Olá, amigos do Dizer o Direito,
Fazia tempo que eu não via um primeiro semestre tão repleto
de novidades legislativas.
Foi publicada ontem (04/07/2019) a emenda constitucional nº
101/2019, que acrescenta o § 3º ao art. 42 da Constituição Federal para
estender aos militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios o
direito à acumulação de cargos públicos prevista no art. 37, inciso XVI.
Vamos entender do que se trata.
É
possível que o servidor acumule mais de um cargo ou emprego público?
REGRA:
NÃO. A CF/88 proíbe, em regra, a acumulação remunerada de cargos ou empregos
públicos.
EXCEÇÕES: a própria CF/88 prevê
exceções a essa regra. Veja o que dispõe o art. 37, XVI:
Art. 37 (...)
XVI - é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos,
exceto, quando houver compatibilidade de horários, observado em qualquer caso o
disposto no inciso XI:
a) a de dois cargos de professor;
b) a de um cargo de professor com outro técnico ou científico;
c) a de dois cargos ou empregos privativos de profissionais de
saúde, com profissões regulamentadas;
Esse art. 37, XVI, da CF/88 aplica-se
também aos militares das Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica) ou
vale apenas para os servidores públicos civis?
Antes
da EC 77/2014
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Depois
da EC 77/2014
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Havia polêmica sobre o tema, existindo uma grande parcela
da doutrina afirmando que não valia para os militares, uma vez que o art.
142, § 3º, VIII, da CF/88 diz quais incisos do art. 37 se aplicam aos membros
das Forças Armadas e esse dispositivo, até então, não mencionava o inciso XVI
do art. 37.
Veja no quadro abaixo a redação anterior.
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A EC 77/2014 corrigiu essa situação ao inserir, no art.
142, § 3º, VIII, a menção à alínea “c” do inciso XVI do art. 37, permitindo
expressamente que os militares das Forças Armadas acumulem cargos/empregos de
profissionais da saúde.
Veja no quadro abaixo a redação dada pela EC 77/2014.
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Art. 142 (...)
§ 3º Os membros das Forças Armadas são denominados
militares, aplicando-se-lhes, além das que vierem a ser fixadas em lei, as
seguintes disposições:
(...)
VIII - aplica-se aos militares o disposto no art. 7º,
incisos VIII, XII, XVII, XVIII, XIX e XXV e no art. 37, incisos XI, XIII, XIV
e XV;
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Art. 142 (...)
§ 3º Os membros das Forças Armadas são denominados
militares, aplicando-se-lhes, além das que vierem a ser fixadas em lei, as
seguintes disposições:
(...)
VIII - aplica-se aos militares o disposto no art. 7º,
incisos VIII, XII, XVII, XVIII, XIX e XXV, e no art. 37, incisos XI, XIII,
XIV e XV, bem como, na forma da lei e com prevalência da
atividade militar, no art. 37, inciso XVI, alínea “c”;
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A inovação da EC 77/2014 foi tímida e ficou no meio do
caminho. Isso, ao meu sentir, deveria ter estabelecido que todo o inciso XVI do
art. 37 fosse aplicado aos militares, e não apenas a alínea “c”. Não há nenhuma
razão lógica ou de interesse público em se vedar, por exemplo, que um médico
militar acumule essa atividade com a de professor de uma instituição pública de
ensino.
E os militares estaduais (policiais militares e bombeiros militares),
eles também possuem direito à acumulação de cargos?
Assim que foi publicada a EC 77/2014, defendi essa posição.
Sustentei
o entendimento de que, apesar de a EC 77/2014 ter modificado o art. 142, que
trata sobre os “membros das Forças Armadas”, essa alteração também deveria ser aos
militares dos Estados (Polícia Militar e Corpo de Bombeiros) por força do § 1º
do art. 42 da CF/88, que preconiza o seguinte:
Art. 42 (...)
§ 1º Aplicam-se aos militares dos Estados, do Distrito Federal e
dos Territórios, além do que vier a ser fixado em lei, as disposições do art.
14, § 8º; do art. 40, § 9º; e do art. 142, §§ 2º e 3º, cabendo
a lei estadual específica dispor sobre as matérias do art. 142, § 3º, inciso X,
sendo as patentes dos oficiais conferidas pelos respectivos governadores.
O
STJ acolheu esse entendimento:
RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. ACUMULAÇÃO DE CARGOS PÚBLICOS
PRIVATIVOS DE MÉDICO. MILITAR ESTADUAL (CORPO DE BOMBEIROS MILITAR DO ESTADO DE
GOIÁS) E CIVIL (HOSPITAL DAS CLÍNICAS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DE
GOIÁS). EMENDA CONSTITUCIONAL N.º 77/2014. PREVISÃO EXPRESSA.
