quarta-feira, 3 de julho de 2019
Poder Judiciário não pode obrigar o Ministério Público a celebrar o acordo de colaboração premiada
quarta-feira, 3 de julho de 2019
Imagine a seguinte situação hipotética:
João estava preso
preventivamente, acusado da prática de diversos crimes.
Ele iniciou, então, tratativas
com a Procuradoria da República para a celebração de um acordo de colaboração
premiada.
João chegou a entregar ao MP
diversos documentos que, na sua visão, provariam os delitos que teriam sido
praticados por outras pessoas que integrariam a organização criminosa.
Ocorre que o MP, após analisar a
documentação, entendeu que a colaboração não era efetiva para se conseguir “a
identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das
infrações penais por eles praticadas” (art. 4º, I, da Lei nº 12.850/2013).
Por esse motivo, o MP devolveu os
documentos e disse que não tinha interesse de celebrar o acordo de colaboração
premiada.
Diante disso, João impetrou
mandado de segurança contra o ato de recusa da Procuradora-Geral da República.
No writ, pediu para que o MP fosse compelido a celebrar o acordo de colaboração
premiada.
O pedido do impetrante foi aceito
pelo STF?
NÃO.
Conveniência e oportunidade do
acordo não são passíveis de apreciação judicial
O acordo de colaboração premiada,
além de meio de obtenção de prova, constitui-se em um negócio jurídico
processual personalíssimo, cuja conveniência e oportunidade não se submetem ao
escrutínio do Estado-juiz.
Trata-se, portanto, de ato
voluntário por essência, insuscetível de imposição judicial.
Juiz não pode participar das
negociações nem mesmo para avaliar se a recusa do MP foi correta
Ademais, no
âmbito da formação do acordo de colaboração premiada, o juiz não pode
participar das negociações realizadas entre as partes, por expressa vedação da Lei
nº 12.850/2013:
Art. 4º (...)
§ 6º O juiz não participará das
negociações realizadas entre as partes para a formalização do acordo de
colaboração, que ocorrerá entre o delegado de polícia, o investigado e o
defensor, com a manifestação do Ministério Público, ou, conforme o caso, entre
o Ministério Público e o investigado ou acusado e seu defensor.
Isso decorre do sistema acusatório,
que desmembra os papéis de investigar e acusar e aqueles de defender e julgar e
atribui missão própria a cada sujeito processual.
Réu pode colaborar e essa sua
colaboração será analisada na sentença; o que não se pode é obrigar o MP a
fazer o acordo
O Min. Edson Fachin afirmou que o
acusado pode colaborar mesmo sem o acordo com o MP e, ao final, na sentença, o
juiz irá analisar esse comportamento processual, podendo reconhecer que ele tem
direito subjetivo a algum benefício que possa ser concedido mesmo sem a
celebração formal do acordo.
Em outras palavras, o acusado tem
direito subjetivo à colaboração (atividade de colaborar). O que ele não tem é
um direito subjetivo ao acordo de colaboração premiada (negócio jurídico –
âmbito negocial).
Colaboração premiada x acordo de
colaboração premiada
A colaboração premiada e acordo
de colaboração premiada são fenômenos distintos.
Colaboração premiada é uma realidade
jurídica mais ampla que o acordo de colaboração premiada.
Colaboração premiada consiste em
adotar um comportamento processual que contribua para se conseguir alcançar
algum dos resultados previstos no art. 4º da Lei nº 12.850/2013.
O acusado possui direito
subjetivo à colaboração e, em contrapartida, terá direito de receber uma sanção
premial a ser concedida pelo Poder Judiciário no momento da prolação da
sentença que o julgar, caso o magistrado entenda que sua colaboração foi
eficaz.
Isso não significa, contudo, que,
na fase negocial, o Poder Judiciário possa obrigar o MP a celebrar um acordo de
colaboração estando ausente a voluntariedade ministerial, ou seja, mesmo contra
a vontade do membro do Parquet.
É possível a concessão de sanções
premiais pelo Poder Judiciário mesmo que o acusado não tenha celebrado acordo
de colaboração premiada, desde que ele tenha colaborado
O Ministro citou,
no ponto, o disposto no § 2º do art. 4º da Lei nº 12.850/2013, que estabelece a
possibilidade, em tese, até mesmo de ser concedido perdão judicial, ainda que
referida sanção premial não tenha sido prevista na proposta inicial:
Art. 4º (...)
§ 2º Considerando a relevância da
colaboração prestada, o Ministério Público, a qualquer tempo, e o delegado de
polícia, nos autos do inquérito policial, com a manifestação do Ministério
Público, poderão requerer ou representar ao juiz pela concessão de perdão
judicial ao colaborador, ainda que esse benefício não tenha sido previsto na
proposta inicial, aplicando-se, no que couber, o art. 28 do Decreto-Lei nº 3.689,
de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal).
