Dizer o Direito

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

Compete à Justiça Estadual julgar crime cometido a bordo de balão



Crimes cometidos a bordo de navios ou aeronaves
O art. 109 da CF/88 prevê a competência da Justiça Federal comum em 1ª instância.
O inciso IX estabelece que é competência da Justiça Federal julgar os crimes praticados a bordo de navios ou aeronaves:
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
(...)
IX - os crimes cometidos a bordo de navios ou aeronaves, ressalvada a competência da Justiça Militar;

Conceito de aeronave
A definição do que seja aeronave está no art. 106 da Lei nº 7.565/86 (Código Brasileiro de Aeronáutica):
Art. 106. Considera-se aeronave todo aparelho manobrável em voo, que possa sustentar-se e circular no espaço aéreo, mediante reações aerodinâmicas, apto a transportar pessoas ou coisas.
Parágrafo único. A aeronave é bem móvel registrável para o efeito de nacionalidade, matrícula, aeronavegabilidade (arts. 72, I, 109 e 114), transferência por ato entre vivos (arts. 72, II e 115, IV), constituição de hipoteca (arts, 72, Il e 138), publicidade (arts. 72, III e 117) e cadastramento geral (art. 72, V).

Conceito de navio: embarcação de grande porte
Segundo a jurisprudência, quando o art. 109, IX, da CF/88 fala em “navio”, quer se referir a “embarcações de grande porte”. Assim, se o crime for cometido a bordo de um pequeno barco, lancha, veleiro etc., ainda que em navegação, a competência não será da Justiça Federal:
(...) A expressão "a bordo de navio", constante do art. 109, inciso IX, da CF/88, significa interior de embarcação de grande porte.
2. Realizando-se uma interpretação teleológica da locução, tem-se que a norma visa abranger as hipóteses em que tripulantes e passageiros, pelo potencial marítimo do navio, possam ser deslocados para águas territoriais internacionais. (...)
STJ. 3ª Seção. CC 43.404/SP, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, julgado em 14/02/2005.

Aeronave voando ou parada
A competência será da Justiça Federal mesmo que o crime seja cometido a bordo de uma aeronave pousada. Não é necessário que a aeronave esteja em movimento:
É da competência da Justiça Federal processar e julgar delitos cometidos a bordo de aeronaves, nos termos do inciso IX do art. 109 da CF/88, não influenciando, para fins de competência, o fato de a aeronave estar em solo ou sobrevoando.
STJ. 3ª Seção. CC 143.343/MS, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 23/11/2016.

Subtração de aeronave particular: Justiça Estadual
A subtração do próprio avião, que era particular, não se enquadra no conceito de delito cometido a bordo de aeronave, o que afasta a competência da Justiça Federal para processar e julgar a ação penal.
Embora o sistema de controle de fronteiras seja, nos termos do inciso XXII do artigo 21 da Constituição Federal, serviço da União, o delito ora investigado é o de roubo de um bem privado, razão pela qual o simples fato de a aeronave haver sido levada para o estrangeiro não é suficiente para demonstrar o interesse da União na apuração dos fatos, até mesmo porque, por se tratar de evasão clandestina, os serviços da Polícia Federal sequer foram utilizados.
STJ. 5ª Turma. HC 352.480/MT, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 01/06/2017.

Navio em situação de deslocamento internacional ou em situação de potencial deslocamento
Para que o crime cometido a bordo de navio seja de competência da Justiça Federal, é necessário que o navio esteja em deslocamento internacional ou em situação de potencial deslocamento.
Se o navio estiver atracado e não se encontrar em potencial situação de deslocamento, a competência será da Justiça Estadual.

