Dizer o Direito

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Se a infração disciplinar praticada for, em tese, também crime, o prazo prescricional do processo administrativo será aquele que for previsto no art. 109 do CP, esteja ou não esse fato sendo apurado na esfera penal



Imagine a seguinte situação hipotética:
João, servidor público federal, desviou, em proveito próprio, dinheiro de que tinha posse em razão do cargo.
Esse fato pode ser analisado sob três aspectos: o penal, o administrativo e o civil.
• Sob o aspecto penal: o agente pode responder a processo penal e ser condenado pelo crime de peculato-desvio (art. 312, 2ª parte, do CP).
• Sob o aspecto administrativo: o servidor pode responder a processo administrativo disciplinar e ser condenado a sanção de demissão (art. 132, I, da Lei nº 8.112/90).
• Sob o aspecto cível: João pode ser réu em ação de improbidade, estando sujeito às sanções previstas no art. 12, I, da Lei nº 8.429/92).

Vamos nos concentrar aqui no aspecto administrativo e, mais especificamente, na prescrição.

Prescrição da infração administrativa
As infrações disciplinares, assim como as infrações penais, também estão sujeitas à prescrição. Logo, se a Administração Pública demorar muito tempo para apurar uma falta cometida pelo servidor, ela perderá o direito de punir.
A prescrição da pretensão punitiva é um direito fundamental do ser humano e está baseado na segurança jurídica. Somente a Constituição Federal pode declarar que determinada infração (penal ou administrativa) é imprescritível (exs.: art. 5º, XLII, XLIV; art. 37, § 5º).

Quais os prazos prescricionais aplicáveis às sanções administrativas?
O art. 142 da Lei nº 8.112/90 prevê os prazos de prescrição disciplinar:
Art. 142. A ação disciplinar prescreverá:
I — em 5 (cinco) anos, quanto às infrações puníveis com demissão, cassação de aposentadoria ou disponibilidade e destituição de cargo em comissão;
II — em 2 (dois) anos, quanto à suspensão;
III — em 180 (cento e oitenta) dias, quanto à advertência.
(...)
§ 2º Os prazos de prescrição previstos na lei penal aplicam-se às infrações disciplinares capituladas também como crime.

Veja, de forma mais didática, o tema nesta tabela abaixo:
Tipo de infração
Prazo prescricional
Se a sanção prevista para essa infração administrativa for DEMISSÃO, CASSAÇÃO DE APOSENTADORIA ou DISPONIBILIDADE e DESTITUIÇÃO de cargo em comissão.
5 anos
Se a sanção for SUSPENSÃO.
2 anos
Se a sanção for ADVERTÊNCIA.
180 dias
Se a infração administrativa praticada for também CRIME.
Será o mesmo prazo da prescrição penal (art. 109, CP)

Qual é o termo inicial dos prazos de prescrição das infrações administrativas? Em outras palavras, quando se iniciam os prazos prescricionais previstos no art. 142 da Lei nº 8.112/90?
Na data em que o fato se tornou conhecido. É o que diz expressamente o § 1º do art. 142:
Art. 142 (...)
§ 1º O prazo de prescrição começa a correr da data em que o fato se tornou conhecido.

Esse tema é também objeto de um enunciado do STJ:
Súmula 635-STJ: Os prazos prescricionais previstos no art. 142 da Lei nº 8.112/1990 iniciam-se na data em que a autoridade competente para a abertura do procedimento administrativo toma conhecimento do fato, interrompem-se com o primeiro ato de instauração válido - sindicância de caráter punitivo ou processo disciplinar - e voltam a fluir por inteiro, após decorridos 140 dias desde a interrupção.

Prazo prescricional da infração administrativa se o fato praticado for também crime
Como vimos acima, o § 2º do art. 142 da Lei nº 8.112/90 afirma que, se o servidor público cometeu infração disciplinar que também é tipificada como crime, o prazo prescricional para apuração desta infração administrativa não será o da Lei nº 8.112/90, mas sim o prazo prescricional previsto no art. 109 do CP para aquele respectivo crime.
Veja novamente a redação do dispositivo:
Art. 142. (...)
§ 2º Os prazos de prescrição previstos na lei penal aplicam-se às infrações disciplinares capituladas também como crime.

