O problema das sobras de
alimentos nos restaurantes e similares
É muito comum que, em
estabelecimentos que trabalhem com fornecimento de comida, tais como
restaurantes, lanchonetes, padarias, hotéis e supermercados, sobrem alimentos que
estão preparados, mas não foram consumidos e que logo perderão a validade.
Para se ter uma ideia, segundo
dados da ABRASEL (RMC), em cada restaurante sobram, em média, 5kg de alimentos
por dia. Multiplique isso pela quantidade de restaurantes e bares e se chegará
a muitas toneladas de alimentos que sobram constantemente.
Geralmente, esses alimentos são
simplesmente descartados, ou seja, jogados fora.
Essa é uma triste realidade,
considerando que existem muitas pessoas passando fome.
E por que os donos dos
estabelecimentos não doam esses alimentos para pessoas que precisam?
O principal motivo alegado é o de
que não havia segurança para isso.
As associações de bares,
restaurantes, hotéis etc. não recomendavam que seus associados doassem os alimentos
excedentes porque se a pessoa que os recebeu e os consumiu eventualmente
tivesse alguma indisposição de saúde, o estabelecimento poderia ser processado
e condenado a pagar indenização. Além disso, poderia haver implicações
criminais.
Desse modo, tais associações
sempre defenderam que houvesse uma legislação que definisse, de forma mais
clara, o regime de responsabilidade nesses casos. A Lei precisaria também estabelecer
protocolos de segurança alimentar, considerando que depois de doado, o
alimento, se não for consumido imediatamente, precisará ser transportado,
acondicionado, manipulado e servido ao destinatário final. Em cada uma dessas
etapas, é indispensável que se mantenham os cuidados com a conservação e com a
higiene a fim de evitar eventual contaminação.
Leis estaduais e municipais
Em alguns Estados e Municípios,
foram editadas leis autorizando que restaurantes e similares fizessem essa
doação. No entanto, a insegurança jurídica permanecia, considerando que o tema
envolve responsabilidade civil e até direito penal, matérias que são de
competência legislativa privativa da União (art. 22, I, da CF/88). Assim, tais
leis estaduais ou municipais não podiam simplesmente isentar ou mesmo abrandar
a responsabilidade dos estabelecimentos que adotassem a boa prática da doação.
Lei nº 14.016/2020
Dentro do contexto acima
explicado, foi editada a Lei nº 14.016/2020, que expressamente autoriza a
doação de excedentes de alimentos para o consumo humano. São as chamadas
“sobras limpas”.
Estabelecimentos ficam
expressamente autorizados a fazer a doação dos alimentos
Pela nova Lei, os
estabelecimentos que produzem ou forneçam alimentos ficam expressamente
autorizados a doar os alimentos excedentes que ainda não foram comercializados,
desde que cumpridos alguns critérios. Veja a redação do caput do art. 1º:
Art. 1º Os estabelecimentos dedicados à produção e ao fornecimento
de alimentos, incluídos alimentos in natura, produtos industrializados e
refeições prontas para o consumo, ficam autorizados a doar os excedentes não
comercializados e ainda próprios para o consumo humano que atendam aos
seguintes critérios:
I – estejam dentro do prazo de validade e nas condições de
conservação especificadas pelo fabricante, quando aplicáveis;
II – não tenham comprometidas sua integridade e a segurança
sanitária, mesmo que haja danos à sua embalagem;
III – tenham mantidas suas propriedades nutricionais e a segurança
sanitária, ainda que tenham sofrido dano parcial ou apresentem aspecto
comercialmente indesejável.
O inciso II trata daqueles
produtos que estão com as embalagens amassadas, avariadas, mas sem comprometer
o seu conteúdo. Normalmente, os clientes dos supermercados não querem comprar
os produtos nessas condições e eles são, atualmente, descartados, mesmo sem ter
qualquer vício no conteúdo. A ideia é estimular que essas mercadorias sejam
doadas.
O inciso III versa sobre as
frutas, vegetais ou outros alimentos esteticamente “feios”, mas que ainda estão
em boas condições.
Doação deve ser inteiramente
gratuita e desinteressada
A doação será realizada de modo
gratuito, sem a incidência de qualquer encargo que a torne onerosa (art. 1º, §
1º).
Assim, não é possível exigir
qualquer contraprestação – direta ou indireta – da pessoa beneficiada.
Se houver alguma espécie de
contraprestação em favor do estabelecimento, não se aplica o regime jurídico da
Lei nº 14.016/2020, incidindo as regras gerais do Código Civil e do Código de
Defesa do Consumidor.
