sexta-feira, 29 de novembro de 2019
STJ admite a intervenção da Defensoria Pública como custos vulnerabilis
sexta-feira, 29 de novembro de 2019
NOÇÕES GERAIS
SOBRE CUSTOS VULNERABILIS
Em que consiste o custos vulnerabilis?
Custos vulnerabilis significa “guardiã dos vulneráveis” (“fiscal
dos vulneráveis”).
Enquanto o Ministério Público
atua como custos legis (fiscal ou
guardião da ordem jurídica), a Defensoria Pública possui a função de custos vulnerabilis.
Na definição
de Maurílio Casas Maia, maior especialista sobre o tema no Brasil,
“‘custos
vulnerabilis’ representa uma forma interventiva da Defensoria Pública em nome
próprio e em prol de seu interesse institucional (constitucional e legal) –
atuação essa subjetivamente vinculada aos interesses dos vulneráveis e
objetivamente aos direitos humanos – representando a busca democrática do
progresso jurídico-social das categorias mais vulneráveis no curso processual e
no cenário jurídico-político” (Legitimidades institucionais no Incidente de Resolução
de Demandas Repetitivas (IRDR) no Direito do Consumidor: Ministério Público e
Defensoria Pública: similitudes & distinções, ordem & progresso.
Revista dos Tribunais. vol. 986. ano 106. págs. 27-61. São Paulo: Ed. RT, dezembro
2017, p. 45).
Cassio Scarpinella
Bueno esclarece que:
“A expressão
'custos vulnerabilis', cujo emprego vem sendo defendido pela própria Defensoria
Pública, é pertinente para descrever o entendimento aqui robustecido. Seu
emprego e difusão têm a especial vantagem de colocar lado a lado – como deve
ser em se tratando de funções essenciais à administração da justiça – esta
modalidade interventiva a cargo da Defensoria Pública e a tradicional do
Ministério Público.
O 'fiscal dos
vulneráveis', para empregar a locução no vernáculo, ou, o que parece ser mais
correto diante do que corretamente vem sendo compreendido sobre a legitimidade
ativa da Defensoria Pública no âmbito do 'direito processual coletivo', o
'fiscal dos direitos vulneráveis', deve atuar, destarte, sempre que os direitos
e/ou interesses dos processos (ainda que individuais) justifiquem a oitiva (e a
correlata consideração) do posicionamento institucional da Defensoria Pública,
inclusive, mas não apenas, nos processos formadores ou modificadores dos
indexadores jurisprudenciais, tão enaltecidos pelo Código de Processo Civil.
Trata-se de fator de legitimação decisória indispensável e que não pode ser
negada a qualquer título.” (Curso sistematizado de direito processual civil,
vol. 1: teoria geral do direito processual civil: parte geral do código de processo
civil. 9ª edição. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 219).
Assim, segundo a tese da
Instituição, em todo e qualquer processo onde se discuta interesses dos
vulneráveis seria possível a intervenção da Defensoria Pública,
independentemente de haver ou não advogado particular constituído.
Quando a Defensoria Pública atua
como custos vulnerabilis, a sua participação processual ocorre não como
representante da parte em juízo, mas sim como protetor dos interesses dos
necessitados em geral.
No âmbito das
execuções penais, a Defensoria Pública argumenta que, desde 2010, existe
previsão expressa na Lei nº 7.210/84 autorizando a intervenção da Instituição
como custos vulnerabilis:
Art. 81-A. A Defensoria Pública velará
pela regular execução da pena e da medida de segurança, oficiando, no processo
executivo e nos incidentes da execução, para a defesa dos necessitados em todos
os graus e instâncias, de forma individual e coletiva. (Incluído pela Lei nº 12.313/2010).
No âmbito
cível, especificamente no caso das ações possessórias, o art. 554, § 1º do CPC
é exemplo de intervenção custos
vulnerabilis:
Art. 554. (...)
§ 1º No caso de ação possessória em
que figure no polo passivo grande número de pessoas, serão feitas a citação
pessoal dos ocupantes que forem encontrados no local e a citação por edital dos
demais, determinando-se, ainda, a intimação do Ministério Público e, se
envolver pessoas em situação de hipossuficiência econômica, da Defensoria
Pública.
Vale
ressaltar que as duas previsões acima são exemplificativas, admitindo-se a
intervenção defensoral como custos
vulnerabilis em outras hipóteses. A Defensoria Pública defende, inclusive,
que essa intervenção pode ocorrer mesmo em casos nos quais não há
vulnerabilidade econômica, mas sim vulnerabilidade social, técnica,
informacional, jurídica. É o caso, por exemplo, dos consumidores, das crianças
e adolescentes, dos idosos, dos indígenas etc. Veja o que diz o ECA:
Art. 141. É garantido o acesso de toda criança ou adolescente à
Defensoria Pública, ao Ministério Público e ao Poder Judiciário, por
qualquer de seus órgãos.
