Dizer o Direito

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

É possível o inventário extrajudicial, ainda que exista testamento, se os interessados forem capazes e concordes e estiverem assistidos por advogado



Inventário
Inventário é o procedimento, judicial ou extrajudicial, por meio do qual são arrecadados, descritos, avaliados e liquidados os bens e outros direitos que pertenciam à pessoa morta, e, após serem pagas as dívidas do falecido, o eventual saldo positivo será distribuído entre os seus sucessores (partilha).

Espécies de inventário
• Inventário judicial: é um processo judicial.
• Inventário extrajudicial: é o inventário realizado por meio de escritura pública.

Obs: a possibilidade de o inventário ser feito extrajudicialmente foi criada com a Lei nº 11.441/2007. Antes dessa Lei, o inventário só podia ser judicial.

Quais são as exigências para que o inventário seja feito extrajudicialmente?
Segundo a lição tradicional que se encontra nos manuais de Direito Civil, o inventário extrajudicial exigiria o cumprimento de quatro requisitos cumulativos:
1) herdeiros capazes: todos os herdeiros devem ser capazes; havendo interessado incapaz, deve ser feito o inventário judicial.
2) consenso: deve haver consenso entre os herdeiros quanto à divisão dos bens; todos devem ser concordes.
3) advogado: todas as partes interessadas devem estar assistidas por advogado ou por defensor público.
4) inexistência de testamento: o falecido não pode ter deixado testamento; pela lei, havendo testamento, deveria ser feito inventário judicial.

Esses quatro requisitos são extraídos do art. 610 do CPC/2015:
Art. 610. Havendo testamento ou interessado incapaz, proceder-se-á ao inventário judicial.
§ 1º Se todos forem capazes e concordes, o inventário e a partilha poderão ser feitos por escritura pública, a qual constituirá documento hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras.
§ 2º O tabelião somente lavrará a escritura pública se todas as partes interessadas estiverem assistidas por advogado ou por defensor público, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial.

Vale ressaltar, contudo, que essa quarta exigência (inexistência de testamento) sempre foi muito criticada pela doutrina.
Anderson Schreiber, um dos maiores civilistas da atualidade, afirma que a exigência relativa à ausência de testamento “não tem razão de ser. Pelo contrário, cria no Brasil um cenário insólito em que o testador que realiza testamento, pretendendo justamente evitar conflitos futuros entre seus herdeiros, acaba por lhes impor a via judicial, mesmo que não haja nenhum herdeiro incapaz e todos estejam de acordo quanto à divisão dos bens. Trata-se de verdadeiro contrassenso.” (Direito Civil contemporâneo. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2020, p. 1432).

O STJ encampou essa crítica da doutrina? Cumpridos os demais requisitos legais, é possível realizar o inventário judicial mesmo que o falecido tenha deixado testamento? É possível afastar essa quarta exigência acima exposta?
SIM. A 4ª Turma do STJ decidiu que:
É possível o inventário extrajudicial, ainda que exista testamento, se os interessados forem capazes e concordes e estiverem assistidos por advogado, desde que o testamento tenha sido previamente registrado judicialmente ou haja a expressa autorização do juízo competente.
STJ. 4ª Turma. REsp 1.808.767-RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 15/10/2019 (Info 663).

O Min. Luis Felipe Salomão, relator do recurso especial, propôs uma nova forma de interpretar o art. 610 do CPC, de modo que, mesmo havendo testamento, seria possível o inventário extrajudicial.
Para ele, a partir de uma leitura sistemática do caput e do § 1º do art. 610 do CPC/2015 c/c os arts. 2.015 e 2.016 do CC/2002, mostra-se possível o inventário extrajudicial, ainda que exista testamento, se os interessados forem capazes e concordes e estiverem assistidos por advogado, desde que o testamento tenha sido previamente registrado judicialmente ou haja a expressa autorização do juízo competente.
A mens legis que autorizou o inventário extrajudicial foi justamente a de desafogar o Judiciário, afastando a via judicial de processos nos quais não se necessita da chancela judicial, assegurando solução mais célere e efetiva em relação ao interesse das partes.
O processo deve ser um meio, e não um entrave, para a realização do direito. Se a via judicial é prescindível, não há razoabilidade em proibir, na ausência de conflito de interesses, que herdeiros, maiores e capazes, socorram-se da via administrativa para dar efetividade a um testamento já tido como válido pela Justiça.

Registrado judicialmente ou expressa autorização do juízo competente: o que é isso?
Todo testamento, para o seu cumprimento, deve, antes de qualquer outra providência, ser registrado em juízo em processo judicial específico chamado “ação judicial de cumprimento de testamento”, regulado pelos arts. 735 a 737 do CPC/2015.
Assim, mesmo que o falecido deixe testamento será possível realizar o inventário extrajudicial desde que estejam cumpridos os demais requisitos e desde que, antes do inventário, os herdeiros instaurem o processo judicial para abertura, registro e cumprimento de testamento.
“Nesse ato de abertura e registro de testamento, que é judicial, possíveis vícios formais serão apreciados e o testamento somente será executado se atender os requisitos formais. Assim, de um modo ou de outro, o inventário extrajudicial somente poderá ser iniciado após o registro do testamento e da ordem de cumprimento em processo judicial específico,” (FIGUEIREDO, Ivanildo. Inventário extrajudicial na sucessão testamentária: possibilidade, legalidade, alcance e eficácia. Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões n. 8 - set./out./2015, pp. 97-98).

Enunciados doutrinários sobre o tema
Como já dito, a decisão do STJ acima exposta encontra eco na opinião da doutrina especializada que, por meio de enunciados, já defendeu essa mesma posição:
• Enunciado 600 da VII Jornada de Direito Civil do CJF: Após registrado judicialmente o testamento e sendo todos os interessados capazes e concordes com os seus termos, não havendo conflito de interesses, é possível que se faça o inventário extrajudicial.
• Enunciado 77 da I Jornada sobre Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios: Havendo registro ou expressa autorização do juízo sucessório competente, nos autos do procedimento de abertura e cumprimento de testamento, sendo todos os interessados capazes e concordes, o inventário e partilha poderão ser feitos por escritura pública, mediante acordo dos interessados, como forma de pôr fim ao procedimento judicial.
• Enunciado 51 da I Jornada de Direito Processual Civil do CJF: Havendo registro judicial ou autorização expressa do juízo sucessório competente, nos autos do procedimento de abertura, registro e cumprimento de testamento, sendo todos os interessados capazes e concordes, poderão ser feitos o inventário e a partilha por escritura pública.
• Enunciado 16 do IBDFAM: Mesmo quando houver testamento, sendo todos os interessados capazes e concordes com os seus termos, não havendo conflito de interesses, é possível que se faça o inventário extrajudicial.

Cuidado com o que dizem alguns livros
Muitos livros explicam o tema de forma diferente e dizem que a ausência de testamento é um requisito. Não é mais a posição a ser adotada nas provas. Veja esta questão de prova que demonstra bem a mudança:
 (MP/PR 2014) A existência de testamento, mesmo que todos os herdeiros sejam maiores e capazes, impede a realização de inventário extrajudicial.


Na época da prova, o gabarito indicou a resposta como CORRETA. No entanto, atualmente, o gabarito deveria assinar como ERRADO.

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