O que é situação de potencial deslocamento?
Trata-se de conceito que deverá ser avaliado no caso concreto.
Ex1: se o navio (um transatlântico) se encontrava parado no porto para reabastecimento e, após este ser concluído, quando estava preparado para zarpar, ocorreu um delito em seu interior, pode-se entender que ele está em situação de potencial deslocamento internacional, sendo este delito de competência da Justiça Federal.
Ex2: se o navio estiver no estaleiro, para conserto, sem previsão de nova viagem, não se pode dizer que está em potencial deslocamento, sendo de competência da Justiça Estadual o julgamento de eventual delito ali cometido.
A embarcação deve estar apta, portanto, a realizar viagens internacionais.
Veja a ementa do julgado do STJ que resume a problemática exposta:
(...) 1. A Constituição Federal, em seu art. 109, IX, expressamente aponta a competência da Justiça Federal para processar e julgar "os crimes cometidos a bordo de navios ou aeronaves, ressalvada a competência da Justiça Militar".
2. Em razão da imprecisão do termo "navio" utilizado no referido dispositivo constitucional, a doutrina e a jurisprudência construíram o entendimento de que "navio" seria embarcação de grande porte o que, evidentemente, excluiria a competência para processar e julgar crimes cometidos a bordo de outros tipos de embarcações, isto é, aqueles que não tivessem tamanho e autonomia consideráveis que pudessem ser deslocados para águas internacionais.
3. Restringindo-se ainda mais o alcance do termo "navio", previsto no art. 109, IX, da Constituição, a interpretação que se dá ao referido dispositivo deve agregar outro aspecto, a saber, que ela se encontre em situação de deslocamento internacional ou em situação de potencial deslocamento.
4. Os tripulantes do navio que se beneficiavam da utilização de centrais telefônicas clandestinas, para realizar chamadas internacionais, pertenciam a embarcação que estava em trânsito no Porto de Paranaguá, o que caracteriza, sem dúvida, situação de potencial deslocamento. Assim, a competência, vista sob esse viés, é da Justiça Federal. (...)
STJ. 3ª Seção. CC 118.503/PR, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 22/04/2015.

Navio ancorado X Avião pousado
Como você viu acima, a jurisprudência confere tratamento diferente se a hipótese for de navio ou de avião. Crime ocorrido em...
• NAVIO ancorado: competência da Justiça ESTADUAL (como regra);
• AVIÃO pousado: competência da Justiça FEDERAL.

Por que esta diferença de tratamento entre avião pousado e navio atracado?
Não há muita razão lógica. Foi uma distinção feita pela jurisprudência e que acabou se consolidando.

E no caso de crime cometido a bordo de um balão de ar quente? De quem será a competência?
Imagine a seguinte situação hipotética:
Um balão de ar quente decolou do Centro de Paraquedismo e, minutos após a decolagem, veio a cair, causando a morte de uma pessoa que estava em seu interior e lesões corporais em outras duas.
Iniciou-se um inquérito policial para investigar se o piloto do balão agiu (ou não) com negligência durante o voo, sendo, portanto, responsável pelo homicídio culposo e pelas lesões corporais culposas.
O Juiz de Direito (Justiça Estadual) declinou da competência para analisar o feito e determinou a remessa dos autos à Justiça Federal, por entender que houve um acidente aéreo envolvendo objeto voador equiparados a aeronave (balão de ar quente).
O Juízo Federal, por sua vez, suscitou conflito de competência perante o STJ (art. 105, I, “d”, da CF/88), alegando que um balão de ar não é juridicamente equiparado a aeronave, nos termos do Código Brasileiro de Aeronáutica.

O que o STJ decidiu? De quem é a competência para apurar eventual crime praticado a bordo de balão de ar quente?
Justiça Estadual.

Balão não é aeronave
Balões de ar quente tripulados NÃO são considerados aeronaves para fins jurídicos.
Como vimos acima, a definição de aeronave está prevista no art. 106 da Lei nº 7.565/86 (Código Brasileiro de Aeronáutica – CBA):
Art. 106. Considera-se aeronave todo aparelho manobrável em voo, que possa sustentar-se e circular no espaço aéreo, mediante reações aerodinâmicas, apto a transportar pessoas ou coisas.

