Dizer o Direito

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

É possível o compartilhamento, sem autorização judicial, dos relatórios de inteligência financeira da UIF e do procedimento fiscalizatório da Receita Federal com a Polícia e o Ministério Público



É POSSÍVEL QUE O FISCO REQUISITE DAS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS INFORMAÇÕES BANCÁRIAS SOBRE OS CONTRIBUINTES SEM INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO?
O sigilo bancário é protegido pela CF/88?
SIM. A CF/88 não utiliza a expressão “sigilo bancário”, mas isso está sim protegido em dois incisos do art. 5º da CF/88. Confira:
Art. 5º (...)
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;  
(...)
XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal; 

O legislador infraconstitucional reafirmou a proteção ao sigilo bancário no caput do art. 1º da LC 105/2001, que dispõe sobre o sigilo das operações de instituições financeiras:
Art. 1º As instituições financeiras conservarão sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados.

No § 1º do art. 1º da LC 105/2001, o legislador elenca quem são consideradas instituições financeiras. A lista é extensa e abrange bancos de qualquer espécie, distribuidoras de valores mobiliários, corretoras de câmbio e até as bolsas de valores.

Para que haja acesso aos dados bancários (“quebra do sigilo bancário”), é necessária autorização judicial?
Em regra, sim. Em regra, para que se tenha acesso aos dados bancários de uma pessoa, é necessário prévia autorização judicial por se tratar de verdadeira cláusula de reserva de jurisdição.

E no caso do Fisco (Administração Tributária)? A Receita Federal pode requisitar, sem autorização judicial, informações bancárias das instituições financeiras?
SIM. Essa possibilidade está prevista no art. 6º da LC 105/2001.
O art. 6º afirma que as autoridades e os agentes fiscais tributários podem ter acesso às movimentações bancárias, mesmo sem autorização judicial, desde que exista um processo administrativo instaurado ou um procedimento fiscal em curso e essas informações sejam indispensáveis. Confira:
Art. 6º As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente.
Parágrafo único. O resultado dos exames, as informações e os documentos a que se refere este artigo serão conservados em sigilo, observada a legislação tributária.

Logo, a lei autoriza que a Receita Federal requisite diretamente das instituições financeiras informações sobre as movimentações bancárias dos contribuintes.

Exemplo:
Samuel era sócio administrador de uma empresa.
A Receita Federal instaurou procedimento fiscal contra a sociedade empresária sob a suspeita de que estaria havendo sonegação de tributos.
No curso do procedimento, a Receita, sem autorização judicial, requisitou diretamente do banco os extratos com as movimentações bancárias da pessoa jurídica.
A Receita fundamentou sua requisição no art. 6º da LC nº 105/2001.
De posse dos extratos fornecidos pelo banco, o Fisco constatou que realmente houve sonegação de tributos e, por conta disso, autuou a pessoa jurídica e fez a constituição definitiva do crédito tributário.

Tudo bem. Entendi que a Lei prevê essa possibilidade. Mas tal previsão é constitucional? Este art. 6º da LC 105/2001, que autoriza o Fisco a ter acesso a informações bancárias sem autorização judicial, é compatível com a CF/88?
SIM. Em 2016, o STF decidiu que o art. 6º da LC 105/2001 é CONSTITUCIONAL.

Mas o art. 6º não representa uma "quebra de sigilo bancário" sem autorização judicial?
NÃO. O STF entendeu que esse repasse das informações dos bancos para o Fisco não pode ser chamado de “quebra de sigilo bancário”. Isso porque as informações são passadas para o Fisco (ex: Receita Federal) em caráter sigiloso e permanecem de forma sigilosa na Administração Tributária. Logo, é uma tramitação sigilosa entre os bancos e o Fisco e, por não ser acessível a terceiros, não pode ser considerado violação (quebra) do sigilo.
Assim, repito, na visão do STF, o que o art. 6º da LC 105/2001 faz não é quebra de sigilo bancário, mas somente a “transferência de sigilo” dos bancos ao Fisco. Os dados, até então protegidos pelo sigilo bancário, prosseguem protegidos pelo sigilo fiscal.
Para o STF, o simples fato de o Fisco ter acesso aos dados bancários do contribuinte não viola a garantia do sigilo bancário. Só haverá violação se esses dados “vazarem” para pessoas estranhas ao órgão fazendário. Aí sim haveria quebra do sigilo bancário por ter sido exposta a intimidade do contribuinte para terceiros. Em casos de vazamento, a LC 105/2001 prevê punições ao responsável, que estará sujeito à pena de reclusão, de 1 a 4 anos, mais multa, além de responsabilização civil, culminando com a perda do cargo (art. 10).

