Imagine a seguinte situação
hipotética:
João e Pedro disputam, há cerca
de 39 anos, uma grande Fazenda.
Nesse período, Pedro já propôs
quase 10 ações judiciais contra João questionando a posse e propriedade do
imóvel.
Todas as ações foram julgadas
improcedentes e restou demonstrado que as demandas eram desprovidas de
fundamentação idônea.
Depois disso, João ajuizou ação
de reparação de danos materiais e morais contra Pedro, alegando que o réu
praticou contra ele “atos de assédio processual” que teriam, por consequência,
privado o autor, por décadas, de usar, dispor e fruir da propriedade familiar
de que é herdeiro.
O pedido de João encontra
amparo no ordenamento jurídico? É possível, em tese, reconhecer a prática de
ato ilícito em um caso semelhante a esse?
SIM. O abuso do direito de ação
ou do direito de defesa pode configurar o chamado “assédio processual”,
configurando ato ilícito.
Vamos entender.
Abuso de direito
A figura do
abuso de direito é mais conhecida e estudada no Brasil sob a perspectiva do
direito material e, sobretudo, no âmbito do direito privado. O instituto é
definido pelo art. 187 do Código Civil:
Art. 187. Também comete ato ilícito o
titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites
impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Vale ressaltar, no entanto, que,
embora não seja da tradição do direito processual civil brasileiro, é
admissível o reconhecimento da existência do ato ilícito de abuso processual,
tais como o abuso do direito fundamental de ação ou de defesa, não apenas em
hipóteses previamente tipificadas na legislação, mas também quando configurada
a má utilização dos direitos fundamentais processuais.
Nem todo abuso do direito
de ação está tipificado nos arts. 77 a 81 do CPC/2015
Quando se fala em punição por ato
abusivo no processo judicial, imediatamente se pensa nos arts. 77 a 81 do
CPC/2015, que tratam sobre os deveres e as responsabilidades das partes por
dano processual.
Ocorre que não se pode afirmar
que todas as descomposturas, chicanas e tramoias processuais estão apenas ali
elencadas.
Sham litigation
É no direito anglo-saxão, mais
especificamente nos precedentes formados nos Estados Unidos da América, que encontramos
fundamentos sólidos para se coibir o abusivo exercício do direito de peticionar
e de demandar. Trata-se da proibição daquilo que se convencionou chamar de sham
litigation.
Mas o que é o sham
litigation?
“Prática conhecida nos Estados
Unidos, a expressão Sham Litigation pode ser compreendida como ‘litigância
simulada’. Trata-se de ação ou conjunto de ações promovidas junto ao Poder
Judiciário, que não possuem embasamento sólido, fundamentado e potencialidade
de sucesso, com o objetivo central e disfarçado de prejudicar algum concorrente
direto do impetrante, causando-lhe danos e dificuldades de ordem financeira,
estrutural e reputacional.” (CORRÊA, Rogério. Você sabe o que é Sham
Litigation? Disponível em: https://sollicita.com.br/Noticia/?p_idNoticia=13665&n=voc%C3%AA-sabe-o-que-%C3%A9-sham-litigation?
Acesso em 04/12/2019)
Na jurisprudência da Suprema
Corte norte-americana, podemos encontrar precedentes dizendo que se a parte
ingressa com inúmeros processos infundados e repetitivos, isso é um forte
indício de abuso de direito, razão pela qual essa conduta não está albergada
pela imunidade constitucional ao direito de peticionar (California Motor
Transport Co. v. Trucking Unlimited, 404 U.S. 508, 1972).
Vale ressaltar que a doutrina da sham
litigation se formou e consolidou com mais força no âmbito do direito
concorrencial. A despeito disso, o raciocínio ali construído pode ser utilizado
para se reconhecer e se reprimir também o abuso do direito de ação.
Abuso do direito de ação é
excepcional
É importante, ressaltar, contudo,
que o reconhecimento do eventual abuso do direito ação deve ser sempre
excepcional. Isso porque o acesso à justiça é um direito fundamental intimamente
ligado ao Estado Democrático de Direito.
Logo, esse abuso deve ser
reconhecido apenas quando isso estiver caracterizado estreme de dúvidas, ou
seja, de forma muito explícita, sem contradições.
Em suma:
O ajuizamento de sucessivas ações judiciais,
desprovidas de fundamentação idônea e intentadas com propósito doloso, pode
configurar ato ilícito de abuso do direito de ação ou de defesa, o denominado
assédio processual.
STJ. 3ª Turma. REsp 1.817.845-MS, Rel. Min. Paulo de Tarso
Sanseverino, Rel. Acd. Min. Nancy Andrighi, julgado em 10/10/2019 (Info 658).