o patrimônio da pessoa jurídica é diferente do patrimônio de seus sócios.

Ex.1: se uma sociedade empresária possui um veículo, esse automóvel não pertence aos sócios, mas sim à própria pessoa jurídica.

Ex.2: se uma sociedade empresária possui uma dívida, este débito deverá ser pago com os bens da própria sociedade, não podendo, para isso, em regra, ser utilizado o patrimônio pessoal dos sócios.

Vigora, portanto, o princípio da autonomia patrimonial entre os bens do sócio e da pessoa jurídica.

 

Desconsideração da personalidade jurídica

O ordenamento jurídico prevê algumas situações em que essa autonomia patrimonial pode ser afastada.

Tais hipóteses são chamadas de “desconsideração da personalidade jurídica” (disregard of legal entity ou teoria do superamento da personalidade jurídica).

Quando se aplica a desconsideração da personalidade jurídica, os bens particulares dos administradores ou sócios são utilizados para pagar dívidas da pessoa jurídica.

 

Desconsideração da personalidade jurídica no CC-2002

A desconsideração da personalidade jurídica, no âmbito das relações civis gerais, está disciplinada no art. 50 do CC.

 

Regras processuais sobre a desconsideração da personalidade jurídica

O CPC/2015, de forma inovadora, trouxe regras para disciplinar o procedimento para a decretação ou não da desconsideração da personalidade jurídica no processo.

O Código previu que essa desconsideração poderá ser postulada de duas formas:

a) em caráter principal, quando o pedido é formulado já na petição inicial;

b) em caráter incidental, quando o pedido é feito no curso do processo.

 

Desconsideração requerida na inicial

Desconsideração pedida na petição inicial

O autor, ao ingressar com a ação contra o réu, já requer, na petição inicial, a desconsideração da personalidade jurídica.

Neste caso, não será necessária a instauração de um incidente.

 

Se o pedido for para desconsideração direta

Isso significa que a ação é proposta contra a “empresa” (pessoa jurídica), mas o autor já pede, desde logo, que seja afastada a autonomia patrimonial e se atinjam os bens dos sócios.

Logo, a ação é proposta contra a pessoa jurídica e contra os sócios.

O autor pedirá a citação:

• da pessoa jurídica, afirmando que ela é a devedora (a pessoa jurídica é que é a devedora “originária”); e

• dos sócios, argumentando que eles, apesar de não serem devedores da obrigação (não participaram da relação obrigacional), são responsáveis pelo pagamento do débito, ou seja, pede-se para atingir o patrimônio pessoal dos sócios, mesmo eles não tendo participado da relação obrigacional (ex: quem assinou o contrato foi a pessoa jurídica – e não as pessoas físicas).

Veja algumas importantes observações da doutrina:

“A inicial deve deixar claro que o débito é da empresa e que a pretensão de cobrança está direcionada contra ela. O que se pretende em relação ao sócio não é a sua condenação ao pagamento do débito, mas o reconhecimento de que ele é responsável patrimonial, uma vez que estão preenchidos os requisitos do direito material para a desconsideração da personalidade jurídica. Serão dois os pedidos formulados na inicial: o condenatório, de cobrança, dirigido contra o devedor; e o de extensão da responsabilidade patrimonial, direcionado contra o sócio e fundado no preenchimento dos requisitos do art. 50 do Código Civil ou do art. 28 do CDC.

(...)

O sócio será citado, na condição de corréu, para oferecer resposta no prazo de 15 dias (observado o art. 229, do CPC). Em sua contestação, deverá defender-se do pedido contra ele direcionado, isto é, o de extensão da responsabilidade patrimonial pelo débito da empresa.” (GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Direito Processual Civil Esquematizado. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 257).

 

Se o pedido na Inicial for para desconsideração “inversa”

Isso significa que a ação é proposta contra um(uns) do(s) sócio(s), mas o autor já pede, desde logo, que seja afastada a autonomia patrimonial e se atinjam os bens da pessoa jurídica.

Logo, a ação é proposta contra o sócio e contra a pessoa jurídica.

O autor pedirá a citação:

• do sócio (que era o devedor “originário”); e

• da pessoa jurídica, sob o argumento de que ela, mesmo não tendo participado da relação de direito material, deverá responder pelo débito.

 

Não é necessária intervenção de terceiros

Vale esclarecer que o sócio (no caso de desconsideração direta) ou a pessoa jurídica (desconsideração inversa) não serão considerados “terceiros”, mas sim réus, tendo sido citados desde o início.

