Imagine a seguinte situação
hipotética:
Chegaram indícios no Ministério
Público de que João, Promotor de Justiça vitalício, teria praticado crime no
exercício de suas funções.
Diante disso, a Corregedoria do
Ministério Público instaurou Processo Administrativo Disciplinar para apurar o
suposto delito.
Após a instrução, foi prolatada
decisão no PAD concluindo pela prática do crime e recomendando a propositura de
ação penal contra o referido Promotor.
Neste PAD, o Promotor
poderia ter sido demitido? Se um membro do Ministério Público pratica uma
infração disciplinar grave, ele poderá ser condenado, em processo
administrativo, à pena de demissão?
NÃO. Os membros do MP gozam de
vitaliciedade e somente podem perder o cargo por sentença judicial transitada
em julgado (art. 128, § 5º, I, “a”, da CF/88).
Além da CF/88, essa vitaliciedade
foi regulamentada pelo art. 38, § 1º da Lei nº 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional
do MP) e pelo art. 57, XX, da LC 75/93 (Estatuto do MPU). Essas leis preveem
que é necessária a propositura de uma ação civil para a decretação da perda do
cargo contra o membro do Ministério Público que tiver praticado uma infração
disciplinar grave.
Processo penal
O Procurador-Geral de Justiça
ofereceu denúncia contra João no Tribunal de Justiça.
Ao final do processo, o Promotor foi
condenado a uma pena de 2 anos e 3 meses de reclusão.
A pena privativa de liberdade foi
substituída por penas restritivas de direito.
A condenação criminal transitou
em julgado.
O Tribunal de Justiça, ao
condenar o Promotor de Justiça pela prática do crime, poderia ter determinado a
perda do cargo, com base no art. 92, I, “a”, do CP?
NÃO. Relembre
o que diz o art. 92, I, “a”, do Código Penal:
Art. 92. São também efeitos da
condenação:
I - a perda de cargo, função pública ou
mandato eletivo:
a) quando aplicada pena privativa de
liberdade por tempo igual ou superior a um ano, nos crimes praticados com abuso
de poder ou violação de dever para com a Administração Pública;
(...)
A perda do cargo com base no art.
92, I, do CP não pode ser aplicada aos membros do Ministério Público
considerando que eles são regidos por normas previstas na legislação
específica:
Assim, para que possa
ocorrer a perda do cargo do membro do Ministério Público, são necessárias duas
decisões. A primeira, condenando-o pela prática do crime e a segunda, em ação
promovida pelo Procurador-Geral de Justiça, reconhecendo que o referido crime é
incompatível com o exercício de suas funções, ou seja, deve existir condenação
criminal transitada em julgado, para que possa ser promovida a ação civil para
a decretação da perda do cargo (art. 38, §2º, da Lei nº 8.625/93).
O art. 92 do Código
Penal não se aplica aos membros do Ministério Público condenados criminalmente
porque o art. 38 da Lei nº 8.625/93 disciplina o tema, sendo norma especial
(específica), razão pela qual deve esta última prevalecer em relação à norma
geral (Código Penal).
STJ. 5ª Turma. AgRg no
REsp 1409692/SP, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 23/05/2017.
As regras sobre a perda do cargo de membro do Ministério Público
estadual estão previstas em norma especial, qual seja, Lei nº 8.625/93 (Lei
Orgânica Nacional do Ministério Público), que dispõe que a perda do referido
cargo somente pode ocorrer após o trânsito em julgado de ação civil proposta
para esse fim.
STJ. 5ª Turma. REsp 1.251.621-AM, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado
em 16/10/2014 (Info 552).
Confira como
a legislação especial (Lei nº 8.625/93) tratou sobre o tema:
Art. 38. Os membros do Ministério
Público sujeitam-se a regime jurídico especial e têm as seguintes garantias:
I - vitaliciedade, após dois anos de
exercício, não podendo perder o cargo senão por sentença judicial transitada em
julgado;
II - inamovibilidade, salvo por motivo
de interesse público;
III - irredutibilidade de vencimentos,
observado, quanto à remuneração, o disposto na Constituição Federal.
§ 1º O membro vitalício do Ministério
Público somente perderá o cargo por sentença judicial transitada em julgado, proferida
em ação civil própria, nos seguintes casos:
I - prática de crime incompatível com o
exercício do cargo, após decisão judicial transitada em julgado;
II - exercício da advocacia;
III - abandono do cargo por prazo
superior a trinta dias corridos.
