Dizer o Direito

quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Lei 13.873/2019: altera a Lei 13.364/2016 para reforçar que as atividades de rodeio, vaquejada e laço são bens de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro



Olá, amigos do Dizer o Direito,

Foi publicada ontem (18/09/2019), a Lei nº 13.873/2019, que altera a Lei nº 13.364/2016, para incluir o laço, bem como as respectivas expressões artísticas e esportivas, como manifestação cultural nacional, elevar essas atividades à condição de bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro e dispor sobre as modalidades esportivas equestres tradicionais e sobre a proteção ao bem-estar animal.

Vamos entender com calma.

Rodeio
O rodeio, a vaquejada e o laço são práticas culturais comuns em alguns Estados do Brasil.
“O rodeio é uma prática competitiva que consiste em permanecer por até oito segundos sobre um animal, normalmente um cavalo ou touro. A avaliação é feita por dois árbitros cuja nota é de 0 a 50 cada; um árbitro avalia o competidor e o outro avalia o animal, totalizando a pontuação de 0 a 100.” (https://www.wikiwand.com/pt/Rodeio)

Vaquejada
Na vaquejada, dois vaqueiros, cada um montado em seu cavalo, perseguem o boi na arena e, após emparelhá-lo com os cavalos, tentam conduzi-lo até uma região delimitada, onde deverão derrubar o boi puxando-o pelo rabo.
Se o boi, quando foi derrubado, ficou, ainda que por alguns instantes, com as quatro patas para cima antes de se levantar, o juiz declara ao público “Valeu boi!” e a dupla recebe os pontos.
Se o boi caiu, mas não ficou com as patas para cima, o juiz anuncia “Zero!”, e a dupla não pontua.
Algumas regras mudam de acordo com a organização do evento, mas, em regra, cada dupla enfrenta cinco bois. O primeiro vale 8 pontos, o segundo 9 pontos, o terceiro 10 pontos, o quarto 11 e o quinto 12, totalizando 50 pontos.

Laço
Provas de laço são uma forma de competição na qual o objetivo é imobilizar o animal por meio do laço.

Críticas e defensores
As associações protetoras dos animais criticam bastante os rodeios, as vaquejadas e as provas de laço, alegando que os animais envolvidos sofrem maus tratos e que, com frequência, ficam com sequelas decorrentes das agressões e do estresse que passam.
Os defensores da atividade, por sua vez, alegam que os animais não sofrem maus tratos e que esta prática é centenária, fazendo parte do patrimônio cultural do povo brasileiro. Além disso, argumentam que se trata de um esporte e que os eventos geram inúmeros empregos e renda no país.

Lei 15.299/2013, do Estado do Ceará
O Ceará editou a Lei estadual nº 15.299/2013, regulamentando a atividade de “vaquejada” no Estado. A norma fixou os critérios para a competição e obrigou os organizadores a adotarem medidas de segurança para os vaqueiros, público e animais.
O Procurador-Geral da República, no entanto, ajuizou ação direta de inconstitucionalidade contra a lei.
Segundo a ação, com a profissionalização da vaquejada, algumas práticas passaram a ser adotadas, como o enclausuramento dos  animais antes de serem lançados à pista, momento em que são açoitados e instigados para que entrem agitados na arena quando da abertura do portão. Tais práticas acarretam danos e constituem crueldade contra os animais, o que é vedado pelo art. 225, § 1º, VII, da CF/88:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.
§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.

O pedido do PGR foi acolhido pelo STF? A vaquejada foi considerada uma prática contrária à CF?
SIM.

Conflito de normas constitucionais sobre direitos fundamentais
O caso em tela revela um conflito de normas constitucionais sobre direitos fundamentais:
• De um lado, a CF/88 proíbe as práticas que submetam os animais a crueldade (art. 225, § 1º, VII);
• De outro, o texto constitucional garante o pleno exercício dos direitos culturais, das manifestações culturais e determina que o Estado proteja as manifestações das culturas populares (art. 215, caput e § 1º).

