Dizer o Direito

sexta-feira, 13 de março de 2020

A sanção do art. 940 do Código Civil pode ser aplicada também para casos envolvendo consumidor



REGRAMENTO DA REPETIÇÃO DO INDÉBITO NO CÓDIGO CIVIL
Imagine a seguinte situação:
João ajuizou ação de cobrança contra Pedro por um suposto débito de R$ 10 mil.
Pedro contestou a demanda provando que já havia pago a dívida. Além disso, na própria contestação, o réu pediu que o autor fosse condenado a pagar R$ 20 mil a ele em razão de estar cobrando uma dívida já quitada.

Sob o ponto de vista do direito material, esse pedido de Pedro encontra amparo na legislação?
SIM. Há previsão expressa no Código Civil:
Art. 940. Aquele que demandar por dívida já paga, no todo ou em parte, sem ressalvar as quantias recebidas ou pedir mais do que for devido, ficará obrigado a pagar ao devedor, no primeiro caso, o dobro do que houver cobrado e, no segundo, o equivalente do que dele exigir, salvo se houver prescrição.

Obs1: essa penalidade do art. 940 deve ser aplicada independentemente de a pessoa demandada ter provado qualquer tipo de prejuízo. Assim, ainda que Pedro não comprove ter sofrido dano, essa indenização será devida. O art. 940 do CC institui uma autêntica pena privada, aplicável independentemente da existência de prova do dano (STJ. 3ª Turma. REsp 1.286.704/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe de 28/10/2013).

Obs2: a penalidade do art. 940 exige que o credor tenha exigido judicialmente a dívida já paga (“demandar” = “exigir em juízo”).

Para que Pedro cobre esse valor em dobro, é necessária ação autônoma ou reconvenção ou ele pode fazer isso por meio de mera contestação?
O pedido pode ser feito por meio de contestação:
A aplicação da sanção civil do pagamento em dobro por cobrança judicial de dívida já adimplida (art. 1.531 do CC 1916 / art. 940 do CC 2002) pode ser postulada pelo réu na própria defesa, independendo da propositura de ação autônoma ou do manejo de reconvenção.
STJ. 2ª Seção. REsp 1111270-PR, Rel. Min. Marco Buzzi, julgado em 25/11/2015 (recurso repetitivo) (Info 576).

Sempre que houver cobrança de dívida já paga, haverá a condenação do autor à penalidade do art. 940 do CC?
Não, nem sempre.
Segundo o STJ, são exigidos dois requisitos para a aplicação do art. 940:
a) a cobrança se dá por meio judicial; e
b) a má-fé do demandante fica comprovada.
Essa exigência da má-fé é antiga e vem desde o CC-1916, onde esta penalidade encontrava-se prevista no art. 1.531. Veja o que o STF já havia decidido naquela época:
Súmula 159-STF: Cobrança excessiva, mas de boa fé, não dá lugar às sanções do art. 1.531 do Código Civil (atual art. 940).

(PGM Manaus 2018 CEBRASPE) De acordo com a jurisprudência do STJ e as disposições do Código Civil, uma vez ajuizada ação de cobrança de dívida já paga, o direito do requerido à restituição em dobro prescindirá da demonstração de má-fé do autor da cobrança. (ERRADO)

Se João tivesse desistido da ação de cobrança antes de Pedro apresentar contestação, isso o eximiria do pagamento da penalidade do art. 940 do CC?
SIM. O CC prevê que a indenização é excluída se o autor desistir da ação antes de contestada a lide:
Art. 941. As penas previstas nos arts. 939 e 940 não se aplicarão quando o autor desistir da ação antes de contestada a lide, salvo ao réu o direito de haver indenização por algum prejuízo que prove ter sofrido.

REGRAMENTO DA REPETIÇÃO DO INDÉBITO NO CDC
Previsão legal
O Código de Defesa do Consumidor possui uma regra semelhante ao art. 940 do CC, mas que apresenta peculiaridades. Assim, se o consumidor for cobrado em quantia indevida e efetuar o pagamento, terá direito de receber valor igual ao dobro do que pagou em excesso. Veja:
Art. 42 (...) Parágrafo único. O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável.

