terça-feira, 27 de agosto de 2019
Lei 13.866/2019: dispõe sobre a possibilidade de a identidade do denunciante ser mantida em sigilo em caso de denúncias formuladas ao TCU
terça-feira, 27 de agosto de 2019
Olá, amigos do Dizer o Direito,
Foi publicada hoje a Lei nº
13.866/2019, que altera a Lei Orgânica do TCU para prever a possibilidade de que
as denúncias formuladas ao Tribunal de Contas da União sejam sigilosas.
Vamos entender melhor.
Denúncias formuladas ao TCU
A Lei nº 8.443/92 é a Lei
Orgânica do Tribunal de Contas da União.
Esta Lei prevê, em seu art. 53,
que qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte
legítima para denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o TCU.
O denunciante pode pedir para seu
nome permanecer em sigilo? Obs: não estou falando de um relato feito de forma
anônima (“delação apócrifa”). O que estou dizendo é o seguinte: a pessoa faz
uma denúncia no TCU identificando-se normalmente, mas pede para seu nome não
ser revelado para ninguém (muito menos para os agentes públicos que praticaram
a irregularidade). Isso é possível?
Esse tema deve ser analisado em
três momentos históricos distintos:
1º momento: redação originária da
Lei nº 8.443/92 (SIM)
A pessoa, ao formular a denúncia
junto ao TCU, poderia pedir ao Tribunal para manter seu nome em sigilo.
Neste caso, a lei previa que o TCU
deveria manter o nome do denunciante em sigilo até decisão definitiva sobre a
matéria.
Depois de decidir se a denúncia
era ou não procedente, o TCU poderia:
• retirar o sigilo (permitindo
que o nome do denunciante fosse revelado);
• manter o sigilo (não revelando
nunca o nome do denunciante).
Isso estava previsto no § 1º do
art. 55 da Lei nº 8.443/92:
Art. 55. No resguardo dos direitos e
garantias individuais, o Tribunal dará tratamento sigiloso às denúncias
formuladas, até decisão definitiva sobre a matéria.
§ 1º Ao decidir, caberá ao Tribunal
manter ou não o sigilo quanto ao objeto e à autoria da denúncia.
(...)
2º momento: Senado suspende a
eficácia do § 1º a partir de decisão do STF em controle difuso (NÃO)
Em 2003, o STF, ao julgar um mandado
de segurança, decidiu, incidentalmente, que esse § 1º do art. 55 da Lei nº
8.443/92 era inconstitucional por violar o art. 5º, incisos V, X, XXXIII e
XXXV, da Constituição Federal:
Art. 5º (...)
V - é assegurado o direito de
resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral
ou à imagem;
(...)
X - são invioláveis a intimidade, a
vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a
indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
(...)
XXXIII - todos têm direito a receber
dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse
coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de
responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à
segurança da sociedade e do Estado;
(...)
XXXV - a lei não excluirá da apreciação
do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
O STF decidiu que o TCU não
poderia deixar de fornecer o nome do denunciante. Isso porque a CF/88 não
admite o anonimato
Segundo argumentou o então Min. Carlos
Velloso, relator do MS:
“(...) protegido
o denunciante pelo sigilo, isso pode redundar no denuncismo irresponsável, que
constitui comportamento torpe.
(...)
A Constituição
assegura a todos o direito ao recebimento dos órgãos públicos de informações de
seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão
prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas
cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado (CF, art.
5º, XXXIII).
(...)
No caso, a
negativa de fornecimento do nome do denunciante impede que o denunciado
ingresse em Juízo, impede assim que seja prestada a tutela judicial numa hipótese
em que a Constituição expressamente autoriza seja buscada essa tutela (CF, art.
5º, incisos V e X).
(...)
Assim posta a
questão, tenho como ofensiva à Constituição, art. 5º, incisos V, X, XXXIII e
XXXV, a expressão, constante do § 1º do art. 55 da Lei 8.443, de 16.7.92, “manter
ou não o sigilo quanto ao objeto e à autoriza da denúncia” e ao contido no
disposto no Regimento Interno do TCU, que estabelece que, quanto à autoria da
denúncia, será mantido o sigilo.”
(STF.
Plenário. MS 24405, Rel. Min. Carlos Velloso, julgado em 03/12/2003)
Diante dessa decisão do STF, o
Senado Federal, nos termos do art. 52, X, da CF/88 (Art. 52. Compete
privativamente ao Senado Federal: X - suspender a execução, no todo ou em
parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo
Tribunal Federal), suspendeu a eficácia da expressão “manter ou não o sigilo
quanto ao objeto e à autoria da denúncia” constante do § 1º do art. 55 da Lei nº
8.443/92 e da previsão do Regimento Interno do TCU, que permitiam a manutenção
do sigilo do autor da denúncia.