Direito fundamental de terceira geração
O art. 225 da CF/88 consagra a proteção da fauna e da flora como modo de assegurar o direito ao meio ambiente sadio e equilibrado. É, portanto, direito fundamental de terceira geração, fundado na solidariedade, de caráter coletivo ou difuso, dotado de "altíssimo teor de humanismo e universalidade" (BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 11ª ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 523).
A manutenção do ecossistema é um dever de todos em benefício das gerações do presente e do futuro.
Nas questões ambientais, o indivíduo é considerado titular do direito e, ao mesmo tempo, destinatário dos deveres de proteção. Daí porque a doutrina fala que existe um verdadeiro “direito-dever” fundamental.

Laudos técnicos comprovaram consequências nocivas aos animais
O PGR juntou aos autos laudos técnicos que comprovam que as vaquejadas provocam consequências nocivas à saúde dos bovinos, tais como fraturas nas patas, ruptura dos ligamentos e dos vasos sanguíneos, traumatismos e deslocamento da articulação do rabo e até seu arrancamento, das quais resultam comprometimento da medula espinhal e dos nervos espinhais, dores físicas e sofrimento mental.
Diante desses dados, o STF concluiu que é indiscutível que os animais envolvidos sofrem tratamento cruel, o que contraria o art. 225, § 1º, VII, da CF/88.

Proibição da crueldade prevalece sobre a proteção cultural
O STF entendeu que a crueldade provocada pela “vaquejada” faz com que, mesmo sendo esta uma atividade cultural, não possa ser permitida.
A expressão “crueldade”, constante da parte final do inciso VII do § 1º do art. 225 da CF/88, engloba a tortura e os maus-tratos sofridos pelos bovinos durante a prática da vaquejada, de modo a tornar intolerável esta conduta que havia sido autorizada pela norma estadual impugnada.
Assim, mesmo reconhecendo a importância da vaquejada como manifestação cultural regional, esse fator não torna a atividade imune aos outros valores constitucionais, em especial à proteção ao meio ambiente.

Resultado
O placar foi bastante apertado (6x5):
• Inconstitucionalidade da lei: Ministros Marco Aurélio, Roberto Barroso, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Celso de Mello e Cármen Lúcia.
• Constitucionalidade da lei (vencidos): Ministros Edson Fachin, Teori Zavascki (agora falecido), Luiz Fux, Dias Toffoli e Gilmar Mendes.

Resumindo:
É inconstitucional lei estadual que regulamenta a atividade da “vaquejada”.
Segundo decidiu o STF, os animais envolvidos nesta prática sofrem tratamento cruel, razão pela qual esta atividade contraria o art. 225, § 1º, VII, da CF/88.
A crueldade provocada pela “vaquejada” faz com que, mesmo sendo esta uma atividade cultural, não possa ser permitida.
A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da observância do disposto no inciso VII do § 1º do art. 225 da CF/88, que veda práticas que submetam os animais à crueldade.
STF. Plenário. ADI 4983/CE, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 06/10/2016 (Info 842).

Lei federal nº 13.364/2016
Pouco mais de um mês após esta decisão do STF acima explicada (ADI 4983/CE) o Congresso Nacional editou a Lei nº 13.364/2016, prevendo que o Rodeio e a Vaquejada devem ser considerados como expressões artístico-culturais e manifestações da cultura nacional e de patrimônio cultural imaterial.
Foi uma “reação” do Poder Legislativo à decisão do STF.
O Congresso Nacional poderia editar esta Lei, em tese, contrariando o que decidiu o STF na ADI 4983?
Sim, porque a decisão do STF restringiu-se a uma lei do Ceará, que permitia a realização da vaquejada naquele Estado. O efeito vinculante do acórdão se limita a isso. Assim, esta lei do Ceará é inconstitucional e ninguém pode contrariar isso. A decisão do STF não impede, contudo, que o Congresso Nacional ou mesmo outros Estados editem leis permitindo a vaquejada. Formalmente, tais leis não violam a decisão do STF.