Outros argumentos levantados pelos Ministros para considerarem o art. 6º constitucional:
• O sigilo bancário não é absoluto e deve ceder espaço ao princípio da moralidade nas hipóteses em que transações bancárias indiquem ilicitudes.
• A LC 100/2001 é um instrumento para fiscalizar o dever fundamental do contribuinte de pagar tributos. O dever fundamental de pagar tributos está alicerçado na ideia de solidariedade social. Assim, dado que o pagamento de tributos, no Brasil, seria um dever fundamental — por representar o contributo de cada cidadão para a manutenção e o desenvolvimento de um Estado que promove direitos fundamentais —, é preciso que sejam adotados mecanismos efetivos de combate à sonegação fiscal.
• A prática prevista na LC 105/2001 é comum em vários países desenvolvidos e a declaração de inconstitucionalidade do dispositivo questionado seria um retrocesso diante dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil para combater ilícitos como a lavagem de dinheiro e evasão de divisas e para coibir práticas de organizações criminosas.
• A identificação de patrimônio, rendimentos e atividades econômicas do contribuinte pela administração tributária dá efetividade ao princípio da capacidade contributiva, que, por sua vez, sofre riscos quando se restringem as hipóteses que autorizam seu acesso às transações bancárias dos contribuintes.
• A LC 105/2001 não viola a CF/88. Isso porque o legislador estabeleceu requisitos objetivos para requisição de informação pela administração tributária às instituições financeiras e exigiu que, quando essas informações chegassem ao Fisco, ali mantivessem o dever de sigilo. Com efeito, o parágrafo único do art. 6º preconiza que o resultado dos exames, as informações e os documentos deverão ser conservados em sigilo, observada a legislação tributária. Assim, não há ofensa a intimidade ou qualquer outro direito fundamental, pois a LC 105/2001 não permite a “quebra de sigilo bancário”, mas sim a transferência desse sigilo dos bancos ao Fisco.
• O art. 6º da LC 105/2001 é taxativo e razoável ao facultar o exame de documentos, livros e registros de instituições financeiras somente se houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente.

As Receitas estadual e municipal também poderão requisitar dos bancos informações sobre movimentações bancárias?
SIM. Se você ler novamente o art. 6º da LC 105/2001, irá observar que o dispositivo fala que estão autorizados a requisitar as informações bancárias as autoridades e agentes fiscais tributários não apenas da União (Receita Federal), mas também dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
Assim, as Receitas estadual e municipal (Secretarias de Fazenda estadual e municipal) também poderão requisitar dos bancos, sem autorização judicial, informações sobre movimentações bancárias sem que isso configure quebra do sigilo bancário.
Vale ressaltar, no entanto, que, para que os Estados, DF e Municípios possam fazer uso dessa prerrogativa prevista no art. 6º da LC 105/2001, eles precisarão, antes, editar um ato normativo que regulamente e traga, com detalhes, todas as regras operacionais para aplicação do dispositivo legal.
Neste regulamento deverão ser previstos sistemas adequados de segurança e registros de acesso para evitar a manipulação indevida dos dados, garantindo-se ao contribuinte a transparência do processo.
A Receita Federal, atualmente, já pode requisitar tais informações bancárias porque possui esse regulamento. Trata-se do Decreto 3.724/2001, que "regulamenta o art. 6º da Lei Complementar nº 105, de 10 de janeiro de 2001, relativamente à requisição, acesso e uso, pela Secretaria da Receita Federal, de informações referentes a operações e serviços das instituições financeiras e das entidades a elas equiparadas."
Portanto, os Estados, DF e Municípios também poderão requisitar informações de instituições bancárias relativas a seus clientes. Para isso, no entanto, repito, precisarão editar o mencionado regulamento, além de só poderem fazer essa requisição se houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais dados forem considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente.

