Dizer o Direito

terça-feira, 6 de agosto de 2019

É possível a penhora no rosto dos autos de procedimento de arbitragem



Imagine a seguinte situação hipotética:
A empresa “A” ajuizou execução de título extrajudicial contra a empresa “B”, que está tramitando na 5ª Vara Cível de São Paulo (SP).
A exequente tem conhecimento que a empresa “B” está em um procedimento de arbitragem com a empresa “C” discutindo um contrato.
Se a empresa “B” for declarada vencedora na arbitragem, a empresa “C” terá que pagar a ela uma vultosa quantia.
Diante disso, a exequente pediu ao juiz da 5ª Vara Cível que decrete a penhora no rosto dos autos da arbitragem. Em outras palavras, a exequente pediu que o juiz penhore os direitos, bens e valores que a empresa “B” eventualmente venha a receber caso seja vencedora no procedimento arbitral. Assim, se a empresa “C” perder a arbitragem ela irá pagar os valores não para a empresa “B”, mas sim para a empresa “A”.

O pedido da empresa exequente pode ser acolhido? É possível falarmos em penhora no rosto dos autos de procedimento de arbitragem?
SIM.
É possível a penhora no rosto dos autos de procedimento de arbitragem para garantir o pagamento de dívida cobrada em execução judicial.
STJ. 3ª Turma. REsp 1.678.224-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 07/05/2019 (Info 648).

O que é a penhora no rosto dos autos?
A penhora no rosto dos autos é aquela que recai sobre um eventual direito do executado que ainda está sendo discutido em outro processo.
Em outras palavras, o executado do processo 1 está pleiteando um crédito no processo 2.
Logo, o juiz do processo 1 pode determinar a penhora no rosto dos autos deste crédito do processo 2.
Ex: Antônio está executando Ricardo no processo 1. Ocorre que Ricardo está pleiteando um crédito contra Maria em um outro feito (processo2). O juiz poderá determinar a penhora no rosto dos autos do crédito pleiteado no processo 2.
Veja a definição dada por Cândido Rangel Dinamarco:
“Penhora no rosto dos autos é penhora de bens que poderão ser atribuídos ao executado em algum processo no qual ele figure como demandante ou no qual tenha a expectativa de receber algum bem economicamente apreciável. (...)
O Código alude a esse modo de penhorar, quando cuida de créditos e de ‘outros direitos patrimoniais’ penhorados ao devedor em processo no qual ele figura como executado, figurando essa mesma pessoa também, por sua vez, como autor ou exequente em outro processo; nesse caso, o possível direito do executado ficará sob constrição naquele primeiro processo e ali será adjudicado pelo exequente ou alienado em hasta pública (arts. 674 a 676).” (Instituições de Direito Processual Civil. Vol. IV. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 530)

Previsão legal
A penhora no rosto dos autos é, atualmente, disciplinada pelo art. 860 do CPC:
Art. 860. Quando o direito estiver sendo pleiteado em juízo, a penhora que recair sobre ele será averbada, com destaque, nos autos pertinentes ao direito e na ação correspondente à penhora, a fim de que esta seja efetivada nos bens que forem adjudicados ou que vierem a caber ao executado.

Essa expressão “no rosto dos autos” era mencionada expressamente pelo art. 674 do CPC/1973, mas não foi repetida pelo art. 860 do CPC/2015. Apesar disso, essa nomenclatura continua a ser utilizada pela doutrina e jurisprudência.

Ciência ao juízo do outro processo e ao eventual devedor de que aquele crédito discutido está penhorado
Segundo Daniel Assumpção Neves, “essa espécie de penhora se presta a dar ciência ao juízo da demanda em que se discute o direito, evitando-se a entrega do produto de alienação de bem penhorado diretamente ao vencedor da ação, considerando-se que esse crédito já está penhorado em outra demanda judicial.” (Novo CPC comentado. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 1366).
Assim, na prática, penhora no rosto dos autos consiste em uma averbação feia para resguardar o direito de terceiro, ou seja, o juízo de um processo avisa para o juízo do outro que aquele crédito que está sendo discutido e que pode existir ou não, caso se confirme, já está penhorado e será utilizado para pagar uma dívida cobrada judicialmente.
Com isso, o devedor do devedor do executado toma ciência de que o pagamento – ou parte dele – deverá, quando realizado, ser dirigido ao credor deste, por força da penhora no rosto dos autos, sob pena de responder pela dívida, nos termos do art. 312 do Código Civil:
Art. 312. Se o devedor pagar ao credor, apesar de intimado da penhora feita sobre o crédito, ou da impugnação a ele oposta por terceiros, o pagamento não valerá contra estes, que poderão constranger o devedor a pagar de novo, ficando-lhe ressalvado o regresso contra o credor.

Desse modo, utilizando o exemplo acima: o juízo da 5ª Vara Cível dá ciência ao tribunal ou câmara arbitral que, se a empresa “B” tiver direito a algum crédito decorrente desta arbitragem, esse crédito está penhorado até determinado limite de valor. Assim, a empresa “C” (eventual devedora de “B”) sabe que, se perder a arbitragem, deverá pagar para “A” (e não para “B”), sob pena de incidir no art. 312 do CC acima transcrito.

Penhora no rosto dos autos não precisa envolver outro processo judicial (pode ser no rosto dos autos de arbitragem)
O grande debate neste caso é se a penhora no rosto dos autos deveria envolver necessariamente um outro processo judicial. O STJ afirmou que essa penhora pode recair sobre direito que está sendo discutido em um procedimento arbitral.
Existe uma discussão na doutrina se a arbitragem é ou não jurisdição.
Em seu voto neste caso, a Min. Nancy Andrighi, como já o fez em outras oportunidades, defende que sim afirmando que se trata da posição do STJ:
“(...) a jurisprudência do STJ orienta que é jurisdicional a atividade desenvolvida na arbitragem, assim como a estatal, e admite a convivência harmônica das duas jurisdições, desde que respeitadas as competências correspondentes, que ostentam natureza absoluta.”

Penhora no rosto dos autos da arbitragem não faz com que o árbitro tenha que tomar medidas executivas
Apesar de o árbitro exercer jurisdição, ele, ao contrário do juiz, não possui poder coercitivo direto. Isso significa que o árbitro não pode impor, contra a vontade do devedor, restrições ao seu patrimônio.
No caso da penhora no rosto dos autos da arbitragem, o árbitro não irá exercer poder coercitivo direto.
O árbitro não irá apreender coercitivamente o crédito da empresa que perder a arbitragem. Haverá apenas a afetação do direito litigioso, a fim de sujeitar à futura expropriação os bens que eventualmente venham a ser atribuídos, na arbitragem, ao executado, além de criar sobre eles a preferência para o respectivo exequente.

Em suma:
É possível aplicar a regra da penhora no rosto dos autos prevista no art. 860 do CPC/2015 (art. 674 do CPC/1973) ao procedimento de arbitragem, a fim de permitir que o juiz oficie o árbitro para que este faça constar em sua decisão final, acaso favorável ao executado, a existência da ordem judicial de expropriação, ordem essa, por sua vez, que só será efetivada ao tempo e modo do cumprimento da sentença arbitral, no âmbito do qual deverá ser também resolvido eventual concurso especial de credores.




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