Dizer o Direito

terça-feira, 9 de junho de 2020

Conflito de atribuições entre MPF e MPE deve ser dirimido pelo CNMP




Conflito de competência
Quando dois órgãos jurisdicionais divergem sobre quem deverá julgar uma causa, dizemos que existe, neste caso, um conflito de competência.
Obs: o CPP denomina esse fenômeno de “conflito de jurisdição” (arts. 113 a 117), expressão, contudo, bastante criticada pela doutrina e jurisprudência porque a jurisdição no Brasil é uma só, sendo exercida por qualquer juiz e Tribunal. O que se divide é a competência, que cada juízo possui a sua.

Exemplo de conflito de competência
Foi instaurado inquérito policial, que estava “tramitando” na Justiça Estadual, com o objetivo de apurar determinado crime.
Ao final do procedimento, o Promotor de Justiça requereu a declinação da competência para a Justiça Federal, entendendo que estava presente a hipótese do art. 109, IV, da CF/88.
O Juiz de Direito concordou com o pedido e remeteu os autos para a Justiça Federal.
O Juiz Federal deu vista ao Procurador da República, que entendeu em sentido contrário ao Promotor de Justiça e afirmou que não havia interesse direto e específico da União que justificasse o feito ser de competência federal.
O Juiz Federal concordou com o Procurador da República e suscitou conflito de competência.
Este conflito deverá ser dirimido pelo Superior Tribunal de Justiça, nos termos do art. 105, I, "d", da CF/88:

Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:
I - processar e julgar, originariamente:
d) os conflitos de competência entre quaisquer tribunais, ressalvado o disposto no art. 102, I, "o", bem como entre tribunal e juízes a ele não vinculados e entre juízes vinculados a tribunais diversos;

Conflito de atribuições
No exemplo acima, os membros do Ministério Público discordaram entre si. No entanto, essa discordância não ficou limitada a eles e foi também encampada pelos juízes. Logo, em última análise, tivemos um conflito de competência, ou seja, um conflito negativo entre dois órgãos jurisdicionais.
Algumas vezes, no entanto, os membros do Ministério Público instauram investigações que tramitam no âmbito da própria instituição. Neste caso, em regra, tais procedimentos não são levados ao Poder Judiciário, salvo no momento em que irá ser oferecida a denúncia ou se for necessária alguma medida que dependa de autorização judicial (ex: interceptação telefônica).
A regra geral, no entanto, é que os procedimentos de investigação conduzidos diretamente pelo MP tramitem exclusivamente no âmbito interno da Instituição.
Ex: um Promotor de Justiça instaurou, no MPE, procedimento de investigação para apurar crimes relacionados com um cartel mantido por donos de postos de combustíveis. Ocorre que o Procurador da República também deflagrou, no âmbito do MPF, um procedimento investigatório para apurar exatamente o mesmo fato. Temos, então, dois membros diferentes do Ministério Público investigando o mesmo fato. Vale ressaltar que nenhum deles formulou qualquer pedido judicial, de sorte que o Poder Judiciário não foi provocado e os procedimentos tramitam apenas internamente.

Neste caso, indaga-se: se dois membros do Ministério Público divergem sobre quem deverá atuar em uma investigação, como isso é chamado? Teremos aqui também um conflito de competência?
NÃO. Neste caso, teremos um CONFLITO DE ATRIBUIÇÕES.
“O conflito de atribuições não se confunde com o conflito de competência. Cuidando-se de ato de natureza jurisdicional, o conflito será de competência; tratando-se de controvérsia entre órgãos do Ministério Público sobre ato que caiba a um deles praticar, ter-se-á um conflito de atribuições.” (LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 8ª ed., Salvador: Juspodivm, 2020, p. 1239).

Obs: mais uma vez, chamo atenção para o fato de que só existe conflito de atribuições se a divergência ficar restrita aos membros do Ministério Público. Se os juízes encamparem as teses dos membros do MP, aí eles estarão discordando entre si e teremos, no caso, um "falso conflito de atribuições" (expressão cunhada por Guilherme de Souza Nucci). Diz-se que há um falso conflito de atribuições porque, na verdade, o que temos é um conflito entre dois juízes, ou seja, um conflito de competência.

Conflito de atribuições pode se dar tanto em matéria criminal como cível
Apesar de os exemplos acima fornecidos envolverem a investigação de crimes, é importante esclarecer que o conflito de atribuições poderá ocorrer também em apuração de infrações cíveis, como o caso de improbidade, meio ambiente, consumidor e outros direitos difusos e coletivos.
Ex: um Promotor de Justiça e um Procurador da República divergem quanto à atribuição para a condução de inquérito civil que investiga suposto superfaturamento na construção de conjuntos habitacionais com recursos financeiros liberados pela Caixa Econômica Federal e oriundos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). A Procuradoria da República no Paraná entendeu que esta atribuição seria do Promotor de Justiça, mas o MPE discordou e considerou que a apuração seria do MPF, já que envolvia recursos oriundos da CEF (STF ACO 924).

