Olá, amigos do Dizer o Direito,
Foi publicada hoje a Lei nº
14.015/2020, que dispõe sobre a interrupção e o restabelecimento de serviços
públicos.
Antes de verificar o que foi
alterado, importante relembrarmos algumas informações.
Princípio da continuidade
dos serviços públicos
Os serviços públicos são
considerados essenciais ou necessários à coletividade. Por essa razão, eles, em
regra, não podem ser interrompidos. A isso chamamos de princípio da
continuidade dos serviços públicos.
A continuidade é uma das
características do serviço público adequado segundo expressa previsão legal.
Lei nº 8.987/95 (dispõe sobre
o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos):
Art. 6º Toda concessão ou permissão
pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários,
conforme estabelecido nesta Lei, nas normas pertinentes e no respectivo
contrato.
§ 1º Serviço adequado é o que satisfaz
as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade,
cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas.
(...)
Lei nº 13.460/2017 (dispõe
sobre os direitos do usuário dos serviços públicos)
Art. 4º Os serviços públicos e o
atendimento do usuário serão realizados de forma adequada, observados os princípios
da regularidade, continuidade,
efetividade, segurança, atualidade, generalidade, transparência e cortesia.
Os serviços públicos, mesmo
gozando da garantia da continuidade, podem ser interrompidos/suspensos em caso
de inadimplemento do usuário? Em palavras mais simples, o serviço (ex: energia
elétrica) pode ser “cortado” se o cliente deixar de pagar a conta?
SIM. A Lei nº 8.987/95 prevê que será possível a interrupção do serviço público em
caso de inadimplemento do usuário, desde que ele seja previamente avisado. Veja
a redação legal:
Art. 6º (...)
§ 3º Não se caracteriza como
descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após
prévio aviso, quando:
(...)
II - por inadimplemento do usuário,
considerado o interesse da coletividade.
Alterou a Lei nº 8.987/95 e a Lei
nº 13.460/2017 para deixar isso ainda mais explícito.
Confira os dispositivos inseridos
na Lei nº 13.460/2017:
Art. 5º O usuário de serviço público
tem direito à adequada prestação dos serviços, devendo os agentes públicos e
prestadores de serviços públicos observar as seguintes diretrizes:
(...)
XVI – comunicação prévia ao consumidor de que o serviço será
desligado em virtude de inadimplemento, bem como do dia a partir do qual será
realizado o desligamento, necessariamente durante horário comercial.
Parágrafo único. A taxa de religação de serviços não será devida se
houver descumprimento da exigência de notificação prévia ao consumidor prevista
no inciso XVI do caput deste artigo, o que ensejará a aplicação de multa à
concessionária, conforme regulamentação.
Art. 6º São direitos básicos do
usuário:
(...)
VII – comunicação prévia da suspensão da prestação de serviço.
Parágrafo único. É vedada a suspensão da prestação de serviço em
virtude de inadimplemento por parte do usuário que se inicie na sexta-feira, no
sábado ou no domingo, bem como em feriado ou no dia anterior a feriado.
• Essa suspensão/interrupção não viola o
princípio da continuidade dos serviços públicos;
• Para que essa suspensão seja válida,
contudo, é indispensável que o usuário seja previamente comunicado de que o
serviço será desligado, devendo ser informado também do dia exato em que haverá
o desligamento;
• O desligamento do serviço deverá ocorrer em
dia útil, durante o horário comercial;
• É vedado que o desligamento ocorra em dia
de feriado, véspera de feriado, sexta-feira, sábado ou domingo.
• Caso o consumidor queira regularizar a
situação e pagar as contas em atraso, a concessionária poderá cobrar uma taxa
de religação do serviço. Essa taxa de religação, contudo, não será devida se a
concessionária cortou o serviço sem prévia notificação.
• Assim, se a concessionária não comunicou
previamente o consumidor do corte ela estará sujeita a duas consequências:
a) terá que pagar multa;
b) não poderá cobrar taxa de religação na
hipótese do cliente regularizar o débito.