Resumindo o que decidiu o STF em 2016:
As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios podem requisitar diretamente das instituições financeiras informações sobre as movimentações bancárias dos contribuintes. Esta possibilidade encontra-se prevista no art. 6º da LC 105/2001, que foi considerada constitucional pelo STF. Isso porque esta previsão não se caracteriza como “quebra” de sigilo bancário, ocorrendo apenas a “transferência de sigilo” dos bancos ao Fisco.
Vale ressaltar que os Estados-Membros e os Municípios somente podem obter as informações previstas no art. 6º da LC 105/2001, uma vez regulamentada a matéria de forma análoga ao Decreto Federal nº 3.724/2001, observados os seguintes parâmetros:
a) pertinência temática entre a obtenção das informações bancárias e o tributo objeto de cobrança no procedimento administrativo instaurado;
b) prévia notificação do contribuinte quanto à instauração do processo e a todos os demais atos, garantido o mais amplo acesso do contribuinte aos autos, permitindo-lhe tirar cópias, não apenas de documentos, mas também de decisões;
c) sujeição do pedido de acesso a um superior hierárquico;
d) existência de sistemas eletrônicos de segurança que fossem certificados e com o registro de acesso; e, finalmente,
e) estabelecimento de mecanismos efetivos de apuração e correção de desvios.
STF. Plenário. ADI 2390/DF, ADI 2386/DF, ADI 2397/DF e ADI 2859/DF, Rel. Min. Dias Toffoli, julgados em 24/2/2016 (Info 815).
STF. Plenário. RE 601314/SP, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 24/2/2016 (repercussão geral) (Info 815).

É LEGÍTIMO O COMPARTILHAMENTO DOS DADOS OBTIDOS PELA RECEITA FEDERAL COM MINISTÉRIO PÚBLICO MESMO SEM AUTORIZAÇÃO JUDICIAL?
Em 2019, o STF debateu um desdobramento do tema acima explicado. O debate jurídico travado foi agora o seguinte: é possível que as informações bancárias obtidas pelo Fisco sem autorização judicial sejam compartilhadas com o Ministério Público para serem utilizadas em processos criminais?
Vamos entender melhor este tema voltando ao nosso exemplo.
Samuel era sócio administrador de uma empresa.
A Receita Federal instaurou procedimento fiscal contra a sociedade empresária sob a suspeita de que estaria havendo sonegação de tributos.
No curso do procedimento, a Receita, sem autorização judicial, requisitou diretamente do banco os extratos com as movimentações bancárias da empresa (art. 6º da LC nº 105/2001).
De posse dos extratos, o Fisco constatou que realmente houve sonegação de tributos e, por conta disso, autuou a pessoa jurídica e fez a constituição definitiva do crédito tributário. Até aqui temos apenas um processo administrativo-tributário (cobrança de tributos e multas).
Ocorre que a Receita Federal, após o procedimento administrativo e constituição do débito tributário, encaminhou, ao Ministério Público Federal, uma “Representação Fiscal Para Fins Penais (RFFP)”, com os dados regularmente obtidos no curso da fiscalização e remetidos em caráter sigiloso pelo banco.
Vale ressaltar que é um dever da Receita encaminhar as representações fiscais para fins penais ao Ministério Público, se constatada possível prática de ilícito penal, conforme prevê o art. 83 da Lei nº 9.430/96:
Art. 83. A representação fiscal para fins penais relativa aos crimes contra a ordem tributária previstos nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e aos crimes contra a Previdência Social, previstos nos arts. 168-A e 337-A do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), será encaminhada ao Ministério Público depois de proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente.

O Procurador da República, com base nesses elementos informativos, denunciou Samuel como incurso no crime do art. 1º, I, da Lei nº 8.137/90 (sonegação fiscal):
Art. 1º Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:
I - omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias;
(...)
Pena - reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

Ao se defender, Samuel sustentou a ilicitude da prova colhida (extratos bancários) alegando que teria havido uma quebra de sigilo bancário sem autorização judicial.
Desse modo, esses dados não poderiam ser utilizados pelo Ministério Público no processo penal.