Caso haja um conflito de atribuições entre membros do Ministério Público, quem irá decidir qual dos dois órgãos irá atuar?
Depende. Podemos identificar quatro situações diferentes:

SITUAÇÃO 1
Se o conflito se dá entre Promotores de Justiça do Ministério Público de um mesmo Estado (ex: Promotor de Justiça de Iranduba/AM e Promotor de Justiça de Manaus/AM):

Neste caso, a divergência será dirimida pelo respectivo Procurador-Geral de Justiça. Veja:

Lei nº 8.625/93
Art. 10. Compete ao Procurador-Geral de Justiça:
X - dirimir conflitos de atribuições entre membros do Ministério Público, designando quem deva oficiar no feito;


SITUAÇÃO 2
Se o conflito se dá entre Procuradores da República (ex: um Procurador da República que oficia em Manaus/AM e um Procurador da República que atua em Boa Vista/RR):

Nesta hipótese, o conflito será resolvido pela Câmara de Coordenação e Revisão (órgão colegiado do MPF), havendo possibilidade de recurso para o Procurador-Geral da República. Confira:

LC 75/93
Art. 62. Compete às Câmaras de Coordenação e Revisão:
VII - decidir os conflitos de atribuições entre os órgãos do Ministério Público Federal.

Art. 49. São atribuições do Procurador-Geral da República, como Chefe do Ministério Público Federal:
VIII - decidir, em grau de recurso, os conflitos de atribuições entre órgãos do Ministério Público Federal;


SITUAÇÃO 3
Se o conflito se dá entre integrantes de ramos diferentes do Ministério Público da União (ex: um Procurador da República e um Procurador do Trabalho):

O conflito será resolvido pelo Procurador-Geral da República:

LC 75/93
Art. 26. São atribuições do Procurador-Geral da República, como Chefe do Ministério Público da União:
VII - dirimir conflitos de atribuição entre integrantes de ramos diferentes do Ministério Público da União;


SITUAÇÃO 4
Se o conflito se dá entre Promotores de Justiça de Estados diferentes (ex: Promotor de Justiça do Amazonas e Promotor de Justiça do Acre)? Se o conflito se dá entre um Promotor de Justiça e um Procurador da República (ex: Promotor de Justiça do Amazonas e Procurador da República que oficia em Manaus/AM)?

Posição adotada até 2016: STF
Afirmava que este conflito de atribuições deveria ser dirimido pelo próprio STF.
O Ministério Público é um órgão. Seus membros também são órgãos. Um Promotor de Justiça é um órgão estadual. Um Procurador da República é um órgão da União.
Se dois Promotores de Justiça de Estados diferentes estavam divergindo sobre a atuação em uma causa, o que nós tínhamos era uma divergência entre dois órgãos de Estados diferentes.
Se um Promotor de Justiça e um Procurador da República discordavam sobre quem deveria atuar no caso, o que nós tínhamos era uma dissonância entre um órgão estadual e um órgão federal.
Logo, nestas duas situações, quem deveria resolver este conflito seria o STF, conforme previsto no art. 102, I, “f”, da CF/88:

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
I - processar e julgar, originariamente:
f) as causas e os conflitos entre a União e os Estados, a União e o Distrito Federal, ou entre uns e outros, inclusive as respectivas entidades da administração indireta;

Posição adotada de 2016 até junho de 2020: PGR
Neste período, o STF passou a decidir que a competência para dirimir estes conflitos de atribuição seria do Procurador-Geral da República:

Compete ao PGR, na condição de órgão nacional do Ministério Público, dirimir conflitos de atribuições entre membros do MPF e de Ministérios Públicos estaduais.
STF. Plenário. ACO 924/PR, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 19/5/2016 (Info 826).

Posição atual: CNMP
O STF mudou novamente de posição e agora entende que:

Compete ao CNMP dirimir conflitos de atribuições entre membros do MPF e de Ministérios Públicos estaduais.
STF. Plenário. ACO 843/SP, Rel. para acórdão Min. Alexandre de Moraes, julgado em 05/06/2020.