Assim, nos casos de outras
espécies de vulnerabilidades, não importa se estamos tratando de pessoas
economicamente necessitadas. As outras formas de vulnerabilidades já
justificariam a intervenção do órgão na causa.
Como é a atuação do custos
vulnerabilis?
A intervenção defensorial custos vulnerabilis tem o objetivo de
trazer para os autos argumentos, documentos e outras informações que reflitam o
ponto de vista das pessoas vulneráveis, permitindo que o juiz ou tribunal tenha
mais subsídios para decidir a causa. É uma atuação da Defensoria Pública para
que a voz dos vulneráveis seja amplificada.
O custos vulnerabilis é o mesmo
que amicus curiae?
NÃO. Vejamos as principais diferenças:
Amicus curiae
(“amigo
do Tribunal”)
|
Custos vulnerabilis
(“guardiã
dos vulneráveis”)
|
Pode intervir como amicus curiae qualquer pessoa natural
ou jurídica, órgão ou entidade especializada, com representatividade
adequada.
|
Somente a Defensoria Pública
pode intervir como custos vulnerabilis.
|
Em regra, admite-se a
intervenção do amicus curiae em
qualquer tipo de processo, desde que:
a) a causa tenha relevância; e
b) a pessoa tenha capacidade de
oferecer contribuição ao processo.
|
Admite-se a intervenção do
custos vulnerabilis em qualquer processo no qual estejam sendo discutidos
interesses de vulneráveis.
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Em regra, o amicus curiae não pode recorrer.
Exceção 1: o amicus curiae pode opor embargos de
declaração em qualquer processo que intervir (art. 138, § 1º do CPC/2015).
Exceção 2: o amicus curiae pode recorrer da decisão
que julgar o incidente de resolução de demandas repetitivas (art. 138, § 3º
do CPC/2015).
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O custos vulnerabilis pode interpor qualquer espécie de recurso.
|
Em sentido semelhante, apontando
outros aspectos: ROCHA, Jorge Bheron. A Defensoria como custös vulnerabilis e a advocacia privada. Disponível em https://www.conjur.com.br/2017-mai-23/tribuna-defensoria-defensoria-custos-vulnerabilis-advocacia-privada
Para aprofundar
Se você desejar aprofundar os
estudos sobre Custos Vulnerabilis, recomendo o livro de Maurílio Casas
Maia, Edilson Santana Gonçalves Filho e Jorge Bheron Rocha: CUSTOS
VULNERABILIS: A Defensoria Pública e o equilíbrio nas relações
político-jurídicas dos vulneráveis. Editora CEI.
CASO CONCRETO
NO QUAL O STJ RECONHECEU O INSTITUTO
Plano de saúde e medicamento
importado não registrado pela ANVISA
A 2ª Seção do STJ afetou ao rito
dos recursos especiais repetitivos a discussão do seguinte assunto (Tema 990): as
operadoras de plano de saúde estão obrigadas a fornecer medicamento importado,
não registrado pela ANVISA?
Isso significa que existiam
vários recursos especiais tratando sobre esse assunto e o STJ escolheu um deles
para definir a tese jurídica aplicável ao tema e aplicar essa mesma tese para
todos os processos idênticos que estavam aguardando posicionamento.
Neste rito dos recursos
repetitivos, devido à relevância da discussão envolvida, o STJ aceita a
intervenção de órgãos e entidades que, mesmo sem serem partes, trazem aos autos
suas contribuições jurídicas na qualidade de amicus curiae.
Quando o Tema 990 foi afetado, os
seguintes órgãos e entidades pediram para participar das discussões: a União, a
Federação Nacional de Saúde Suplementar (FENASAÚDE), a Agência Nacional de
Saúde Suplementar (ANS), o Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS) e a
Defensoria Pública da União (DPU).
O STJ aceitou a participação
desses órgãos e entidades, afirmando, contudo, que eles estavam intervindo na
qualidade de amicus curiae.
Embargos de declaração
A DPU opôs embargos de declaração
afirmando que pediu a sua intervenção como custos vulnerabilis (e não
como amicus curiae) requerendo, portanto, que isso fosse expressamente
admitido.
Justificou dizendo que, ao ser
admitida como custos vulnerabilis, ela poderia interpor todo e qualquer
recurso.
Defendeu a sua legitimidade para
intervir em demandas que possam surtir efeitos nas esferas das pessoas ou
grupos de necessitados, mesmo em casos nos quais não há vulnerabilidade
econômica, mas sim vulnerabilidade social, técnica, informacional, jurídica.
O STJ concordou com os
embargos de declaração da DPU?
SIM.
Admite-se a intervenção da Defensoria Pública da
União no feito como custos vulnerabilis nas hipóteses em que há formação
de precedentes em favor dos vulneráveis e dos direitos humanos.