Desde 2016, não havia mais dúvidas de que o Fisco pode requisitar diretamente as informações bancárias. Isso está previsto no art. 6º da LC 105/2001 e foi considerado constitucional pelo STF. A dúvida, como já dito, era a seguinte: esses dados podem ser compartilhados com o Ministério Público para serem utilizados em processos criminais?
SIM. Em 2019, o STF pacificou que é legítimo que a Receita Federal compartilhe o procedimento fiscalizatório que ela realizou para apuração do débito tributário com os órgãos de persecução penal para fins criminais (Polícia Federal, Ministério Público etc.), não sendo necessário, para isso, prévia autorização judicial.
STF. Plenário. RE 1055941/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 4/12/2019 (repercussão geral – Tema 990) (Info 962).

Garantia constitucional do sigilo não é absoluta
A Constituição Federal garante a inviolabilidade da intimidade e da vida privada (art. 5º, X) e a inviolabilidade de dados (art. 5º, XII). Como decorrência dessas garantias, o texto constitucional protege os dados financeiros, o sigilo bancário e o sigilo fiscal. Entretanto, essa garantia não é absoluta.
Seja no direito constitucional brasileiro, seja no direito comparado, os direitos fundamentais não podem servir como escudo protetivo à prática de atividades ilícitas, de atividades criminosas. Não é essa a finalidade das garantias individuais, das liberdades públicas.
Em virtude de não se permitir um desvio de finalidade, não há mais dúvidas de que existe a possibilidade de relativização dessas inviolabilidades se existirem situações excepcionais, razoáveis e proporcionais.

Relatividade dos direitos fundamentais é prevista em documentos internacionais
A proteção lícita do exercício dos direitos fundamentais é prevista na Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU). Em seu art. XXIX, o documento afirma tanto a finalidade quanto a relatividade dos direitos individuais.
Na finalidade, sujeita o exercício dos direitos e liberdades individuais às limitações estabelecidas pela lei.

Restrições excepcionais às liberdades públicas são constitucionais
Diante desse caráter relativo, pode-se concluir que não existe inconstitucionalidade na previsão de excepcionais restrições às liberdades públicas, inclusive à intimidade, à vida privada e ao sigilo de dados, desde que a finalidade seja garantir direitos e liberdades dos demais membros da sociedade às justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática.
A excepcional relativização das liberdades públicas, dentro de critérios razoáveis, é possível no âmbito dos três Poderes, salvo quando exista expressamente cláusula de reserva jurisdicional, que não é a situação em apreço.
No caso do sigilo financeiro, principalmente, há uma finalidade internacional da defesa da probidade, combate à criminalidade organizada e à corrupção.

O raciocínio jurídico construído na decisão do STF de 2016 pode ser aplicado aqui
O STF, ao julgar, em 24/02/2016, as ADIs 2390, 2386, 2397 e 2859 e o RE 601314/SP, declarou ser possível à Receita o acesso a dados genéricos e, se houver indícios de irregularidades e presentes os pressupostos legais, a instituição de procedimento fiscalizatório, admitida a quebra do sigilo fiscal e bancário, para verificar se há ou não ilicitude.
Naquela ocasião, o STF entendeu que a previsão do art. 6º da LC 105/2001, que relativizava o sigilo financeiro e o sigilo de dados, atendia aos requisitos de excepcionalidade, razoabilidade e proporcionalidade.
Cumpridos os padrões internacionais, esse compartilhamento, mecanismo de inteligência financeira, tinha dupla finalidade: evitar o descumprimento de normas tributárias e combater práticas criminosas.

A atuação da Receita Federal ocorre em dois estágios
A atuação da Receita Federal, nestes casos, ocorre em dois estágios importantes e sequenciais:
Primeiro estágio
Previsto no art. 5º da LC 105/2001
É a possibilidade de acesso às operações bancárias limitado aos dados genéricos e cadastrais dos correntistas, vedada a inclusão de qualquer elemento que permita identificar a origem ou natureza dos gastos efetuados.
É um acesso amplo ou sistêmico.
Se, desses dados genéricos, surgirem informações indicativas da prática de um ilícito tributário, passa-se ao segundo estágio.
Segundo estágio
Previsto no art. 5º, § 4º, e art. 6º da LC 105/2001
Há um acesso incidental.
Aqui, a Receita, após instaurar um procedimento específico, poderá requisitar as informações e os documentos necessários, realizar fiscalização e auditoria para a apuração dos fatos.
Conforme já explicado, é preciso haver a instauração de procedimento administrativo fiscal por ordem de superior hierárquico e com prévia intimação do contribuinte. Se não o instaurar, a Receita não poderá quebrar o sigilo.
Para evitar-se abusos, há normas que disciplinam com rigor o procedimento.
Percentualmente, o número de procedimentos que chegam ao segundo estágio é muito pequeno.