Logo, a desconsideração da personalidade jurídica pedida na petição inicial não acarreta a intervenção de terceiros.

 

O que se alega na contestação?

Enunciado 248-FPPC: Quando a desconsideração da personalidade jurídica for requerida na petição inicial, incumbe ao sócio ou à pessoa jurídica, na contestação, impugnar não somente a própria desconsideração, mas também os demais pontos da causa.

 

Pedido decidido na sentença

As pessoas citadas deverão apresentar contestação refutando os argumentos do autor e, ao final, na própria sentença, o juiz decidirá se é procedente ou não o pedido de desconsideração.

Trata-se, portanto, de um dos pedidos da ação.

Se o juiz acolher, significa que, além de condenar a pessoa jurídica reconhecendo que ela é devedora da relação jurídica de direito material, também condenará o(s) sócio(s) como responsável(eis) pelo débito da pessoa jurídica.

Vale ressaltar que o pedido de desconsideração formulado na petição inicial não acarreta a suspensão do processo.

 

Recurso

O sócio ou pessoa jurídica atingidos pela desconsideração, caso não se conformem com a decisão, deverá interpor apelação.

Enunciado 390 FPPC: Resolvida a desconsideração da personalidade jurídica na sentença, caberá apelação.

 

Previsão no CPC/2015

O Código dedicou um único dispositivo para tratar sobre o tema:

Art. 134 (...)

§ 2º Dispensa-se a instauração do incidente se a desconsideração da personalidade jurídica for requerida na petição inicial, hipótese em que será citado o sócio ou a pessoa jurídica.

 

þ (Analista Judiciário TRF2 2019 FCC) Renato ajuizou ação de cobrança contra ZWXY Construções Ltda., requerendo, na própria petição inicial, a desconsideração da sua personalidade jurídica, com a demonstração preliminar do preenchimento dos pressupostos legais específicos. Nesse caso, de acordo com o Código de Processo Civil, dispensa-se a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica e o processo não será suspenso. (certo)

 

Incidente de desconsideração da personalidade da pessoa jurídica

Processo em curso

Algumas vezes, o processo já está em curso quando, então, o credor percebe que não irá conseguir receber o valor pretendido do devedor e que estão presentes os requisitos para a desconsideração da personalidade jurídica.

Neste caso, o pedido de desconsideração será formulado como um incidente do processo.

Haverá uma intervenção de terceiros provocada, considerando que o credor pedirá para trazer à lide uma pessoa que originalmente não figurava no polo passivo.

 

Quem pode iniciar o incidente

O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será sempre instaurado a pedido.

Este pedido poderá ser feito:

• pela parte; ou

• pelo Ministério Público (quando lhe couber intervir no processo).

Obs: o juiz não pode instaurar de ofício.

 

Pressupostos

O requerimento deve demonstrar o preenchimento dos pressupostos legais específicos para desconsideração da personalidade jurídica.

Esses pressupostos estão previstos no “direito material” (art. 50 do Código Civil, art. 28 do CDC, art. 34 da Lei nº 12.529/2011 etc.).

þ (Analista Judiciário TRF4 2019 FCC) Tereza ajuizou ação de indenização contra a empresa “XPTO Comércio de Produtos de Informática Ltda”. Ainda na fase instrutória do processo, requereu a instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Nesse caso, o juiz deverá deferir o pedido, suspendendo o processo, desde que o requerimento tenha demonstrado o preenchimento dos pressupostos legais específicos para a desconsideração da personalidade jurídica. (certo)

 

Admitido em todas as espécies de processo

O incidente de desconsideração é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial.

ý (Analista Ministerial MPC/PA 2019 CEBRASPE) Com vistas a suspender episodicamente a eficácia do ato constitutivo de determinada empresa, João, credor de um dos sócios do empreendimento, ajuizou incidente de desconsideração da personalidade jurídica para tentar atingir a cota-parte do sócio devedor. Caso a ação de cobrança de João esteja em fase de cumprimento de sentença, o juiz deverá inadmitir o incidente. (errado)

Importante destacar que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica aplica-se também a processos de competência dos juizados especiais (art. 1.062 do CPC/2015)

Enunciado 247 FPPC: Aplica-se o incidente de desconsideração da personalidade jurídica no processo falimentar.

 

Incidente instaurado originariamente perante o Tribunal

Vale ressaltar que o incidente de desconsideração pode ser pedido tanto em processos que tramitam na 1ª instância como também pode ser requerido originalmente no Tribunal.