§ 2º A ação civil para a decretação da
perda do cargo será proposta pelo Procurador-Geral de Justiça perante o
Tribunal de Justiça local, após autorização do Colégio de Procuradores, na
forma da Lei Orgânica.
Repare que o § 2º ainda prevê que
a ação civil para a decretação da perda do cargo somente pode ser ajuizada pelo
Procurador-Geral de Justiça quando previamente autorizado pelo Colégio de
Procuradores, o que constitui condição de procedibilidade, juntamente com o
trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Com efeito, em se tratando de
normas legais de mesma hierarquia, o fato de a Lei Orgânica Nacional do
Ministério Público prever regras específicas e diferenciadas das do Código
Penal para a perda de cargo, em atenção ao princípio da especialidade (lex
specialis derogat generali) deve prevalecer o que dispõe a Lei Orgânica.
Como seria se fosse um
Procurador da República (membro do MPF)?
Neste caso, a
ação civil para perda do cargo deveria ser proposta pelo Procurador-Geral da
República, após autorização do Conselho Superior do MPF. Nesse sentido, confira
o inciso XX do art. 57 da LC 75/93 (que versa sobre os membros do MPU):
Art. 57. Compete ao Conselho Superior
do Ministério Público Federal:
(...)
XX - autorizar, pela maioria absoluta
de seus membros, que o Procurador-Geral da República ajuíze a ação de perda de
cargo contra membro vitalício do Ministério Público Federal, nos casos
previstos nesta lei;
Voltando ao caso concreto:
o que deve ser feito agora? João foi condenado criminalmente, mas não perdeu o
cargo no processo criminal. Como ele poderá perder o cargo?
O
Procurador-Geral de Justiça deverá, após ser autorizado pelo Colégio de
Procuradores, ajuizar ação civil contra o Promotor pedindo a perda de seu
cargo. É o que prevê, como já vimos acima, o § 2º do art. 38 da Lei nº 8.625/93:
Art. 38 (...)
§ 1º O membro vitalício do Ministério
Público somente perderá o cargo por sentença judicial transitada em julgado,
proferida em ação civil própria, nos seguintes casos:
I - prática de crime incompatível com o
exercício do cargo, após decisão judicial transitada em julgado;
II - exercício da advocacia;
III - abandono do cargo por prazo
superior a trinta dias corridos.
§ 2º A ação civil para a decretação da
perda do cargo será proposta pelo Procurador-Geral de Justiça perante o Tribunal de Justiça local,
após autorização do Colégio de Procuradores, na forma da Lei Orgânica.
Onde o PGJ deverá propor
essa ação?
No Tribunal de Justiça, conforme determina o §
2º do art. 38.
A situação mudaria se o
Promotor de Justiça estivesse em disponibilidade? Se João estivesse em disponibilidade
também teria que se cumprir o § 2º do art. 38, ou seja, seria necessária ação
civil de perda do cargo proposta pelo PGJ no TJ?
SIM. Isso porque o membro do
Ministério Público quando colocado em disponibilidade não perde o vínculo com a
Administração Pública, recebendo seus proventos integrais e sendo assegurada a
contagem do tempo de serviço como se em exercício estivesse.
Assim, quando o Promotor é
colocado em disponibilidade não há uma perda definitiva do cargo.
A explicação acima feita
vale também para os casos de improbidade administrativa?
NÃO. Haveria diferenças. Vou
explicar com calma.
De acordo com o § 4º do art. 37
da CF/88, se a pessoa praticar um ato de improbidade administrativa, estará
sujeita às seguintes consequências:
• suspensão dos direitos
políticos;
• perda da função pública;
• indisponibilidade dos bens e
• ressarcimento ao erário.
O membro do Ministério Público pode ser processado e condenado por ato
de improbidade administrativa?
SIM. É pacífico o entendimento de
que o Promotor de Justiça (ou Procurador da República) pode ser processado e
condenado por ato de improbidade administrativa, com fundamento na Lei nº
8.429/92.