Por que é importantíssimo destacar a existência dessa sequência?
Porque, para chegar até o Ministério Público, vai ter que passar pelo primeiro estágio, vai ter que passar pelo segundo estágio.
Nesse segundo estágio, faz-se um filtro, e só o que for imprescindível é que pode ou não ser compartilhado com o Ministério Público.
De um mar de informações e de cruzamento de dados, no primeiro estágio, há um funil estreito para o segundo estágio, que é o acesso amplo e sistêmico. E mesmo desse, poucos casos irão ao Ministério Público, porque, muitos casos são de informações errôneas ou omissão não dolosa que o contribuinte corrige imediatamente. Ou seja, o funil é gigantesco do primeiro para o segundo estágio; e, também, é grande do segundo estágio para o compartilhamento para fins penais.
E esse segundo estágio só ocorre se houver anomalia no cruzamento de dados genéricos.

Trata-se de prova emprestada
Não permitir a informação da íntegra do procedimento fiscalizatório, com todos os dados fiscais e bancários a partir dos quais verificada a materialidade e indícios de autoria, vai contra o mecanismo legal de relativização.
Não há sentido em se produzir prova lícita, obtida de acordo com a Constituição e a legislação, e não permitir o compartilhamento com o titular da ação penal, que é outro órgão de fiscalização.
O compartilhamento dessa prova, obtida mediante procedimento regular, nada mais é que típica prova emprestada, lícita. Somente serão enviadas as informações imprescindíveis. Deverá ser encaminhada a prova lícita, produzida durante o procedimento que ensejou o lançamento definitivo do tributo e trouxe indícios de autoria de um crime material contra a ordem tributária. Isso porque apenas a partir do lançamento definitivo, conforme o Enunciado 24 da Súmula Vinculante do STF, a materialidade do delito fica constatada. Relembre:
Súmula vinculante 24-STF: Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no artigo 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo.

Receita pode enviar a integralidade do procedimento
A Receita pode enviar tudo — dados, provas, informações — que a fez chegar ao lançamento definitivo do tributo e embasá-lo, por ser necessário à constituição da materialidade na infração penal. O restante, como já é feito, ou se devolve ao contribuinte ou se destrói.
Eventual excesso, qualquer desvio formal ou material dessa atuação, deve ser combatido e poderá ser afastado pelo Poder Judiciário. O que se está dizendo é que não há inconstitucionalidade ou ilegalidade no compartilhamento entre Receita e Ministério Público das provas e dados imprescindíveis à conformação e ao lançamento do tributo.




É LEGÍTIMO O COMPARTILHAMENTO DOS RELATÓRIOS DE INTELIGÊNCIA FINANCEIRA COM O MINISTÉRIO PÚBLICO MESMO SEM AUTORIZAÇÃO JUDICIAL?
Antes de prosseguir na explicação do julgado, é importante aprender o que é a chamada UIF?
Unidade de Inteligência Financeira (UIF) é...
- um órgão vinculado administrativamente ao Banco Central
- mas com autonomia técnica e operacional
- sendo responsável por produzir e gerir informações de inteligência financeira que sirvam para prevenir e combater crimes como lavagem de lavagem de dinheiro, financiamento de terrorismo, financiamento da proliferação de armas de destruição em massa etc.
- sendo também responsável por estabelecer uma interlocução institucional com órgãos e entidades nacionais, estrangeiros e internacionais que tenham conexão com a matéria.

Assim, a Unidade de Inteligência é um grande banco de dados que recebe informações dos bancos, das seguradoras, dos cartórios de registro de imóveis, de joalherias. Em seguida, cruza dados e produz relatórios que poderão ser encaminhados à Receita Federal e aos órgãos de persecução penal em caso de indícios de ilícitos tributários ou de infrações penais.