Quais estabelecimentos
estão autorizados, pela Lei nº 14.016/2020, a doar os alimentos?
A lei prevê um rol
exemplificativo:
• empresas;
• hospitais;
• supermercados;
• cooperativas;
• restaurantes;
• lanchonetes
• e todos os demais
estabelecimentos que forneçam alimentos preparados prontos para o consumo de
trabalhadores, de empregados, de colaboradores, de parceiros, de pacientes e de
clientes em geral.
Como é feita essa doação?
A doação poderá ser feita:
1) diretamente;
Ex: ao final da noite, o gerente
do restaurante doa alimentos para moradores de rua.
2) em colaboração com o poder
público;
Ex: supermercado firma convênio
com o Município para doar, gratuitamente, alimentos para creches públicas.
3) com a participação de
entidades intermediárias.
Assim, a doação pode ser feita por
meio de:
• bancos de alimentos*;
• entidades beneficentes de
assistência social certificadas; ou
• entidades religiosas.
* “os bancos alimentares ou
bancos de alimentos são organizações sem fins lucrativos baseadas no voluntariado
e que têm como objetivo a angariação de donativos de bens alimentares e a
recuperação de excedentes alimentares da sociedade para os redistribuir entre
pessoas necessitadas, evitando qualquer desperdício ou mau uso.” (https://www.wikiwand.com/pt/Banco_de_Alimentos)
Quem pode ser beneficiado
com as doações?
Os beneficiários da doação serão
pessoas, famílias ou grupos em situação de vulnerabilidade ou de risco
alimentar ou nutricional (art. 2º).
Não há relação de consumo
A doação a que se refere a Lei nº
14.016/2020, em nenhuma hipótese, configurará relação de consumo (art.
2º, parágrafo único).
Trata-se de importante garantia
para os estabelecimentos porque, com isso, não se aplica a eles o rigoroso
regime de responsabilidade objetiva por fato do produto, previsto no art. 12 do
Código de Defesa do Consumidor:
Art. 12. O fabricante, o produtor, o
construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem,
independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos
consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção,
montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus
produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua
utilização e riscos.
Com isso, o indivíduo beneficiado
com a doação não poderá ser enquadrado no conceito de consumidor (art. 2º do
CDC), nem mesmo na figura equiparada de bystander, tratada no art. 17 do
CDC.
Qual foi o regime de
responsabilidade civil do doador previsto pela Lei nº 14.016/2020?
Veja o que diz o caput do art.
3º:
Art. 3º O doador e o intermediário somente responderão nas esferas
civil e administrativa por danos causados pelos alimentos doados se agirem com
dolo.
No direito brasileiro, em regra,
a responsabilidade civil é subjetiva, de forma que o agente será
responsabilizado se agiu com dolo ou culpa (art. 186 c/c art. 927 do Código
Civil).
No caso da doação gratuita de
alimentos, o legislador abrandou essa regra e determinou que só haverá
responsabilidade se o doador ou o intermediário tiverem agido com dolo.
Assim, mesmo que tenham atuado com culpa, não serão responsabilizados.
A despeito de reconhecer a boa
intenção do legislador diante de um tema tão sensível e socialmente relevante,
penso que a previsão foi exacerbada e que ela poderá gerar uma proteção
insuficiente às pessoas que recebem as doações. Entendo que a Lei deveria ter
previsto que o doador e o intermediário também teriam responsabilidade caso
tivessem agido com “culpa grave”, ou seja, quando demonstraram total descaso,
mesmo que sem intenção de causar dano.
Mutatis mutandis, seria o
caso de se aplicar o mesmo raciocínio que levou o STJ a editar a súmula 145:
Súmula 145-STJ: No transporte
desinteressado, de simples cortesia, o transportador só será civilmente
responsável por danos causados ao transportado quando incorrer em dolo ou culpa
grave.
Não foi essa, contudo, a opção
legal.
Preocupação com a cadeia de
conservação do alimento e previsão de rompimento do nexo causal
Uma das preocupações dos
restaurantes e similares está no fato de que, no momento da doação, o alimento
está dentro do prazo de validade e em condições de ser consumido. Ocorre que,
se for mal conservado ou se passar muito tempo, ele poderá se tornar impróprio
para o consumo.
Assim, não há como o doador
garantir que aquele alimento doado em perfeitas condições permanecerá dessa
forma no exato instante do consumo, caso este não seja imediato.