Obs: esse valor deve ser acrescido de juros e correção monetária. Nesse sentido:
++ (MPE/SC 2019) O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável. (CERTO)

Dobro do que pagou em excesso (e não dobro do que foi cobrado em excesso)
++ (MP/TO 2012 CESPE) Segundo o direito consumerista brasileiro, o consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que lhe tiver sido cobrado em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável. (ERRADO)

Requisitos para aplicar essa penalidade do CDC:
a) Consumidor ter sido cobrado por quantia indevida;
b) Consumidor ter pago essa quantia indevida (o CDC exige que a pessoa tenha efetivamente pago e não apenas que tenha sido cobrada);
c) Não ocorrência de engano justificável por parte do cobrador.

Engano justificável
• Exemplo de engano justificável: cobrança com base em lei ou cláusula contratual mais tarde declarada nula pela Justiça.
• Exemplo de engano injustificável: concessionária de água e esgoto que cobra taxa de esgoto em local onde o serviço não é prestado.

Vale ressaltar que o ônus de provar que houve engano justificável é do fornecedor:
++ (Juiz TJPR 2014): Segundo o contido no art. 42, parágrafo único do CDC, o consumidor cobrado por quantia indevida, tem direito a repetição do indébito do valor em dobro ao que pagou em excesso, porém, se o engano para tal cobrança for justificável não cabe a repetição em dobro. A prova de que o engano é justificável cabe ao fornecedor, haja vista que a matéria é de defesa. (CERTO)

Devolução simples
Se tiver havido engano justificável por parte do cobrador, este continuará com a obrigação de devolver as quantias recebidas indevidamente, no entanto, essa devolução será simples (ou seja, não será em dobro).

Para incidir a regra do art. 42, parágrafo único, do CDC exige-se má-fé do fornecedor (“cobrador”)?
Prevalece que SIM:
Jurisprudência em Teses do STJ (ed. 39)
Tese 7: A devolução em dobro dos valores pagos pelo consumidor, prevista no art. 42, parágrafo único, do CDC, pressupõe tanto a existência de pagamento indevido quanto a má-fé do credor.

A suposta divergência apresentada em relação à aplicação do art. 42, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor, não se mostra existente, pois já está pacificado o entendimento acerca do cabimento da repetição em dobro apenas nos casos em que demonstrada a má-fé do credor.
STJ. Corte Especial. EAREsp 738.991/RS, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 20/02/2019.

A aplicação do parágrafo único do art. 42 do Código de Defesa do Consumidor, que determina a devolução em dobro do indébito, exige a configuração de má-fé do credor.
STJ. 3ª Turma. REsp 1626275/RJ, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 04/12/2018.

A devolução em dobro dos valores pagos pelo consumidor pressupõe a existência de pagamento indevido e a má-fé do credor, consoante o entendimento desta Corte.
STJ. 4ª Turma. AgInt no REsp 1502471/RS, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, julgado em 29/10/2019.

Cuidado com a redação de eventual enunciado de prova envolvendo tarifa de água, esgoto etc.:
Jurisprudência em Teses do STJ (ed. 39)
Tese 3: É obrigatória a restituição em dobro da cobrança indevida de tarifa de água, esgoto, energia ou telefonia, salvo na hipótese de erro justificável (art. 42, parágrafo único, do CDC), que não decorra da existência de dolo, culpa ou má-fé.


DISCUSSÃO QUANTO À APLICAÇÃO DO REGRAMENTO DO CÓDIGO CIVIL NAS RELAÇÕES DE CONSUMO
Imagine a seguinte situação hipotética:
João ajuizou ação de reparação de danos contra o Banco HSBC.
O autor alegou que o Banco lhe cobrou, em juízo, uma dívida que já estava paga.
Como a dívida paga era no valor de R$ 50 mil, o autor pedia para que o Banco fosse condenado a pagar R$ 100 mil, ou seja, o dobro do que havia cobrado.
João fundamentou seu pleito no art. 940 do CC:
Art. 940. Aquele que demandar por dívida já paga, no todo ou em parte, sem ressalvar as quantias recebidas ou pedir mais do que for devido, ficará obrigado a pagar ao devedor, no primeiro caso, o dobro do que houver cobrado e, no segundo, o equivalente do que dele exigir, salvo se houver prescrição.

Contestação
O Banco apresentou contestação alegando o seguinte:
- realmente, ajuizei ação cobrando de João dívida que ele já tinha sido pago;
- no entanto, nesta ação proposta, João não chegou a pagar nada porque o magistrado julgou improcedente o pedido;
- diante disso, como o consumidor não pagou essa quantia indevida, não pode ser aplicado o parágrafo único do art. 42 do CDC:
Art. 42 (...) Parágrafo único. O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável.

