Imagine a seguinte situação hipotética:
João e Pedro são investigados pela prática de diversos
crimes.
Eles decidem, então, celebrar um acordo de colaboração
premiada, que é homologado pelo Juiz da 1ª vara criminal.
João e Pedro delataram Luís, afirmando que ele também
praticou os mesmos crimes.
Luís, ao tomar conhecimento disso, pediu ao Juiz para ter
acesso aos termos da colaboração premiada que mencionam seu nome. Esse pedido
foi fundamentado na SV 14, que tem a seguinte redação:
Súmula vinculante 14-STF: É direito do defensor, no interesse do
representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já
documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência
de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.
O magistrado negou o pedido afirmando que a delação não é um
elemento de prova, mas sim um meio de obtenção de prova. Logo, a
situação não se enquadraria na SV 14.
Inconformada, a defesa de Luís apresentou reclamação no STF.
O STF julgou procedente a reclamação?
SIM.
O delatado possui o direito de ter acesso às
declarações prestadas pelos colaboradores que o incriminem, desde que já
documentadas e que não se refiram à diligência em andamento que possa ser
prejudicada.
STF. 2ª Turma. Rcl 30742
AgR/SP, Rel. Min.
Ricardo Lewandowski, julgado em 4/2/2020 (Info 965).
De fato, a colaboração premiada
tem natureza jurídica de “meio de obtenção de prova”. A própria Lei nº
12.850/2013, recentemente alterada pelo “Pacote Anticrime”, prevê isso:
Art. 3º-A. O acordo de colaboração
premiada é negócio jurídico processual e meio de obtenção de prova, que
pressupõe utilidade e interesse públicos. (Incluído pela Lei nº 13.964/2019)
Vale ressaltar, no entanto, que, embora seja meio de
obtenção de prova, a colaboração premiada é fenômeno complexo que envolve
diversos atos com naturezas jurídicas distintas. Em conjunto com o acordo, há
elementos de prova relevantes ao exercício do direito de defesa e do contraditório.
Em razão disso, o terceiro delatado por corréu, em termo de
colaboração premiada, tem direito de ter acesso aos trechos nos quais citado,
com fundamento na Súmula Vinculante 14.
Segundo essa SV, o acesso deve ser franqueado caso estejam
presentes dois requisitos:
• Um, positivo: o ato de colaboração deve apontar a
responsabilidade criminal do requerente;
• Outro, negativo: o ato de colaboração não deve referir-se
à diligência em andamento.
Nesse sentido:
(...) TJ/SP negou acesso à defesa ao
depoimento do colaborador Marcel Ferreira Júlio, nos termos da Lei n.
12.850/13. Ocorre que o art. 7º, § 2º, do mesmo diploma legal consagra o “amplo
acesso aos elementos de prova que digam respeito ao exercício do direito de
defesa”, ressalvados os referentes a diligências em andamento. É ônus da defesa
requerer o acesso ao juiz que supervisiona as investigações. O acesso deve ser
garantido caso estejam presentes dois requisitos. Um, positivo: o ato de
colaboração deve apontar a responsabilidade criminal do requerente (INQ 3.983,
rel. min. Teori Zavascki, Tribunal Pleno, julgado em 3.3.2016). Outro,
negativo: o ato de colaboração não deve referir-se à diligência em andamento. A
defesa do reclamante postulou ao Relator do processo o acesso aos atos de colaboração
do investigado. 4. Direito de defesa violado. 5. Reclamação julgada procedente,
confirmando a liminar deferida.
STF. 2ª Turma. Rcl 24116, Rel. Min.
Gilmar Mendes, julgado em 13/12/2016.
(...) Tratando-se de colaboração premiada contendo diversos depoimentos,
envolvendo diferentes pessoas e, possivelmente, diferentes organizações
criminosas, tendo sido prestados em ocasiões diferentes, em termos de
declaração separados, dando origem a diferentes procedimentos investigatórios,
em diferentes estágios de diligências, não assiste a um determinado denunciado
o acesso universal a todos os depoimentos prestados. O que a lei lhe assegura é
o acesso aos elementos da colaboração premiada que lhe digam respeito. (...)
STF. Plenário. Inq 3983, Rel. Min. Teori Zavascki, julgado em
03/03/2016.
Mas o art. 7º da Lei nº 12.850/2013 não assegura o
sigilo prévio?
Veja o que diz o dispositivo:
Art. 7º O pedido de homologação do
acordo será sigilosamente distribuído, contendo apenas informações que não
possam identificar o colaborador e o seu objeto.
Este sigilo tem dois objetivos básicos:
a) preservar os direitos assegurados ao colaborador, dentre
os quais o de “ter nome, qualificação, imagem e demais informações pessoais
preservados” (art. 5º, II) e o de “não ter sua identidade revelada pelos meios
de comunicação, nem ser fotografado ou filmado, sem sua prévia autorização por
escrito” (art. 5º, V, da Lei nº 12.850/2013); e
b) garantir o êxito das investigações (art. 7º, § 2º e art.
8, § 3º).
Ocorre que, mesmo antes da
retirada do sigilo, será assegurado ao defensor, no interesse do representado,
amplo acesso aos elementos de prova que digam respeito ao exercício do direito
de defesa, devidamente precedido de autorização judicial, ressalvados os
referentes às diligências em andamento. É o que preconiza o § 2º do art. 7º:
Art. 7º (...)
§ 2º O acesso aos autos será restrito
ao juiz, ao Ministério Público e ao delegado de polícia, como forma de garantir
o êxito das investigações, assegurando-se ao defensor, no interesse
do representado, amplo acesso aos elementos de prova que digam respeito ao
exercício do direito de defesa, devidamente precedido de autorização
judicial, ressalvados os referentes às diligências em andamento.
Assim, a jurisprudência garante o acesso a todos os
elementos de prova documentados nos autos dos acordos de colaboração, incluídas
as gravações audiovisuais dos atos de colaboração de corréus, com o escopo de
confrontá-los, e não para impugnar os termos dos acordos propriamente ditos
(Rcl 21258 AgR).
Pacote anticrime
Vale ressaltar que a Lei nº
13.964/2019 alterou a redação do § 3º do art. 7º prevendo o seguinte:
Lei nº 12.850/2013
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Redação original
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Redação dada pela Lei 13.964/2019
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Art.
7º (...)
§
3º O acordo de colaboração premiada deixa de ser sigiloso assim que recebida
a denúncia, observado o disposto no art. 5º.
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Art.
7º (...)
§
3º O acordo de colaboração premiada e os depoimentos do colaborador serão mantidos em sigilo até o
recebimento da denúncia ou da queixa-crime, sendo vedado ao magistrado decidir por sua
publicidade em qualquer hipótese.
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A despeito desta nova redação, em tese mais restritiva,
penso que o entendimento acima exposto pelo STF continua válido. Isso porque o
objetivo da mudança legislativa não foi o de proibir o acesso dos depoimentos
pelo delatado (até mesmo porque isso seria inconstitucional por violação à
ampla defesa). A finalidade da alteração foi a de evitar que o acordo e os
depoimentos fossem divulgados amplamente para os meios de comunicação, conforme
se observou nos últimos anos.