Pensando nisso, o legislador
inseriu uma regra afirmando que o doador somente possui responsabilidade pela
higidez do alimento no momento da doação, não sendo responsável por eventuais
danos decorrentes da má-conservação, transporte inadequado ou incorreta manipulação.
Isso porque são fatos posteriores, supervenientes, sobre os quais o doador não
terá mais controle. Há, portanto, ausência de responsabilidade pelo rompimento
do nexo causal.
Veja o que diz o § 1º do art. 3º:
Art. 3º (...)
§ 1º A responsabilidade do doador encerra-se no momento da primeira
entrega do alimento ao intermediário ou, no caso de doação direta, ao
beneficiário final.
Dessa forma, o estabelecimento só
responderá se, no momento da doação, o alimento era impróprio para o consumo.
Responsabilidade do
intermediário
Os restaurantes e similares muitas
vezes não possuem condições de entregar pessoalmente para aqueles que
necessitam dos alimentos. É o caso, por exemplo, da doação de alimentos para
uma creche, asilo ou para uma entidade de recuperação de dependentes químicos.
Essa logística de transporte e entrega pode, portanto, ser feita por um
terceiro que, se for também economicamente desinteressado, tem a sua
responsabilidade regida pela Lei nº 14.016/2020.
A responsabilidade desse
intermediário nos mesmos moldes acima explicados, encerra-se quando ele entrega
o alimento, não podendo ser punido caso a entidade recebedora não acondicione
corretamente os produtos ou não os manipule em condições adequadas. Confira:
Art. 3º (...)
§ 2º A responsabilidade do intermediário encerra-se no momento da
primeira entrega do alimento ao beneficiário final.
§ 3º Entende-se por primeira entrega o primeiro desfazimento do
objeto doado pelo doador ao intermediário ou ao beneficiário final, ou pelo
intermediário ao beneficiário final.
Responsabilidade penal
Qual é o crime praticado pelo sócio-gerente
de um restaurante que doa alimentos que estão estragados?
Em tese, ele pratica o crime do
art. 7º, IX, da Lei nº 8.137/90:
Art. 7º Constitui crime contra as
relações de consumo:
(...)
IX - vender, ter em depósito para
vender ou expor à venda ou, de qualquer forma, entregar matéria-prima ou mercadoria, em condições
impróprias ao consumo;
Pena - detenção, de 2 (dois) a 5
(cinco) anos, ou multa.
Parágrafo único. Nas hipóteses dos
incisos II, III e IX pune-se a modalidade culposa, reduzindo-se a pena e a
detenção de 1/3 (um terço) ou a de multa à quinta parte.
A Lei nº 14.016/2020 inova ao
exigir “dolo específico” do agente para que ele seja responsabilizado
criminalmente:
Art. 4º Doadores e eventuais intermediários serão responsabilizados
na esfera penal somente se comprovado, no momento da primeira entrega, ainda
que esta não seja feita ao consumidor final, o dolo específico de causar danos
à saúde de outrem.
Dolo específico
O dolo específico ocorre quando
“o agente deseja praticar a conduta visando a uma finalidade específica, que é
elementar do tipo. Ex.: art. 159 – sequestrar pessoa com o fim de obter
vantagem como condição ou preço do resgate.” (ALVES, Jamil Chaim. Manual
de Direito Penal. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 249).
O contrário de dolo específico é
o dolo geral, isto é, quando o tipo penal não exige nenhuma finalidade
especial.
A expressão “dolo específico”
está atualmente em desuso e a doutrina prefere falar em elemento subjetivo do
tipo (ou elemento subjetivo do injusto).
Com base no art. 4º podemos
chegar a duas conclusões:
1) os doadores e eventuais
intermediários disciplinados pela Lei nº 14.016/2020 só responderão pelo crime
do art. 7º, IX, da Lei nº 8.137/90 se tiverem o dolo específico (finalidade
especial) de causar danos à saúde de outrem;
2) a figura culposa do parágrafo
único do art. 7º da Lei nº 8.137/90 não se aplica para os doadores e eventuais
intermediários disciplinados pela Lei nº 14.016/2020.
Instituições públicas e
privadas como intermediárias
Para que os objetivos da Lei
sejam concretizados, o ideal seria a criação de órgãos públicos e de
associações privadas que funcionassem como intermediários entre os
estabelecimentos e as pessoas que necessitam de doação. Tais órgãos e
instituições funcionariam curadores atestando a qualidade dos alimentos doados e
os mantendo em condições adequadas para serem entregues às pessoas que mais
necessitam.
Vigência
A Lei nº 14.016/2020 entrou em
vigor na data de sua publicação (24/06/2020).