terça-feira, 30 de junho de 2020
Se um precatório de natureza alimentar é cedido, ele permanece sendo crédito de natureza alimentar?
terça-feira, 30 de junho de 2020
Regime de precatórios
Se a Fazenda Pública Federal, Estadual,
Distrital ou Municipal for condenada, por sentença judicial transitada em
julgado, a pagar determinada quantia a alguém, este pagamento será feito sob um
regime especial chamado de “precatório” (art. 100 da CF/88).
Caput do art. 100: “fila de
precatórios”
O regime de precatórios é tratado pelo
art. 100 da CF, assim como pelo art. 78 do ADCT.
No caput do art. 100 da CF/88 consta a
regra geral dos precatórios, ou seja, os pagamentos devidos pela Fazenda
Pública em decorrência de condenação judicial devem ser realizados na ordem
cronológica de apresentação dos precatórios. Existe, então, uma espécie de
“fila” para pagamento dos precatórios:
Art. 100. Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal,
Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão
exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta
dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas
dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim.
(Redação dada pela EC 62/09)
§ 1º do art. 100: “fila
preferencial de precatórios”
No § 1º
do art. 100 há a previsão de que os débitos de natureza alimentícia gozam de
preferência no recebimento dos precatórios. É como se existisse uma espécie de
“fila preferencial”:
Art. 100 (...)
§ 1º Os débitos de natureza alimentícia compreendem aqueles decorrentes
de salários, vencimentos, proventos, pensões e suas complementações, benefícios
previdenciários e indenizações por morte ou por invalidez, fundadas em
responsabilidade civil, em virtude de sentença judicial transitada em julgado,
e serão pagos com preferência sobre todos os demais débitos, exceto sobre
aqueles referidos no § 2º deste artigo. (Redação dada pela EC 62/09).
§ 2º do art. 100: “fila com
superpreferência”
O § 2º
do art. 100 prevê que os débitos de natureza alimentícia que tenham como
beneficiários:
a)
pessoas com 60
anos de idade
b)
pessoas portadoras de doenças graves
c)
pessoas com deficiência
...
terão uma preferência ainda maior.
É como
se fosse uma “fila com superpreferência”.
Recapitulando:
Os débitos da Fazenda Pública devem ser
pagos por meio do sistema de precatórios.
• Quem é pago em 1º lugar: créditos
alimentares de idosos, portadores de doenças graves e pessoas com deficiência
(§ 2º).
• Quem é pago em 2º lugar: demais
créditos alimentares, ou seja, de pessoas que não sejam idosas, portadoras de
doenças graves ou pessoas com deficiência (§ 1º).
• Quem é pago em 3º lugar: créditos não
alimentares (caput).
Só tem direito à fila com
superpreferência os precatórios até certo limite de valor
A
superprioridade para créditos alimentares de idosos e portadores de doenças
graves possui um limite de valor previsto no § 2º do art. 100. Veja:
Art. 100 (...)
§ 2º Os débitos de natureza alimentícia cujos
titulares, originários ou por sucessão hereditária, tenham 60 (sessenta) anos
de idade, ou sejam portadores de doença grave, ou pessoas com deficiência,
assim definidos na forma da lei, serão pagos com preferência sobre todos os
demais débitos, até o valor equivalente ao triplo fixado em lei para os fins do
disposto no § 3º deste artigo, admitido o fracionamento para essa finalidade,
sendo que o restante será pago na ordem cronológica de apresentação do
precatório. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 94/2016)
O § 3º do art. 100 trata sobre o
“pequeno valor” (valor da RPV: requisição de pequeno valor). Assim, só pode
receber na fila de superprioridade do § 2º o precatório que não seja superior a
3x o valor da RPV.
Quanto é “pequeno valor” para os fins
do § 3º do art. 100? Qual é o valor da RPV?
Este quantum poderá ser estabelecido por cada ente federado (União,
Estado, DF, Município) por meio de leis específicas, conforme prevê o § 4º do
art. 100.
União
Para as condenações envolvendo a União,
pequeno valor equivale a 60 salários mínimos (art. 17, § 1º, da Lei nº 10.259/2001). Esse é
o teto da RPV no âmbito federal.
E se o ente federado não editar a lei
prevendo o quatum do “pequeno valor”?
Nesse caso, segundo o art. 87 do ADCT
da CF/88, para os entes que não editarem suas leis, serão adotados, como
“pequeno valor” os seguintes montantes:
I — 40 salários mínimos para Estados e
para o Distrito Federal;
II — 30 salários mínimos para
Municípios.
Assim, se o valor a ser recebido pelo
idoso ou doente grave for superior a 3x o que é considerado “pequeno valor” para
fins de precatório (§ 4º), parte dele será paga com superpreferência e o
restante será quitado na ordem cronológica de apresentação do precatório.