O Prof. Doutor Daniel Marchi de Oliveira faz algumas ponderações sobre essa definição legal:
“Conforme demonstra a legislação nacional, a principal característica da aeronave é a de que seja em aparelho que voe (...)
Ainda de acordo com o CBA, a aeronave deve ser capaz de sustentar e circular no espaço aéreo mediante reações aerodinâmicas (...)
(...) os foguetes, as naves espaciais ou qualquer forma de engenhos espaciais destinados a percorrer o espaço estratosférico ou exterior não podem ser considerados aeronaves, além de não estarem na dependência de outra característica de aeronave, ou seja, das reações aerodinâmicas.
O outro elemento imprescindível de aeronave, conforme colocado no Código, é que seja capaz de transportar pessoas ou coisas, pouco importando o ponto de saída ou de chegada, e independente de qualquer forma de contrato de transporte, bastando que carregue pessoas ou coisas, como, por exemplo, serviço de propaganda, turismo, instrução, aerodesporto, pulverização ou aerofotogrametria. (...)
(...) considerando que aeronave compreende apenas os aparelhos que possam sustentar-se e circular no espaço aéreo “mediante reações aerodinâmicas”, fica excluída dessa definição os balões de ar quente. Por outro lado, inclui-se a pipa (papagaio) como aeronave, controlada por um cabo (linha).” (http://publicacoes.unigranrio.edu.br/index.php/rdugr/article/download/1109/660).

O Ministério Público Federal, por intermédio do Subprocurador-Geral da República Dr. Franklin Rodrigues Da Costa, elaborou também um valioso parecer sobre o tema no qual se analisou o art. 106 do CBA:
“Colhe-se da leitura do citado dispositivo legal duas restrições ao conceito de aeronave, que certamente exclui a competência da Justiça Federal para o processo e julgamento de crimes ocorridos abordo de balões e dirigíveis. São elas: “aparelho manobrável em voo” e “sustentar-se e circular no espaço aéreo, mediante reações aerodinâmicas”.
Nessa linha de entendimento, restringindo-se o alcance do termo “aeronave”, previsto no art. 109, IX, da Constituição Federal, a interpretação que se dá ao referido dispositivo deve agregar o disposto no artigo 106 da Lei 7.565/1986, pois os balões e dirigíveis não são manobráveis, mas apenas controlados em voo, já que são guiados pela corrente de ar. De outro lado, sua sustentação não ocorre por reações aerodinâmica, mas por impulsão estática, decorrente do aquecimento do ar ao seu redor, tornando-o menos denso, sobe e o faz alçar voo. Assim, a competência para o processo e julgamento de eventual ação penal, decorrente do inquérito que originou este conflito, é da Justiça Estadual, porquanto o aeróstato (balões e dirigíveis) por não ser aparelho manobrável em voo e de sustentação por reações aerodinâmica não se amolda ao conceito de aeronave, previsto no art. 106 da Lei 7.565/1986.”

Desse modo, o balão de ar quente não se enquadra no conceito legal de aeronave por duas razões técnicas:
1) o balão não é um “aparelho manobrável em voo”. Ele é apenas controlado em voo, sendo guiado pelas correntes de ar;
2) o balão de ar não voa “mediante reações aerodinâmicas”. A sua sustentação no espaço aéreo ocorre por meio de impulsão estática decorrente do aquecimento do ar ao seu redor, tornando-o menos denso, o que faz com que suba.

Em suma:

Compete à Justiça Estadual o julgamento de crimes ocorridos a bordo de balões de ar quente tripulados. 
Os balões de ar quente tripulados não se enquadram no conceito de “aeronave” (art. 106 da Lei nº 7.565/86), razão pela qual não se aplica a competência da Justiça Federal prevista no art. 109, IX, da CF/88).
STJ. 3ª Seção. CC 143.400-SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 24/04/2019 (Info 648).



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