Assim, em nosso exemplo, o prazo para que a Administração Pública apure a infração disciplinar praticada por João será de 16 anos, com base no art. 109, II c/c art. 312 do CP:
Art. 109. A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, salvo o disposto no § 1º do art. 110 deste Código, regula-se pelo máximo da pena privativa de liberdade cominada ao crime, verificando-se:
(...)
II - em dezesseis anos, se o máximo da pena é superior a oito anos e não excede a doze;

Art. 312. Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio:
Pena - reclusão, de dois a doze anos, e multa.

Exigência de que o fato esteja sendo apurado na esfera penal para se aplicar o prazo prescricional do art. 109 do CP (superada)
O STJ adotava uma intepretação não literal do § 2º do art. 142 da Lei nº 8.112/90.
O STJ dizia o seguinte: o § 2º do art. 142 somente deve aplicado quando o fato, objeto do processo administrativo, também estiver sendo apurado na esfera criminal.
Assim, somente se aplicava o prazo prescricional previsto na legislação penal quando houver sido proposta denúncia ou ao menos instaurado um inquérito policial para apurar o fato.
Se não houve apuração na esfera penal, deve ser aplicado o prazo prescricional de 5 anos, de acordo com o art. 142, I, da Lei nº 8.112/90.
A mera presença de indícios de prática de crime sem a devida apuração nem formulação de denúncia obstava a aplicação do art. 142, § 2º, da Lei nº 8.112/90, devendo ser utilizada a regra geral prevista no inciso I desse dispositivo.
Desse modo, com base na antiga orientação do STJ, no caso de João, o prazo prescricional para apurar a infração administrativa iria depender:
• Se já tivesse havido oferecimento de denúncia ou instauração de IP: o prazo prescricional seria de 16 anos (com base na prescrição penal);
• Se não houvesse propositura de ação penal nem instauração de IP: o prazo prescricional seguia a regra geral, ou seja, seria de 5 anos (com base na legislação administrativa).

Esse entendimento ainda é adotado pelo STJ?
NÃO. Não há mais essa exigência de que o fato esteja sendo apurado na esfera penal.
O STJ agora entende que:
O prazo prescricional previsto na lei penal se aplica às infrações disciplinares também capituladas como crime independentemente da apuração criminal da conduta do servidor.
Para se aplicar a regra do § 2º do art. 142 da Lei nº 8.112/90 não se exige que o fato esteja sendo apurado na esfera penal (não se exige que tenha havido oferecimento de denúncia ou instauração de inquérito policial).
Se a infração disciplinar praticada for, em tese, também crime, deve ser aplicado o prazo prescricional previsto na legislação penal independentemente de qualquer outra exigência.
STJ. 1ª Seção. MS 20.857-DF, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Rel. Acd. Min. Og Fernandes, julgado em 22/05/2019 (Info 651).

Esse novo entendimento do STJ está baseado na independência das esferas administrativa e criminal. Em razão dessa independência de instâncias, a existência de apuração criminal não pode ser um pré-requisito para a utilização do prazo prescricional penal.
Além disso, “o lapso prescricional não pode variar ao talante da existência ou não de ação penal, justamente pelo fato de a prescrição estar relacionada ao vetor da segurança jurídica.” (Min. Gurgel de Faria). Em outras palavras, geraria uma enorme insegurança jurídica se o prazo prescricional da infração administrativa fosse “decidido” com base na existência ou não apuração criminal.

Também é a posição do STF
Vale ressaltar que esse entendimento mais recente do STJ é também adotado pelo STF:
(...) LEGITIMIDADE DA APLICAÇÃO DO PRAZO PRESCRICIONAL DA LEI PENAL, INDEPENDENTEMENTE, DE
INSTAURAÇÃO DE PROCEDIMENTO NA ESFERA CRIMINAL. (...)
STF. 1ª Turma. MS 35631 ED/DF, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJe 22/11/2018.

(...) Capitulada a infração administrativa como crime, o prazo prescricional da respectiva ação disciplinar tem por parâmetro o estabelecido na lei penal (art. 109 do CP), conforme determina o art. 142, § 2º, da Lei nº 8.112/1990, independentemente da instauração de ação penal. (...)
STF. 1ª Turma. AgRg no RMS 31.506/DF, Rel. Min. Roberto Barroso, DJe 26/3/2015.








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