Vigência
A
Lei nº 14.015/2020 entrou em vigor na data de sua publicação (16/06/2020).
DOD PLUS
Outros entendimentos
jurisprudenciais relevantes sobre corte de serviços públicos:
Não se admite o corte do
serviço em razão de débitos antigos (consolidados)
Importante mencionar que não é
permitido que a concessionária suspenda o fornecimento do serviço se os débitos
forem antigos (consolidados no tempo). Repito: o corte de serviços essenciais,
como água e energia elétrica, pressupõe o inadimplemento de conta regular,
relativa ao mês do consumo:
O corte de serviços essenciais, tais como água e energia
elétrica, pressupõe o inadimplemento de conta regular, sendo inviável,
portanto, a suspensão do abastecimento em razão de débitos antigos.
STJ. 1ª Turma. AgRg no Ag 1320867/RJ, Rel. Min. Regina Helena
Costa, julgado em 08/06/2017.
Se o débito é antigo (ex: estamos
em junho/2020) e a dívida é apenas de janeiro/2020, a concessionária deverá buscar
a satisfação de seu crédito pelas chamadas “vias ordinárias de cobrança” (exs:
protestar o débito, inscrever nos cadastros restritivos, propor ação de
cobrança etc.).
O corte do
serviço por dívidas antigas ofende o art. 42 do CDC:
Art. 42. Na cobrança de débitos, o
consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a
qualquer tipo de constrangimento ou ameaça.
A obrigação de pagar a
conta de energia elétrica é de natureza pessoal (não é propter rem)
Ex: Carlos compra a casa de João.
Ocorre que João vendeu a casa, mas deixou um débito de três meses da conta de
energia. A concessionária ingressou com uma ação de cobrança contra Carlos
alegando que, como comprou a casa, passou a ser o devedor, considerando
tratar-se de obrigação propter rem.
Para piorar o cenário, a concessionária suspendeu o fornecimento de “luz”.
A concessionária não agiu
corretamente neste caso. Isso porque o débito de energia elétrica (assim como o
de água) é de natureza pessoal, não se vinculando ao imóvel. Não se trata,
portanto, de obrigação propter rem.
Desse modo, o consumidor não pode ser responsabilizado pelo pagamento de
serviço de fornecimento de energia elétrica utilizado por outra pessoa (em
nosso exemplo, João).
A obrigação de pagar por serviço de natureza essencial, tal como
água e energia, não é propter rem,
mas pessoal, isto é, do usuário que efetivamente se utiliza do serviço.
STJ. 1ª Turma. AgRg no AREsp 45.073/MG, Rel. Min. Napoleão Nunes
Maia Filho, julgado em 02/02/2017.
É possível o corte da energia
elétrica por fraude no medidor, desde que cumpridos alguns requisitos
Na hipótese de débito estrito de recuperação
de consumo efetivo por fraude no aparelho medidor atribuída ao consumidor,
desde que apurado em observância aos princípios do contraditório e da ampla
defesa, é possível o corte administrativo do fornecimento do serviço de energia
elétrica, mediante prévio aviso ao consumidor, pelo inadimplemento do consumo
recuperado correspondente ao período de 90 (noventa) dias anterior à
constatação da fraude, contanto que executado o corte em até 90 (noventa) dias
após o vencimento do débito, sem prejuízo do direito de a concessionária
utilizar os meios judiciais ordinários de cobrança da dívida, inclusive
antecedente aos mencionados 90 (noventa) dias de retroação.
STJ. 1ª Seção. REsp 1.412.433-RS, Rel. Min.
Herman Benjamin, julgado em 25/04/2018 (recurso repetitivo) (Info 634).
É legítimo o corte no
fornecimento de serviços públicos essenciais por razões de ordem técnica ou de
segurança das instalações, desde que precedido de notificação
É legítima a interrupção do fornecimento de energia elétrica por
razões de ordem técnica, de segurança das instalações, ou ainda, em virtude do
inadimplemento do usuário, quando houver o devido aviso prévio pela
concessionária sobre o possível corte no fornecimento do serviço.