Antigo COAF
A UIF faz atualmente as mesmas funções que eram desempenhadas pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF). A MP 893/2019 transformou o COAF na Unidade de Inteligência Financeira.
As competências do ex-COAF (atualmente UIF) estão previstas nos arts. 14 e 15 da Lei nº 9.613/98.

Noções gerais sobre a UIF
A UIF recebe informações dos bancos, seguradoras, cartórios, joalherias, cruza os dados e produz relatórios de inteligência. Vale ressaltar que a UIF não checa a veracidade das informações nem abre investigações.
A Lei nº 9.613/98 estabelece as hipóteses em que a UIF deve ser obrigatoriamente comunicada. São as que saem do normal do sistema financeiro, do sistema bancário.
A Unidade produz relatórios, informações, não só para estabelecer na via administrativa e legislativa novos mecanismos de prevenção, mas também para punir quem eventualmente estiver praticando atividades ilícitas.
A UIF não pode quebrar o sigilo bancário e fiscal por conta própria. Pode trabalhar a informação, produzir relatório, identificar a irregularidade e mandar para os demais órgãos, como a Receita a o Parquet.

Relatório de inteligência financeira da UIF
A Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei nº 12.683/98) determina, em seu art. 11, que as instituições financeiras e demais pessoas físicas e jurídicas que trabalhem com recursos financeiros, moeda estrangeira, títulos mobiliários etc. (art. 9º) comuniquem ao COAF (atualmente, UIF) qualquer movimentação financeira “suspeita” (“atípica”), ou seja, que ultrapasse determinado valor que é fixado pela autoridade administrativa.
Ex: se uma pessoa faz um depósito ou um saque acima de determinado valor no banco, essa informação (com o nome do indivíduo) é informada à UIF.
Ex2: se uma pessoa compra uma pedra preciosa ou uma joia acima de determinado valor em dinheiro, a joalheria é obrigada a informar essa circunstância à UIF.
A partir disso, a UIF analisa a comunicação recebida com o objetivo de identificar se existe nela algum indício de lavagem de dinheiro, de financiamento do terrorismo ou de outros crimes. Caso seja identifica algum indício de crime, é elaborado um Relatório de Inteligência Financeira (RIF) que é encaminhado às autoridades competentes (Receita Federal, Polícia Federal, Ministério Público Federal).
Segundo explica a UIF, essa análise é realizada por meio de uma metodologia que utiliza critérios objetivos, sendo utilizada a tecnologia de machine learning. Assim, o que determina se a operação financeira realizada será fichada em relatório é a combinação de fatores que compõem a classificação de risco e prioridade, que é realizada por um software de inteligência artificial.
Depois que o RIF é concluído, ele ainda passa por instâncias internas individuais e colegiadas antes que seja autorizada sua difusão para as autoridades competentes.
Sendo aprovado por essas instâncias internas da UIF, o relatório (RIF) é encaminhado à Receita Federal, Polícia Federal ou Ministério Público Federal, conforme seja o caso.
Vale ressaltar que a UIF não faz investigações. Ela apenas coleta, analisa e cruza dados, produzindo um relatório de inteligência (uma espécie de “alerta”) que será encaminhado aos órgãos de persecução penal. Essa atividade, contudo, repito, não é de investigação de infrações penais.

Ampliação do debate para abranger a UIF
No recurso extraordinário examinado pelo STF (RE 1055941/SP) discutia-se uma condenação criminal que utilizou como prova o procedimento fiscalizatório que a Receita Federal encaminhou ao MPF.
Apesar disso, o STF decidiu que o julgamento e a definição da tese deveriam abranger não apenas os procedimentos compartilhados pela Receita Federal, mas também os relatórios encaminhados pela UIF (antigo COAF).
Para a maioria dos Ministros, era importante o exame da possibilidade ou não do compartilhamento nas duas hipóteses (Receita e UIF).
Em ambas as situações (Receita e UIF), o mecanismo de compartilhamento, o destinatário dos dados, a legislação aplicada e os compromissos internacionais são os mesmos. Assim, se o STF não examinasse, na mesma oportunidade, a situação da UIF, isso poderia gerar mais dúvidas do que certeza jurídica.
Ademais, não raras vezes a atuação da Receita começa com informações dadas pela UIF.