Exemplo: João possui 70 anos e tem um
precatório para receber da União. Pelo fato de ser maior de 60 anos, João tem
direito de receber o precatório antes dos demais. Ele tem direito a uma fila
superpreferencial prevista no § 2º do art. 100 da CF/88. Ocorre que o
precatório de João é alto (seu valor é equivalente a 200 salários-mínimos).
Nestes casos, o § 2º prevê que a pessoa deverá receber parte na “fila
superpreferencial” (até 3x o pequeno valor do § 3º) e o restante na fila alimentar
apenas preferencial (fila alimentar geral - 2º lugar).
Assim, em nosso exemplo, João irá
receber 180 salários-mínimos na fila superpreferencial (3 x 60) e os 20
salários-mínimos restantes serão recebidos por meio da fila comum (fila
alimentar geral - 2º lugar).
Imagine agora a seguinte situação
hipotética:
Pedro ingressou com uma ação
contra o Estado-membro cobrando verbas de natureza salarial.
A sentença foi procedente,
condenando o Estado a pagar R$ 120 mil, tendo havido trânsito em julgado.
Como o crédito de Pedro é de
natureza salarial, ele é considerado crédito alimentar.
Pedro precisa urgentemente do
dinheiro e não pode esperar mais nada. Diante disso, ele cedeu (“vendeu”) o
precatório para uma empresa, tendo recebido, à vista, R$ 80 mil.
É possível a cessão do
precatório?
SIM. Essa possibilidade
encontra-se expressamente prevista na parte final do art. 78 do ADCT, que
afirma ser “permitida a cessão dos créditos” do precatório.
A empresa cessionária (que
recebeu o crédito) irá cobrar agora do Estado-membro o pagamento do precatório,
ou seja, quando o Estado for pagar o precatório, pagará para a empresa (e não
mais para Pedro). Indaga-se: qual será a ordem de pagamento? Esse precatório de
R$ 120 mil continuará sendo considerado crédito alimentar (§ 1º do art. 100 da
CF/88) ou se tornará precatório de crédito comum (pago em 3º lugar na “fila”)?
Continuará sendo crédito
alimentar preferencial (§ 1º do art. 100).
Mesmo tendo havido mudança na titularidade
do crédito, ocorrida por meio de negócio jurídico (cessão de crédito), não
haverá transmudação (mudança) da natureza do precatório alimentar já expedido e
pendente de pagamento. Em outras palavras, o precatório, pelo simples fato de
ter sido cedido, não perde sua preferência na ordem de pagamentos.
Não existe nenhum dispositivo da
Constituição que expressa ou implicitamente conduza à ideia de que, se houver a
cessão, ocorrerá a mudança na natureza do crédito.
Nas palavras
do Min. Marco Aurélio:
“Independentemente
das qualidades normativas do cessionário e da forma como este veio a assumir a
condição de titular, o crédito representado no precatório, objeto da cessão,
permanece com a natureza possuída, ou seja, revelada quando da cessão.”
Se o STF afirmasse que a cessão
do crédito gera a mudança da natureza do precatório, isso iria prejudicar
justamente aquelas pessoas a quem a Constituição Federal quis proteger, ou
seja, os credores alimentícios. Isso porque, consideradas as condições do
mercado, se o crédito perdesse a qualidade alimentar quando fosse cedido, as
empresas que “compram” esses precatórios iriam perder o interesse e pagariam
ainda menos pelos precatórios cedidos, fazendo com que os cedentes sofressem um
grande deságio.
Ao
apreciar o tema sob a sistemática da repercussão geral, o STF fixou a seguinte
tese:
A cessão de crédito não implica alteração da natureza.
STF. Plenário. RE 631537, Rel. Marco Aurélio, julgado em
22/05/2020 (Repercussão Geral – Tema 361).
Vale
ressaltar que esse já era o entendimento constante na Resolução nº 303, de
19/12/2019, do Conselho Nacional de Justiça:
Art. 42. O beneficiário poderá ceder,
total ou parcialmente, seus créditos a terceiros, independentemente da
concordância da entidade devedora, não se aplicando ao cessionário o disposto
nos §§ 2º e 3º do art. 100 da Constituição Federal, cabendo ao presidente do
tribunal providenciar o registro junto ao precatório.
§ 1º A cessão não altera a natureza do
precatório, podendo o cessionário gozar da preferência de que trata o § 1º do
art. 100 da Constituição Federal, quando a origem do débito assim permitir,
mantida a posição na ordem cronológica originária, em qualquer caso.
(...)
Atenção
Vale ressaltar que o julgado
acima trata sobre o crédito alimentar preferencial previsto no § 1º do art. 100
da CF/88.
No caso do
crédito alimentar superpreferencial (§ 2º), existe previsão expressa na
Constituição dizendo que o cessionário não terá direito à superpreferência de
que gozava o credor originário. Veja:
Art. 100 (...)
§ 13. O credor poderá ceder, total ou
parcialmente, seus créditos em precatórios a terceiros, independentemente da
concordância do devedor, não se aplicando ao cessionário o disposto nos §§ 2º e
3º.