STJ. 1ª Turma. REsp 1270339/SC, Rel. Min. Gurgel de Faria,
julgado em 15/12/2016.
É ilegítimo o corte no
fornecimento de energia elétrica quando puder afetar o direito à saúde e à
integridade física do usuário
A suspensão do serviço de energia
elétrica, por empresa concessionária, em razão de inadimplemento de unidades
públicas essenciais - hospitais; pronto-socorros; escolas; creches; fontes de
abastecimento d'água e iluminação pública; e serviços de segurança pública -,
como forma de compelir o usuário ao pagamento de tarifa ou multa, despreza o
interesse da coletividade.
STJ. 2ª Turma. AgRg no AREsp
543.404/RJ, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 12/02/2015.
É legítimo o corte no
fornecimento de serviços públicos essenciais quando inadimplente pessoa
jurídica de direito público, desde que precedido de notificação e a interrupção
não atinja as unidades prestadoras de serviços indispensáveis à população
A legitimidade do corte no fornecimento do serviço de telefonia
quando inadimplentes entes públicos, desde que a interrupção não atinja
serviços públicos essenciais para a coletividade, tais como escolas, creches,
delegacias e hospitais.
STJ. 1ª Turma. EDcl no REsp 1244385/BA, Rel. Min. Gurgel de
Faria, julgado em 13/12/2016.
É ilegítimo o corte no
fornecimento de serviços públicos essenciais quando inadimplente unidade de
saúde, uma vez que prevalecem os interesses de proteção à vida e à saúde
Quando o devedor for ente público, não poderá ser realizado o
corte de energia indiscriminadamente em nome da preservação do próprio
interesse coletivo, sob pena de atingir a prestação de serviços públicos
essenciais, tais como hospitais, centros de saúde, creches, escolas e
iluminação pública.
STJ. 2ª Turma. AgRg no Ag 1329795/CE, Rel. Min. Herman Benjamin,
julgado em 19/10/2010.
É ilegítimo o corte no
fornecimento de serviços públicos essenciais por débitos de usuário anterior,
em razão da natureza pessoal da dívida
O débito de energia elétrica/água é de
natureza pessoal, não se vinculando ao imóvel. Não se trata, portanto, de
obrigação propter rem.
Desse modo, o consumidor não pode ser
responsabilizado pelo pagamento de serviço de fornecimento de energia elétrica
utilizado por outra pessoa.
A obrigação de pagar por serviço de
natureza essencial, tal como água e energia, não é propter rem, mas pessoal,
isto é, do usuário que efetivamente se utiliza do serviço.
STJ. 1ª Turma. AgRg no AREsp
45.073/MG, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 02/02/2017.
É ilegítimo o corte no
fornecimento de energia elétrica em razão de débito irrisório, por configurar
abuso de direito e ofensa aos princípios da proporcionalidade e razoabilidade,
sendo cabível a indenização ao consumidor por danos morais
Comete ato ilícito o titular de um
direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu
fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos costumes (art. 187 do Código
Civil).
A concessionária, ao suspender o fornecimento
de energia elétrica em razão de um débito de R$ 0,85, não agiu no exercício
regular de direito, e sim com flagrante abuso de direito. Aplicação dos
princípios da razoabilidade e proporcionalidade.
STJ. 1ª Turma. REsp 811.690/RR, Rel.
Min. Denise Arruda, julgado em 18/05/2006.
O
corte no fornecimento de energia elétrica somente pode recair sobre o imóvel
que originou o débito, e não sobre outra unidade de consumo do usuário
inadimplente (ilegalidade do chamado “corte cruzado”)
Por ser a interrupção no fornecimento de energia elétrica medida
excepcional, o art. 6º, § 3º, II, da Lei nº 8.987/95 deve ser interpretado
restritivamente, de forma a permitir que o corte recaia apenas sobre o imóvel
que originou o débito, e não sobre outros imóveis de propriedade do
inadimplente.
STJ. 1ª Turma. REsp 662.214/RS, Rel. Min. Teori Albino Zavascki,
julgado em 06/02/2007.