Isso significa que, depois dessa
decisão do STF e da resolução do Senado, o TCU não mais podia manter em sigilo
o nome do autor da denúncia mesmo que esse pedisse.
Com medo de represálias e sem ter
mais como pedir o sigilo de seus nomes, muitas pessoas começaram a relatar
irregularidades para o TCU, mas agora sem revelar suas identidades. Ex: carta/e-mail
anônimo narrando irregularidades praticadas por gestores públicos. O que fez o
TCU para conseguir investigar essas irregularidades sem afrontar – pelo menos
formalmente – aquilo que decidiu o STF?
O TCU criou duas espécies de
comunicação de irregularidade:
• denúncia: formalizada nos
termos do art. 53 da Lei nº 8.443/92, não podendo ser feita de forma anônima.
• relato de suspeita de
irregularidade (“denúncia informal”), feita para a ouvidoria do TCU, podendo
ser realizada de forma anônima.
3º momento: Lei nº 13.866/2019
A Lei nº 13.866/2019 acrescentou
o § 3º ao art. 55 da Lei nº 8.443/92 inserindo novamente a previsão de que o
TCU poderá manter em sigilo a identidade do denunciante. Confira o dispositivo:
Art. 55. (...)
§ 3º Ao decidir, caberá ao Tribunal
manter o sigilo do objeto e da autoria da denúncia quando imprescindível à segurança
da sociedade e do Estado.
Repare na parte final do § 3º. Para
tentar “blindar” esse dispositivo, o legislador procurou enquadrá-lo na exceção
contida no art. 5º, XXXIII, da CF/88:
Art. 5º (...)
(...)
XXXIII - todos têm direito a receber
dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse
coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de
responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível
à segurança da sociedade e do Estado;
Duas observações finais quanto ao
tema:
1) A Lei nº 13.866/2019 é um
exemplo de “superação legislativa da jurisprudência”, também conhecida como “reação
legislativa”.
O STF possui, segundo a CF/88, a
missão de dar a última palavra em termos de interpretação da Constituição. Isso
não significa, contudo, que o legislador não tenha também a capacidade de interpretação
do Texto Constitucional. O Poder Legislativo também é considerado um intérprete
autêntico da Constituição e, justamente por isso, pode editar uma lei ou EC
tentando superar o entendimento anterior ou provocar um novo pronunciamento do
STF a respeito de determinado tema, mesmo que a Corte já tenha decidido o
assunto em sede de controle concentrado de constitucionalidade. A isso se dá o
nome de “reação legislativa” ou “superação legislativa da jurisprudência”.
A reação legislativa é uma forma
de “ativismo congressual” com o objetivo de o Congresso Nacional reverter
situações de autoritarismo judicial ou de comportamento antidialógico por parte
do STF, estando, portanto, amparado no princípio da separação de poderes.
2) Esse novo § 3º do art. 55 da Lei
nº 8.443/92 é extremamente arriscado para o denunciante, não oferecendo garantias
sólidas de que seu nome será mantido em sigilo. Isso porque a expressão “imprescindível
à segurança da sociedade e do Estado” é muito subjetiva e não resguarda, pelo
menos de forma expressa, os direitos individuais do denunciante, sendo uma
previsão mais voltada à coletividade.
O próprio Min. Carlos Velloso, ao
julgar o MS 24405 acima mencionado, já havia se manifestado no sentido de que,
em sua opinião, a manutenção do sigilo do denunciante não pode ser vista como “imprescindível
à segurança da sociedade e do Estado”. Veja:
“A
Constituição assegura a todos o direito ao recebimento dos órgãos públicos de
informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que
serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas
aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado
(CF, art. 5º, XXXIII).
Ora,
certamente que não se inclui na ressalva – ressalvadas as informações cujo
sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado – o fornecimento
do nome de alguém que faz denúncias contra um administrador público, denúncia
rejeitada, porque improcedente, e que causou, no mínimo, desgaste à imagem do
administrador público.”
Desse modo, ainda que o TCU,
internamente, decida, ao final, manter o nome do denunciante em sigilo, essa
escolha poderá ser impugnada no STF, via mandado de segurança impetrado pelo “denunciado”
e, se o Supremo entender que não há risco à “segurança da sociedade e do Estado”,
o nome do denunciante será revelado.