Diversos diplomas normativos
antecedentes à Lei nº 12.850/2013 já previam essa possibilidade de concessão de
sanção premial, sem a exigência da celebração de acordo de colaboração.
A celebração do acordo, embora
confira maior segurança jurídica para o colaborador, não se mostra indispensável
para que o Poder Judiciário conceda os benefícios premiais da Lei.
Desse modo, independentemente da
formalização de ato negocial, persiste a possibilidade, em tese, de adoção de
postura colaborativa e, ainda em tese, a concessão judicial de sanção premial
condizente com esse comportamento.
Discricionariedade regrada que
não se submete à valoração do Poder Judiciário
A celebração ou não do acordo
está dentro daquilo que se chama de discricionariedade regrada do Ministério
Público.
A PGR justificou que os elementos
de colaboração apresentados pelo acusado não se revestiam da consistência
necessária para a elucidação das imputações. Além disso, não conclusivos quanto
à certificação das irregularidades apontadas.
Essa motivada valoração, sob o
ponto de vista negocial, não se submete ao crivo do Poder Judiciário, sob pena
de se afetar, diretamente, a própria formação da independente convicção
ministerial. Por isso, com fundamento no princípio acusatório, cabe
exclusivamente ao Ministério Público avaliar a conveniência e a oportunidade de
celebração do ato negocial, resguardando-se os direitos do agente em caso de
não formalização do acordo de efetiva colaboração ao exame dessa colaboração
pelo Estado-juiz na fase de sentença.
Aplicação, por analogia, do art.
28
Se o
colaborador não se conforma com a recusa do membro do MP em celebrar o acordo,
ele poderá questionar esse ato internamente, pedindo a análise do
Procurador-Geral de Justiça (se for no âmbito do MPE) ou da Câmara de Coordenação
e Revisão (no caso do MPF), aplicando, assim, por analogia, a regra do art. 28
do CPP (art. 62, IV, da LC 75/93):
Art.
28. Se o órgão do Ministério Público, ao
invés de apresentar a denúncia, requerer o arquivamento do inquérito policial
ou de quaisquer peças de informação, o juiz, no caso de considerar
improcedentes as razões invocadas, fará remessa do inquérito ou peças de
informação ao procurador-geral, e este oferecerá a denúncia, designará outro
órgão do Ministério Público para oferecê-la, ou insistirá no pedido de
arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a atender.
Art. 62. Compete às Câmaras de
Coordenação e Revisão:
(...)
IV - manifestar-se sobre o arquivamento
de inquérito policial, inquérito parlamentar ou peças de informação, exceto nos
casos de competência originária do Procurador-Geral;
Acréscimos feitos pelo Min.
Gilmar Mendes
O Min. Gilmar Mendes acompanhou o
voto do relator (Min. Edson Fachin), mas, à guisa de obiter dictum, assentou premissas ao modelo de colaboração premiada
brasileiro diante de omissões relevantes na legislação pertinente.
Para o Min. Gilmar Mendes, a
negativa de realização do acordo por parte do órgão acusador deve ser
devidamente motivada e orientada pelos critérios definidos em lei. Essa recusa
também pode ser objeto de controle por órgão superior no âmbito do Ministério
Público, por aplicação analógica do art. 28 do CPP. Além disso, as informações
ou elementos produzidos por investigados em negociações de acordo de
colaboração premiada não formalizado não podem ser utilizadas na persecução
penal. Em outras palavras, se o acordo não foi firmado, o MP não pode utilizar
os elementos fornecidos pelo indivíduo que tentou celebrá-lo.
Por fim, o juiz, na sentença,
pode conceder benefício ao investigado mesmo sem prévia homologação de acordo
de colaboração premiada.
Essas premissas foram endossadas
pelos Ministros Celso de Mello e Ricardo Lewandowski.
O ministro Celso de Mello
ressaltou a importância de se estabelecer esses parâmetros em ordem a evitar
abusos por parte do Estado e frustração da confiança depositada nos seus
agentes por potenciais agentes colaboradores.
Em suma:
Não
existe direito líquido e certo a compelir o Ministério Público à celebração do
acordo de delação premiada, diante das características desse tipo de acordo e
considerando a necessidade de distanciamento que o Estado-juiz deve manter
durante o cenário investigado e a fase de negociação entre as partes do cenário
investigativo.
O
acordo de colaboração premiada, além de meio de obtenção de prova, constitui-se
em um negócio jurídico processual personalíssimo, cuja conveniência e
oportunidade estão submetidos à discricionariedade regrada do Ministério
Público e não se submetem ao escrutínio do Estado-juiz. Em outras palavras, trata-se
de ato voluntário, insuscetível de imposição judicial.
STF. 2ª Turma. MS 35693 AgR/DF, Rel. Min. Edson Fachin, julgado
em 28/5/2019 (Info 942).