1. A jurisprudência desta Corte admite a acumulação de cargos
privativos de médico por militares. Precedentes.
2. A Emenda Constitucional n.° 77/2014 alterou a redação do
inciso II do § 3º do art. 142 da Constituição Federal para permitir,
expressamente, a acumulação, por militares, de dois cargos públicos privativos
de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas.
3. Recurso ordinário provido. Segurança concedida.
(RMS 34.239/GO, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, julgado
em 25/10/2016, DJe 09/11/2016)
Desse
modo, desde a EC 77/2014, não havia mais qualquer dúvida de que os militares
estaduais poderiam acumular “dois cargos ou empregos privativos de
profissionais de saúde, com profissões regulamentadas”, ou seja, o art. 37,
XVI, “c”, da CF/88 já se aplicava a eles.
O
que fez a EC 101/2019?
Acrescentou
um parágrafo ao art. 42 da CF/88, deixando expresso que todo inciso XVI do art.
37 é aplicado aos militares estaduais. Veja a redação do dispositivo inserido:
Art. 42 (...)
§ 3º Aplica-se aos militares dos Estados, do Distrito Federal e
dos Territórios o disposto no art. 37, inciso XVI, com prevalência da atividade
militar. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 101/2019)
Vamos
analisar cada uma das alíneas do inciso XVI indicando as peculiaridades
aplicáveis aos militares dos Estados.
Alínea
“a”: dois cargos de professor
Art. 37 (...)
XVI - é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos,
exceto, quando houver compatibilidade de horários, observado em qualquer caso o
disposto no inciso XI:
a) a de dois cargos de professor;
Exemplo:
Aqui podemos imaginar o caso do Policial Militar (ou
Bombeiro Militar) que exerce as funções de professor em uma instituição de
ensino militar (ex: colégio da Polícia Militar). Este militar poderá também
exercer o cargo de professor da rede pública de ensino, por exemplo.
Alínea “b”: um cargo de professor com outro técnico ou científico;
Art. 37 (...)
XVI - é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos,
exceto, quando houver compatibilidade de horários, observado em qualquer caso o
disposto no inciso XI:
(...)
b) a de um cargo de professor com outro técnico ou científico;
Exemplos:
Aqui podemos imaginar o exemplo do Coronel PM Médico (cargo técnico)
que acumula o cargo de professor concursado da Universidade Pública.
Outro exemplo é o do Tenente Músico PM (integrante do Quadro
de Oficiais Músicos da PM – cargo técnico) que pode acumular o cargo de Professor
da rede estadual de educação, na disciplina de Educação Artística (Música),
havendo compatibilidade de horários.
Cargo técnico ou científico
O conceito de “cargo técnico ou científico” não exige,
necessariamente, que se trate de um cargo de nível superior.
Cargo técnico ou científico, para fins de acumulação com o
de professor, nos termos do art. 37, XVII, da CF/88 é aquele para cujo
exercício sejam exigidos conhecimentos técnicos específicos e habilitação
legal, não necessariamente de nível superior (STJ. 5ª Turma. RMS 20.033/RS,
Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, julgado em 15/02/2007).
Cargo técnico
Cargo técnico “é aquele que requer conhecimento específico
na área de atuação do profissional, com habilitação específica de grau
universitário ou profissionalizante de 2º grau” (STJ. 2ª Turma. RMS 42.392/AC,
Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 10/02/2015). É aquele que exige da pessoa
um conjunto de atribuições ligadas ao conhecimento específico de uma área do
saber.
Segundo já decidiu o STJ, somente se pode considerar que um
cargo tem natureza técnica se ele exigir, no desempenho de suas atribuições, a
aplicação de conhecimentos especializados de alguma área do saber.
Não podem ser considerados cargos técnicos aqueles que
impliquem a prática de atividades meramente burocráticas, de caráter repetitivo
e que não exijam formação específica. Nesse sentido, atividades de agente
administrativo, descritas como atividades de nível médio, não se enquadram no
conceito constitucional (STF. 1ª Turma. RMS 28497/DF, rel. orig. Min. Luiz Fux,
red. p/ o acórdão Min. Cármen Lúcia, julgado em 20/5/2014. Info 747).
Definição de cargo científico
Cargo científico “é o conjunto de atribuições cuja execução
tem por finalidade a investigação coordenada e sistematizada de fatos,
predominantemente de especulação, visando a ampliar o conhecimento humano.”
(STJ. 5ª Turma. RMS 28.644/AP, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 06/12/2011).
Alínea “c”: dois cargos ou empregos de profissionais de saúde
Art. 37 (...)