Se a desconsideração for pedida em processo que está tramitando no Tribunal, ela será decidida monocraticamente pelo Relator:

Art. 932.  Incumbe ao relator:

(...)

VI - decidir o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, quando este for instaurado originariamente perante o tribunal;

 

Suspensão do processo

A instauração do incidente suspenderá o processo.

Assim, com o pedido de instauração, suspende-se o processo, suspensão que perdurará até a decisão que resolver o incidente.

 

Procedimento

1) A instauração do incidente é pedida pela parte ou pelo Ministério Público.

2) O juiz admite a instauração e determina a suspensão do processo.

3) No caso de desconsideração direta, será realizada a citação do sócio. Em se tratando de desconsideração inversa, será determinada a citação da pessoa jurídica.

4) Depois da citação, o sócio ou a pessoa jurídica terão 15 dias para se manifestar e requerer as provas que entender necessárias.

5) Havendo necessidade, será realizada instrução probatória (oitiva de testemunhas, perícia etc.).

6) Concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória.

 

A instauração do incidente de desconsideração gera, por si só, a necessidade de oitiva do MP?

NÃO. É desnecessária a intervenção do Ministério Público, como fiscal da ordem jurídica, no incidente de desconsideração da personalidade jurídica, salvo nos casos em que deva intervir obrigatoriamente, previstos no art. 178 do CPC/2015 (Enunciado 123 do FPPC).

 

Recurso

• Se o incidente tramitou em 1ª instância (pedido foi decidido pelo juiz de 1º grau): a parte prejudicada poderá interpor agravo de instrumento (art. 1.015, IV).

• Se o incidente tramitou originalmente no Tribunal (pedido foi decidido monocraticamente pelo Relator): cabe agravo interno (art. 136, parágrafo único).

 

Acolhimento da desconsideração e alienação ou oneração de bens

Acolhido o pedido de desconsideração, a alienação ou a oneração de bens ocorrida em fraude de execução será ineficaz em relação ao requerente (art. 137).

 

Incidente de desconsideração e honorários advocatícios

Imagine a seguinte situação hipotética:

João ajuizou ação de cobrança contra a empresa FS Ltda.

A sentença julgou o pedido procedente, condenando a ré a pagar R$ 100 mil.

Em cumprimento de sentença, não foram localizados bens penhoráveis da empresa.

Diante disso, João requereu a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica a fim de que fossem alcançados os bens pessoais dos sócios da empresa Fernando e Sandra.

Os sócios foram citados e se manifestaram.

Foram ouvidas testemunhas.

Concluída a instrução, o juiz entendeu que as alegações de João não foram provadas e rejeitou o pedido de desconsideração.

 

Fernando e Sandra tiveram que contratar advogado para se defenderem no incidente. Indaga-se: João, que foi sucumbente no incidente, será condenado a pagar honorários advocatícios?

NÃO. Isso porque não há condenação em honorários advocatícios em incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Vamos entender.

O art. 85 do CPC/2015, ao tratar sobre os honorários advocatícios, afirma:

Art. 85. A sentença condenará o vencido a pagar honorários ao advogado do vencedor.

 

O caput do art. 136 do CPC, por sua vez, prevê expressamente que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica é resolvido por decisão interlocutória, e não sentença:

Art. 136. Concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória.

 

No § 1º do art. 85, o legislador excepcionou alguns casos em que são devidos honorários, embora não se trate de sentença. Assim, quando o legislador quis, previu honorários para algumas decisões interlocutórias:

Art. 85 (...)

§ 1º São devidos honorários advocatícios na reconvenção, no cumprimento de sentença, provisório ou definitivo, na execução, resistida ou não, e nos recursos interpostos, cumulativamente.

 

Nesse rol não está incluído o incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Logo, não cabe a condenação em honorários advocatícios.

 

Em suma:

Não há condenação em honorários advocatícios em incidente de desconsideração da personalidade jurídica.

Em regra, não é cabível a condenação em honorários advocatícios em qualquer incidente processual, ressalvados os casos excepcionais.

Tratando-se de incidente de desconsideração da personalidade jurídica, não cabe a condenação nos ônus sucumbenciais em razão da ausência de previsão legal. Logo, é irrelevante apurar quem deu causa ou foi sucumbente no julgamento final do incidente.

STJ. 3ª Turma. REsp 1.845.536-SC, Rel. Min. Nancy Andrighi, Rel. Acd. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 26/05/2020 (Info 673). 




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