Vimos acima que o membro do
MP goza de vitaliciedade e que a Lei nº 8.625/93 e a LC nº 75/93 preveem a
necessidade de o PGJ ou PGR ajuízem ação civil de perda do cargo. Mas e no caso
da improbidade administrativa? O membro do MP pode ser réu em uma ação de
improbidade de que trata a Lei nº 8.429/92 e, ao final, ser condenado à perda
do cargo mesmo sem ser adotado o procedimento da Lei nº 8.625/93 e da LC nº
75/93?
SIM. É possível, no âmbito de
ação civil pública de improbidade administrativa, a condenação de membro do
Ministério Público à pena de perda da função pública prevista no art. 12 da Lei
nº 8.429/92.
Mas e a LC nº 75/93 e a Lei
nº 8.625/93?
Para o STJ, essas leis não tratam
sobre improbidade administrativa e, portanto, nada interferem nas disposições
da Lei nº 8.429/92.
Em outras palavras, existem as
ações previstas na LC 75/93 e na Lei nº 8.625/93, mas estas não excluem (não
impedem) que o membro do MP também seja processado e condenado pela Lei nº
8.429/92. Os dois sistemas convivem harmonicamente. Um não exclui o outro.
“A previsão legal de que o
Procurador-Geral de Justiça ou o Procurador-Geral da República ajuizará ação
civil específica para a aplicação da pena de demissão ou perda do cargo, nos
casos elencados na lei, não obsta que o legislador ordinário, cumprindo o
mandamento do § 4º do art. 37 da CF, estabeleça a pena de perda do cargo do membro
do MP quando comprovada a prática de ato ímprobo, em ação civil pública própria
para sua constatação.” (REsp 1.191.613-MG).
Quem irá propor a ação de
improbidade administrativa contra o membro do MP? Exige-se que seja o PGJ ou
PGR?
NÃO. A ação de improbidade contra
o membro do Ministério Público deverá ser proposta pelo Promotor de Justiça ou
Procurador da República, ou seja, pelo membro do MP que atua em 1ª instância.
Legitimidade para ajuizar a
ação contra o membro do MP
• Se a ação a ser ajuizada for a
da LC 75/93 ou a da Lei nº 8.625/93, nestes casos, a competência é exclusiva do
PGR ou do PGJ.
• Se a ação a ser ajuizada for
uma ação de improbidade administrativa (Lei nº 8.429/92), esta será proposta
“pelo Ministério Público ou pela pessoa jurídica interessada” (art. 17). Não
há, portanto, competência exclusiva do Procurador-Geral. Percebe-se que o a Lei
nº 8.429/92 ampliou a legitimação ativa.
Dessa forma, não há somente uma
única via processual adequada à aplicação da pena de perda do cargo a membro do
MP.
Vimos que a ação civil pela
perda do cargo contra o Promotor de Justiça (em nosso exemplo, João) deverá ser
proposta pelo PGJ e a competência para julgá-la é do TJ. Isso vale também para
a ação de improbidade administrativa?
NÃO. Conforme já explicado, se a
ação a ser ajuizada for uma ação de improbidade administrativa (Lei nº
8.429/92), esta pode ser proposta pelo Promotor de Justiça e tramitará em 1ª
instância.
Assim, se um Promotor de Justiça
pratica um ato de improbidade administrativa, outro Promotor de Justiça irá
ajuizar contra ele uma ação de improbidade que será julgada em 1ª instância por
um Juiz de Direito.
O que decidiu o STJ no Info
662:
Ação Civil de perda de cargo de Promotor de Justiça
cuja causa de pedir não esteja vinculada a ilícito capitulado na Lei nº
8.429/92 deve ser julgada pelo Tribunal de Justiça.
STJ. 2ª Turma. REsp 1.737.900-SP, Rel. Min. Herman Benjamin,
julgado em 19/11/2019 (Info 662).
AÇÃO CIVIL DE PERDA DE
CARGO PROPOSTA CONTRA PROMOTOR
DE JUSTIÇA
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1) Se for uma ação
de
improbidade
administrativa:
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2) Se a causa de
pedir não estiver vinculada a ilícito capitulado na Lei nº 8.429/92:
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A ação pode ser proposta por um
Promotor de Justiça ou pela pessoa jurídica interessada.
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A ação deverá ser proposta pelo
Procurador-Geral de Justiça.
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A ação será julgada pelo juízo
de 1ª instância.
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A ação deverá ser julgada pelo
Tribunal de Justiça.
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É regida pela Lei nº 8.429/92.
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É regida pela Lei nº 8.625/93.
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