EC 96/2017
A Lei nº 13.364/2016, acima mencionada, sozinha, não teria força jurídica suficiente para superar a decisão do STF. Isso porque, na visão do Supremo, a prática da vaquejada não era proibida por ausência de lei. Ao contrário, a Corte entendeu que, mesmo havendo lei regulamentando a atividade, a vaquejada era inconstitucional por violar o art. 225, § 1º, VII, da CF/88.
Assim, essa Lei nº 13.364/2016 não ajudava muito os partidários da vaquejada e era certo que o STF iria manter a proibição.
Ciente disso, o Congresso Nacional decidiu alterar a própria Constituição, nela inserindo a previsão expressa de que são permitidas práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais.
Veja a íntegra do § 7º que foi inserido pela EC 96/2017 no art. 225 da CF/88:
Art. 225. (...)
§ 7º Para fins do disposto na parte final do inciso VII do § 1º deste artigo, não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais, conforme o § 1º do art. 215 desta Constituição Federal, registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos.

Foi uma tentativa de superação legislativa da jurisprudência (reversão jurisprudencial), uma manifestação de ativismo congressual.

Efeito Backlash
A EC 96/2017 é um exemplo do que a doutrina constitucionalista denomina de “efeito backlash”.
Em palavras muito simples, efeito backlash consiste em uma reação conservadora de parcela da sociedade ou das forças políticas (em geral, do parlamento) diante de uma decisão liberal do Poder Judiciário em um tema polêmico.
George Marmelstein resume a lógica do efeito backlash ao ativismo judicial:
“(1) Em uma matéria que divide a opinião pública, o Judiciário profere uma decisão liberal, assumindo uma posição de vanguarda na defesa dos direitos fundamentais. (2) Como a consciência social ainda não está bem consolidada, a decisão judicial é bombardeada com discursos conservadores inflamados, recheados de falácias com forte apelo emocional. (3) A crítica massiva e politicamente orquestrada à decisão judicial acarreta uma mudança na opinião pública, capaz de influenciar as escolhas eleitorais de grande parcela da população. (4) Com isso, os candidatos que aderem ao discurso conservador costumam conquistar maior espaço político, sendo, muitas vezes, campeões de votos. (5) Ao vencer as eleições e assumir o controle do poder político, o grupo conservador consegue aprovar leis e outras medidas que correspondam à sua visão de mundo. (6) Como o poder político também influencia a composição do Judiciário, já que os membros dos órgãos de cúpula são indicados politicamente, abre-se um espaço para mudança de entendimento dentro do próprio poder judicial. (7) Ao fim e ao cabo, pode haver um retrocesso jurídico capaz de criar uma situação normativa ainda pior do que a que havia antes da decisão judicial, prejudicando os grupos que, supostamente, seriam beneficiados com aquela decisão.” (Disponível em: https://direitosfundamentais.net/2015/09/05/efeito-backlash-da-jurisdicao-constitucional-reacoes-politicas-a-atuacao-judicial/).

Lei nº 13.873/2019
Agora, vem a Lei nº 13.873/2019 que teve dois objetivos;
• incluir as atividades de laço na Lei nº 13.364/2016;
• reforçar que o Rodeio, a Vaquejada e o Laço são manifestações culturais nacionais e suas atividades são bens de natureza imaterial integrantes do patrimônio cultural brasileiro.