STJ. 2ª Seção. EDcl no REsp 1.712.163-SP, Rel. Min. Moura Ribeiro,
julgado em 25/09/2019 (Info 657).
A Defensoria Pública, nos termos
do art. 134 da CF/88, é instituição permanente, essencial à função
jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime
democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos
humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos
individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na
forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal.
Assim, a Defensoria Pública, com
fundamento no art. 134 da CF/88, e no seu intento de assegurar a promoção dos
direitos humanos e a defesa de forma integral, deve, sempre que o interesse jurídico
justificar a oitiva do seu posicionamento institucional, atuar nos feitos que
discutem direitos e/ou interesses, tanto individuais quanto coletivos, para que
sua opinião institucional seja considerada, construindo assim uma decisão
jurídica mais democrática.
Mais uma vez
recorrendo à Cassio Scarpinella Bueno:
(...) com base
na missão institucional que lhe é reservada desde o modelo constitucional, é
irrecusável a compreensão de que a Defensoria Pública deve atuar, em processos
jurisdicionais individuais e coletivos, também na qualidade de custos vulnerabilis,
promovendo a tutela jurisdicional adequada dos interesses que lhe são
confiados, desde o modelo constitucional, similarmente ao que se dá com o
Ministério Público quanto ao exercício de sua função de custos legis, ou, como
pertinentemente prefere o Código de Processo Civil, fiscal da ordem jurídica.
(...)
Importa, por
isso, dar destaque o papel que, desde o art. 134 da Constituição Federal, é
atribuído à Defensoria Pública e que não se esgota na sua atuação
individualizada em prol dos necessitados, nem tampouco como autora, o que se
dá, no contexto que aqui importa destacar, no âmbito do chamado 'processo
coletivo'. É fundamental entender que ela também pode desempenhar outro papel
em prol de suas finalidades institucionais, até como forma de perseguir,
inclusive perante o Estado-juiz, a 'promoção dos direitos humanos e a defesa
[...] de forma integral'.
Sua atuação
como interveniente para que, nesta qualidade, sua opinião institucional possa
ser levada em conta na construção de uma decisão mais democrática, é
irrecusável. O veículo para que se concretize mais esse mister é, à falta de
regras próprias, o previsto pelo art. 138 do Código de Processo Civil para o amicus
curiae, tomando-se de empréstimo, diante das prerrogativas existentes no
plano legislativo para a Defensoria Pública, o quanto estabelecido para o
Ministério Público nos arts. 178 e 179 do mesmo Código, que disciplinam a
atuação daquela instituição na qualidade de fiscal da ordem jurídica (Curso sistematizado
de direito processual civil, vol. 1: teoria geral do direito processual civil:
parte geral do código de processo civil. 9ª edição. São Paulo: Saraiva
Educação, 2018, p. 218).
O Superior Tribunal de Justiça, ao
interpretar os requisitos legais para a atuação coletiva da Defensoria Pública,
adota exegese ampliativa da condição jurídica de “necessitado”, de modo a
possibilitar sua atuação em relação aos necessitados jurídicos em geral, não
apenas aos hipossuficientes sob o aspecto econômico (STJ. 1ª Turma. AgInt nos
EDcl no REsp 1.529.933/CE, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 20/5/2019).
A expressão “necessitados” (art.
134, caput, da Constituição), que qualifica, orienta e enobrece a atuação da
Defensoria Pública, deve ser entendida, no campo da Ação Civil Pública, em
sentido amplo, de modo a incluir, ao lado dos estritamente carentes de recursos
financeiros - os miseráveis e pobres -, os hipervulneráveis (isto é, os
socialmente estigmatizados ou excluídos, as crianças, os idosos, as gerações
futuras), enfim todos aqueles que, como indivíduo ou classe, por conta de sua real
debilidade perante abusos ou arbítrio dos detentores de poder econômico ou
político, 'necessitem' da mão benevolente e solidarista do Estado para sua
proteção, mesmo que contra o próprio Estado. Vê-se, então, que a partir da
ideia tradicional da instituição forma-se, no Welfare State, um novo e mais
abrangente círculo de sujeitos salvaguardados processualmente, isto é, adota-se
uma compreensão de minus habentes impregnada de significado social,
organizacional e de dignificação da pessoa humana (STJ. 2ª Turma. REsp
1.264.116/RS, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 18/10/2011).
Assim, considerando que estava
discutindo tema jurídico que poderia afetar inúmeros outros jurisdicionados que
não participavam diretamente da discussão e tendo em vista a vulnerabilidade do
grupo de consumidores potencialmente lesado e da necessidade da defesa do
direito fundamental à saúde, o STJ entendeu que a DPU estava legitimada para
atuar como custos vulnerabilis no feito.