A conclusão do STF para o compartilhamento de dados da Receita vale também para os relatórios de inteligência financeira da UIF? A UIF pode, sem autorização judicial, compartilhar com a Polícia e o Ministério Público os relatórios de inteligência financeira para que esses órgãos utilizem tais dados em investigações ou processos criminais?
SIM. O STF, neste mesmo julgamento, aproveitou o debate do tema e fixou a tese de que também é constitucional o compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF com os órgãos de persecução penal para fins criminais, sem a obrigatoriedade de prévia autorização judicial.
STF. Plenário. RE 1055941/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 4/12/2019 (repercussão geral – Tema 990) (Info 962).

Não há inconstitucionalidade na atuação da UIF
A atuação da UIF, de ofício ou a pedido, é apenas nos limites legais. Se um órgão pedir informação, a UIF deve devolver a resposta nos exatos limites que poderia realizar se fosse espontaneamente. Não pode extrapolar e sequer tem poderes para isso.
A UIF irá buscar no banco de dados, que é preexistente e renovado diariamente, verificar e informar o que possui.
Dessa maneira, o ministro vislumbrou inexistir inconstitucionalidade ou ilegalidade na atuação da UIF. seja espontânea, seja em face de eventual pedido.

Qual é a natureza jurídica do relatório de inteligência da UIF?
Tem natureza jurídica equivalente à de “peças de informação”.
“O Código de Processo Penal, genericamente, dá o nome de peças de informações a todo e qualquer conjunto indiciário resultante das atividades desenvolvidas fora do inquérito policial, a exemplo de um procedimento investigatório criminal presidido pelo próprio órgão ministerial, um relatório de comissão parlamentar de inquérito, etc.” (LIMA, Renato Brasileiro. Código de Processo Penal comentado. 2ª ed., Salvador: Juspodivm, 2017, p. 162).

O que o membro do Ministério Público faz ao receber um relatório de inteligência?
O membro do MP, ao receber um relatório de inteligência, poderá adotar três providências principais:
1) entender que já existem indícios suficientes de autoria e materialidade e oferecer denúncia;
2) instaurar procedimento de investigação criminal (PIC) ou requisitar inquérito policial para complementar as informações trazidas pelo relatório;
3) pedir o arquivamento dessas peças de informação, caso repute que o relatório de inteligência não contém indícios de crimes, nos termos do art. 28 do CPP:
Art. 28.  Se o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a denúncia, requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará remessa do inquérito ou peças de informação ao procurador-geral, e este oferecerá a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a atender.

Assim, o relatório de inteligência que é enviado ao Ministério Público deve receber o mesmo tratamento de qualquer peça de informação. Do contrário, o controle jurisdicional do sistema acusatório previsto no CPP estaria sendo ferido.

Qual é o valor probante do relatório de inteligência financeira?
O STF decidiu não fixar, neste julgamento, o valor probante do relatório de inteligência financeira, ou seja, se seria possível condenar apenas com base nele ou se ele seria apenas um meio de obtenção de provas.
Conforme explicou o Min. Alexandre de Moraes, em seu voto:
“(...) não seria o caso de fixarmos, desde já, taxativamente o valor probante dos relatórios de inteligência. Não me parece possível afirmar taxativamente que os relatórios de inteligência seriam somente meio de obtenção de prova, porque, nas informações e dados, pode haver prova documental que foi enviada à UIF e que, deverá ser livremente valorada pelo magistrado, de acordo com sua convicção. Faço, portanto, essa ressalva.”

Em suma, as teses fixadas pelo STF a respeito do tema foram as seguintes:
1. É constitucional o compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil (RFB), que define o lançamento do tributo, com os órgãos de persecução penal para fins criminais, sem a obrigatoriedade de prévia autorização judicial, devendo ser resguardado o sigilo das informações em procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional.
2. O compartilhamento pela UIF e pela RFB, referente ao item anterior, deve ser feito unicamente por meio de comunicações formais, com garantia de sigilo, certificação do destinatário e estabelecimento de instrumentos efetivos de apuração e correção de eventuais desvios.
STF. Plenário. RE 1055941/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 4/12/2019 (repercussão geral – Tema 990) (Info 962).



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