- além disso, não é possível aplicar o art. 940 do CC porque estamos diante de uma relação de consumo, devendo, portanto, incidir o diploma especial, qual seja, o CDC.

A discussão jurídica foi, portanto, a seguinte: é possível aplicar a sanção do art. 940 do Código Civil neste caso, mesmo se tratando de uma relação de consumo?
SIM. Mesmo diante de uma relação de consumo, é possível aplicar a sanção prevista no art. 940 do CC.
O art. 940 do CC e o art. 42 do CDC incidem em hipóteses diferentes, tutelando, cada um deles, uma situação específica envolvendo a cobrança de dívidas pelos credores. Veja as principais diferenças:
ART. 940 DO CÓDIGO CIVIL
ART. 42, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CDC
Requisitos:
a) A pessoa (consumidora ou não) foi cobrada, por meio de processo judicial, por dívida já paga;
b) O cobrador agiu de má-fé (súmula 159 STF).
Requisitos:
a) Consumidor foi cobrado por quantia indevida;
b) Consumidor pagou essa quantia indevida;
c) Não ocorrência de engano justificável por parte do cobrador.
A cobrança foi feita na via judicial.
A cobrança foi feita na via extrajudicial.
Exige má-fé do autor da cobrança.
Também exige má-fé do autora da cobrança.
Não se exige que a pessoa cobrada tenha pago efetivamente a quantia.
Para incidir o dispositivo basta que a pessoa seja acionada na justiça por dívida já paga.
Não basta a simples cobrança indevida.
Exige-se que o consumidor tenha pago efetivamente o valor indevido.

Desse modo, se o consumidor foi cobrado indevidamente, mas não estão presentes os pressupostos de aplicação do art. 42 do CDC, ainda assim será possível incidir o art. 940 do CC, se os requisitos deste dispositivo estiverem demonstrados.
Como explica o Min. Herman Benjamin:
“(...) A sanção do art. 42, parágrafo único, dirige-se tão somente àquelas cobranças que não têm o munus do juiz a presidi-las. Daí que, em sendo proposta ação visando à cobrança do devido, mesmo que se trata de dívida de consumo, não mais é aplicável o citado dispositivo, mas, sim, não custa repetir, o Código Civil. No sistema do Código Civil, a sanção só tem lugar quando a cobrança é judicial, ou seja, pune-se aquele que movimenta a máquina do Judiciário injustificadamente.
Não é esse o caso do Código de Defesa do Consumidor. Usa-se aqui o verbo cobrar, enquanto o Código Civil refere-se a demandar. Por conseguinte, a sanção, no caso da lei especial, aplica-se sempre que o fornecedor (direta ou indiretamente) cobrar e receber, extrajudicialmente, quantia indevida.
O Código de Defesa do Consumidor, preventivo por excelência, enxerga o problema em estágio anterior ao tratado pelo Código Civil. E não poderia ser de modo diverso, pois, se o parágrafo único do art. 42 do CDC tivesse aplicação restrita às mesmas hipóteses fáticas do art. 940 do CC, faltar-lhe-ia utilidade prática, no sentido de aperfeiçoar a proteção do consumidor contra cobranças irregulares, a própria ratio que levou, em última instância, à intervenção do legislador” (Manual de Direito do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 330).

Para os casos envolvendo consumidores, a aplicação do CDC é prioritária. Isso porque se presume que este diploma trata de forma mais protetiva o consumidor.
Vale ressaltar, contudo, se, no caso concreto, for mais favorável ao consumidor aplicar o Código Civil, esta solução deverá ser adotada.
Assim, admite-se a aplicação do CC, no que couber, quando a regra não contrariar o sistema estabelecido
pelo CDC, sobretudo quando as normas forem complementares, como neste caso, pois os arts. 42, parágrafo único, do CDC e 940 do CC preveem sanções para condutas distintas dos credores.

Em suma:
Em caso de cobrança judicial indevida, é possível aplicar a sanção prevista no art. 940 do Código Civil mesmo sendo uma relação de consumo.
STJ. 3ª Turma. REsp 1.645.589-MS, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 04/02/2020 (Info 664).






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