Vamos verificar agora as mudanças feitas pela Lei nº 13.873/2019

Alteração na ementa da Lei
Ementa da Lei nº 13.364/2016
Redação originária
Redação dada pela Lei nº 13.873/2019
Eleva o Rodeio, a Vaquejada, bem como as respectivas expressões artístico-culturais, à condição de manifestação cultural nacional e de patrimônio cultural imaterial.
Reconhece o rodeio, a vaquejada e o laço, bem como as respectivas expressões artísticas e esportivas, como manifestações culturais nacionais; eleva essas atividades à condição de bens de natureza imaterial integrantes do patrimônio cultural brasileiro; e dispõe sobre as modalidades esportivas equestres tradicionais e sobre a proteção ao bem-estar animal. (Redação dada pela Lei nº 13.873/2019)


Alteração no art. 1º para incluir o laço
Ementa da Lei nº 13.364/2016
Redação originária
Redação dada pela Lei nº 13.873/2019
Art. 1º Esta Lei eleva o Rodeio, a Vaquejada, bem como as respectivas expressões artístico-culturais, à condição de manifestações da cultura nacional e de patrimônio cultural imaterial.
Art. 1º  Esta Lei reconhece o rodeio, a vaquejada e o laço, bem como as respectivas expressões artísticas e esportivas, como manifestações culturais nacionais, eleva essas atividades à condição de bens de natureza imaterial integrantes do patrimônio cultural brasileiro e dispõe sobre as modalidades esportivas equestres tradicionais e sobre a proteção ao bem-estar animal.


Alteração no art. 2º
Ementa da Lei nº 13.364/2016
Redação originária
Redação dada pela Lei nº 13.873/2019
Art. 2º O Rodeio, a Vaquejada, bem como as respectivas expressões artístico-culturais, passam a ser considerados manifestações da cultura nacional.

Art. 2º O rodeio, a vaquejada e o laço, bem como as respectivas expressões artísticas e esportivas, são reconhecidos como manifestações culturais nacionais e elevados à condição de bens de natureza imaterial integrantes do patrimônio cultural brasileiro, enquanto atividades intrinsecamente ligadas à vida, à identidade, à ação e à memória de grupos formadores da sociedade brasileira.

Inserção do art. 3º-A
Art. 3º-A. Sem prejuízo do disposto no art. 3º desta Lei, são consideradas modalidades esportivas equestres tradicionais as seguintes atividades:
I - adestramento, atrelagem, concurso completo de equitação, enduro, hipismo rural, salto e volteio;
II - apartação, time de curral, trabalho de gado, trabalho de mangueira;
III - provas de laço;
IV - provas de velocidade: cinco tambores, maneabilidade e velocidade, seis balizas e três tambores;
V - argolinha, cavalgada, cavalhada e concurso de marcha;
VI - julgamento de morfologia;
VII - corrida;
VIII - campereada, doma de ouro e freio de ouro;
IX - paleteada e vaquejada;
X - provas de rodeio;
XI - rédeas;
XII - polo equestre;
XIII - paraequestre.

Inserção do art. 3º-B para prever cuidados com o bem-estar dos animais
Art. 3º-B.  Serão aprovados regulamentos específicos para o rodeio, a vaquejada, o laço e as modalidades esportivas equestres por suas respectivas associações ou entidades legais reconhecidas pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
§ 1º  Os regulamentos referidos no caput deste artigo devem estabelecer regras que assegurem a proteção ao bem-estar animal e prever sanções para os casos de descumprimento.
§ 2º  Sem prejuízo das demais disposições que garantam o bem-estar animal, deve-se, em relação à vaquejada: 
I - assegurar aos animais água, alimentação e local apropriado para descanso;
II - prevenir ferimentos e doenças por meio de instalações, ferramentas e utensílios adequados e da prestação de assistência médico-veterinária;
III - utilizar protetor de cauda nos bovinos;
IV - garantir quantidade suficiente de areia lavada na faixa onde ocorre a pontuação, respeitada a profundidade mínima de 40 cm (quarenta centímetros).

Vigência
A Lei nº 13.873/2019 entrou em vigor na data de sua publicação (18/09/2019).




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