Imagine a seguinte situação adaptada:
A “Unidas Rent a Car”, empresa
locadora de veículos, alugou um carro para João.
Com esse veículo, João foi
dirigindo até o Paraguai e, de lá, trouxe na mala diversos produtos importados,
sem pagar o imposto de importação. Além disso, trouxe também cigarros
importados de comercialização proibida no Brasil.
João foi denunciado e condenado
pela prática de descaminho e contrabando.
O que aconteceu com o
veículo utilizado pelo agente para o transporte dos cigarros e demais produtos
importados?
A Receita
Federal reteve o veículo e decretou o seu perdimento em favor da União, invocando
o art. 96, I do Decreto-lei nº 37/66:
Art. 96. As infrações estão sujeitas
às seguintes penas, aplicáveis separada ou cumulativamente:
I - perda do veículo transportador;
(...)
Para a Receita, a locadora deve
investigar os antecedentes dos locatários para verificar se já responderam por
contrabando ou descaminho e, se não o faz, pode ser responsabilizada pelo ato.
Obs: o Decreto-lei prevê, dentre
outros temas, sanções administrativas para quem praticar infrações à legislação
do imposto de importação.
Mandado de segurança
A empresa impetrou mandado de
segurança alegando que é uma empresa locadora de veículos e que, em sua
atividade empresarial, não tem como controlar o que o locatário irá fazer com o
carro.
Argumentou, ainda, que não teve
qualquer participação no crime praticado pelo locatário, não podendo ser por
ele responsabilizada.
Pediu, portanto, a liberação do
veículo.
O STJ acolheu o pedido da
empresa?
SIM.
Só a lei pode prever a
responsabilidade pela prática de atos ilícitos e estipular penalidades.
De fato, o
Decreto-Lei nº 37/66 (que tem força de lei) prevê a possibilidade de ser
decretado o perdimento do veículo utilizado para iludir o pagamento do imposto
de importação:
Art. 94. Constitui infração toda ação
ou omissão, voluntária ou involuntária, que importe inobservância, por parte da
pessoa natural ou jurídica, de norma estabelecida neste Decreto-Lei, no seu
regulamento ou em ato administrativo de caráter normativo destinado a
completá-los.
Art. 96. As infrações estão sujeitas
às seguintes penas, aplicáveis separada ou cumulativamente:
I - perda do veículo transportador;
II - perda da mercadoria;
III - multa;
IV - proibição de transacionar com
repartição pública ou autárquica federal, empresa pública e sociedade de
economia mista.
Perdimento do veículo só
pode ocorrer se ele pertencia ao responsável pela infração
O art. 104 do
DL 37/66 detalha as hipóteses de perdimento do veículo. No caso de transporte
de mercadoria objeto de contrabando ou descaminho, a legislação exige, para que
haja o perdimento, que o proprietário do veículo seja responsável pela
infração:
Art. 104. Aplica-se a pena de perda do
veículo nos seguintes casos:
(...)
V - quando o veículo conduzir
mercadoria sujeita à pena de perda, se pertencente ao responsável por infração
punível com aquela sanção;
O art. 688 do
Decreto nº 6.759/2009 (Regulamento Aduaneiro) vai no mesmo sentido:
Art. 688. Aplica-se a pena de
perdimento do veículo nas seguintes hipóteses, por configurarem dano ao Erário
(Decreto-Lei nº 37, de 1966, art. 104; Decreto-Lei nº 1.455, de 1976, art. 24;
e Lei nº 10.833, de 2003, art. 75, § 4º):
(...)
V - quando o veículo conduzir
mercadoria sujeita a perdimento, se pertencente ao responsável por infração
punível com essa penalidade;
(...)
§ 2º Para efeitos de aplicação do
perdimento do veículo, na hipótese do inciso V, deverá ser demonstrada, em
procedimento regular, a responsabilidade do proprietário do veículo na prática
do ilícito.
Interpretando esses dispositivos,
o STJ entendeu que a pena de perdimento do veículo só pode ser aplicada ao
proprietário do veículo quando este agir com dolo ao fazer a internalização
irregular de sua própria mercadoria.
Nesse contexto, em regra, a
empresa que aluga veículos não pode sofrer a pena de perdimento em razão de
ilícito praticado pelo condutor-locatário, salvo se tiver participação no ato
ilícito para internalização de mercadoria própria.
O fato de a locadora não ter
investigado os “antecedentes” do cliente não pode ser usado como argumento para
se concluir pela responsabilidade da empresa.
Em suma:
É ilegal a pena de perdimento do veículo pela
locadora que não teve participação no crime de contrabando e/ou descaminho.
STJ. 1ª Turma. REsp 1.817.179-RS, Rel. Min. Gurgel de Faria,
julgado em 17/09/2019 (Info 658).
CUIDADO
Existem julgados do STJ afirmando
que a pena de perdimento pode ser aplicada a veículos sujeitos a leasing ou
alienação fiduciária:
É possível a aplicação da pena de perdimento de veículo objeto
de contrato de arrendamento mercantil com cláusula de aquisição ao seu término
utilizado pelo arrendatário para transporte de mercadorias objeto de descaminho
ou contrabando.
STJ. 1ª Turma. REsp 1268210-PR, Rel. Min. Benedito Gonçalves,
julgado em 21/2/2013 (Info 517).
A jurisprudência do Superior Tribunal
de Justiça é dominante no sentido de permitir a aplicação da sanção de
perdimento de veículo automotor objeto de alienação fiduciária ou arrendamento
mercantil (leasing), independentemente da valoração sobre a boa-fé do credor
fiduciário ou arrendante.
A aplicação da aludida sanção
administrativa não possui o condão de anular os respectivos contratos de alienação
fiduciária em garantia ou arrendamento mercantil efetuados entre credor e
devedor, os quais possuem o direito de discutir, posteriormente, os efeitos
dessa perda na esfera civil.
STJ. 2ª Turma. REsp 1628038/SP, Rel.
Min. Francisco Falcão, julgado em 05/11/2019.