Essa nova posição representa o acolhimento, pelo STF, de uma tese institucional defendida pelos Ministérios Públicos estaduais que não concordavam com o entendimento de que a competência para dirimir esse conflito seria do PGR.
A nova posição foi capitaneada pelo Min. Alexandre de Moraes, que apresentou os seguintes argumentos:
“Discordo, entretanto, do encaminhamento do conflito de atribuição para o Procurador-Geral da República, enquanto autoridade competente, pois é parte interessada na solução da demanda administrativa, uma vez que acumula a Chefia do Ministério Público da União com a chefia de um de
seus ramos, o Ministério Público Federal, nos termos da LC 75/1993.
(...)
(...) constitucionalmente, o Ministério Público abrange duas grandes Instituições, sem que haja qualquer relação de hierarquia e subordinação entre elas (STF, RE 593.727/MG – Red. p/Acórdão Min. GILMAR MENDES): (a) Ministério Público da União, que compreende os ramos: Federal, do Trabalho, Militar e do Distrito Federal e Territórios; (b) Ministério Público dos Estados.
Não há, portanto, hierarquia entre o Ministério Público da União ou qualquer de seus ramos específicos e os Ministérios Públicos estaduais (...)
Com tal premissa, não parece ser mais adequado que, presente conflito de atribuição entre integrantes do Ministério Público Estadual e do Ministério Público Federal, o impasse acabe sendo resolvido monocraticamente por quem exerce a chefia de um deles, no caso o Procurador-Geral da República.
(...)
A interpretação sistemática da Constituição Federal, após a edição da EC 45/2004, aponta como mais razoável e compatível com a própria estrutura orgânica da Instituição reconhecer no Conselho Nacional do Ministério Público a necessária atribuição para solucionar os conflitos de atribuição entre seus diversos ramos, pois, constitucionalmente, tem a missão precípua de realizar o controle de atuação administrativa e financeira do Ministério Público.
Assim, no âmbito interno e administrativo, não tendo vinculação direta com qualquer dos ramos dos Ministérios Públicos dos entes federativos, mas sendo por eles composto, o CNMP possui isenção suficiente para definir, segundo as normas em que se estrutura a instituição, qual agente do Ministério Público tem aptidão para a condução de determinado inquérito civil, inclusive porque, nos termos do § 2º do art. 130-A, é sua competência o controle da atuação administrativa do Ministério Público e do
cumprimento dos deveres funcionais de seus membros, cabendo-lhe, inclusive, zelar pela autonomia funcional e administrativa do Ministério Público, bem como pela legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Ministério Público da União e dos Estados, entre eles, aqueles atos que deram ensejo ao conflito de atribuições.
A interpretação sistemática dos preceitos constitucionais da Instituição, portanto, aponta a competência do Conselho Nacional do Ministério Público para dirimir essa modalidade de conflito de atribuição com fundamento no artigo 130-A, § 2º, e incisos I e II, da Constituição Federal.
Com amparo nesses preceitos constitucionais, estaria o referido órgão colegiado, ao dirimir o conflito de atribuição, exercendo o controle da atuação administrativa do Ministério Público e, ao mesmo tempo, zelando pela autonomia funcional e independência da instituição.
A solução de conflitos de atribuições entre ramos diversos dos Ministérios Públicos pelo CNMP é a mais adequada, pois reforça o mandamento constitucional que lhe atribuiu o controle da legalidade das ações administrativas dos membros e órgãos dos diversos ramos ministeriais, sem ingressar ou ferir a independência funcional.”

Entendimento vale tanto para conflitos entre MPE e MPF como também para conflitos entre Promotores de Estados diferentes
Vale ressaltar que o caso apreciado pelo STF dizia respeito a um conflito de atribuições entre um Procurador da República e um Promotor de Justiça. No entanto, pelos debates entre os Ministros, percebe-se que a solução adotada vale também para os conflitos envolvendo Promotores de Justiça de Estados-membros diferentes.
Se dois Promotores de Justiça de Estados diferentes divergirem quanto à atuação em um caso, este conflito de atribuições será dirimido pelo CNMP.

Resumindo:

QUEM DECIDE O CONFLITO DE ATRIBUIÇÕES ENTRE MEMBROS DO MINISTÉRIO PÚBLICO?
SITUAÇÃO
QUEM IRÁ DIRIMIR
MPE do Estado 1 x MPE do Estado 1
Procurador-Geral de Justiça do Estado 1
MPF x MPF
CCR, com recurso ao PGR
MPU (ramo 1) x MPU (ramo 2)
Procurador-Geral da República
MPE x MPF
CNMP
MPE do Estado 1 x MPE do Estado 2
CNMP

Inexistência de vinculação para o Poder Judiciário
Vale, por fim, uma observação. O Poder Judiciário não fica vinculado à decisão do CNMP.
Assim, suponhamos que, em um conflito de atribuições, o CNMP afirme que a atribuição para investigar e denunciar o réu é do Procurador da República.
Diante disso, o Procurador da República oferece denúncia na Justiça Federal. O Juiz Federal estará livre para reapreciar o tema e poderá entender que a competência não é da Justiça Federal, declinando a competência para a Justiça Estadual. Caso o Juiz de Direito concorde, seguirá no processamento do feito. Se discordar, deverá suscitar conflito de competência a ser dirimido pelo STJ (art. 105, I, “d”, da CF/88).
O certo é que a decisão do CNMP produz efeitos vinculantes apenas interna corporis, sendo uma decisão de cunho administrativo, não vinculando os juízos que irão apreciar a causa.


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