XVI - é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos,
exceto, quando houver compatibilidade de horários, observado em qualquer caso o
disposto no inciso XI:
(...)
c) a de dois cargos ou empregos privativos de profissionais de
saúde, com profissões regulamentadas;
Exemplos:
Em diversos Estados, existem Quadros de Oficiais Policiais
Militares de Saúde ou Oficiais Bombeiros Militares de Saúde, isto é, Oficiais
da Polícia Militar ou do Corpo de Bombeiros que exercem atividades de saúde. É
o caso, por exemplo, do Distrito Federal, onde existem os cargos de Coronel PM
Médico, Tenente-Coronel PM Médico, Major PM Médico etc.
Havendo compatibilidade de horários, esses militares podem
exercer cumulativamente cargos ou empregos públicos privativos de profissionais
de saúde.
Assim, podemos ter, por exemplo, um Major PM Médico exercendo
cumulativamente o cargo de médico “civil” em um hospital estadual.
Um outro exemplo, já inclusive, enfrentado pela
jurisprudência foi o caso de um Capitão, Especialidade Enfermeiro, do Corpo de
Bombeiros Militar do Estado do Rio de Janeiro que acumulava o cargo de
Enfermeiro do Hospital Geral de Bonsucesso (RJ), cumulação reputada legítima
pelo STJ:
(...) O Superior Tribunal de Justiça admite a acumulação de dois
cargos privativos na área de saúde, no âmbito das esferas civil e militar,
desde que o servidor público não desempenhe as funções tipicamente exigidas
para a atividade castrense, e sim atribuições inerentes a profissões civis,
diante da interpretação sistemática do art. 37, XVI, alínea "c", c/c
os arts. 42, § 1º, e 142, § 3º, II, da Constituição de 1988.
STJ. 2ª Turma. AgInt no REsp 1698599/RJ, Rel. Min. Herman
Benjamin, julgado em 20/03/2018.
Um terceiro exemplo foi o caso de um Capitão Médico do
Quadro de Saúde do Corpo de Bombeiros Militar do Estado de Goiás (carga horária
de 20 horas semanais) que acumulava o cargo de Médico Cirurgião-Geral no
Hospital das Clínicas da Universidade Federal do Estado de Goiás (carga horária
de 40 horas semanais). A 1ª Turma do STJ reputou legítima essa acumulação: RMS
34.239/GO, Rel. Min. Sérgio Kukina, julgado em 25/10/2016.
Privativo de profissionais de saúde, com profissões
regulamentadas
Chamo a atenção para o fato de que o cargo ou emprego deve
ser privativo de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas. Como
exemplos, podemos citar: enfermeiros, médicos, fisioterapeutas e nutricionistas.
Compatibilidade de horários
Importante chamar atenção para o fato de que a acumulação
somente é permitida se houver compatibilidade de horários.
Assim, se as jornadas de trabalho forem coincidentes (no
todo ou em parte), não será possível a acumulação.
Se o militar acumular cargos em uma dessas hipóteses acima elencadas,
ele poderá receber acima do teto? Em caso de acumulação lícita de cargos, o
teto será considerado para a remuneração de cada cargo isoladamente?
SIM. O limite do teto deverá ser considerado separadamente
para cada um dos vínculos.
Nos casos autorizados constitucionalmente de acumulação de
cargos, empregos e funções, a incidência do art. 37, XI, da Constituição
Federal pressupõe consideração de cada um dos vínculos formalizados, afastada a
observância do teto remuneratório quanto ao somatório dos ganhos do agente
público.
STF. Plenário. RE 612975/MT e RE 602043/MT, Rel. Min. Marco
Aurélio, julgados em 26 e 27/4/2017 (repercussão geral) (Info 862).
Ex: se Coronel PM Médico for também médico professor da UnB,
ele irá receber seu subsídio integral como Ministro e mais a remuneração
decorrente do magistério. Nesse caso, o teto seria considerado especificamente
para cada cargo, sendo permitido que ele receba acima do limite previsto no
art. 37, XI da CF se considerarmos seus ganhos globais.
(Im)possibilidade de acumulação do cargo de militar estadual com cargo
técnico ou científico
Um tema polêmico a respeito da EC 101/2019.
No parecer que analisou na CCJ o projeto que deu origem a
esta EC, o Relator Senador Acir Gurgacz afirmou o seguinte:
“Assim, o que se objetiva, na
prática, é a possibilidade de os membros das Polícias Militares e dos Corpos de
Bombeiros Militares poderem acumular seus cargos de militares dos Estados com:
i) um cargo de professor; ii) um cargo técnico ou científico;
ou iii) um cargo ou emprego privativo de profissionais de saúde, com profissões
regulamentadas. Esse é o verdadeiro espírito da alteração legislativa
pretendida.”
Ainda que essa tenha sido a intenção do legislador
constituinte reformador, penso que a segunda hipótese acima listada (acumular o
cargo de militar estadual com um “um cargo técnico ou científico”) não foi
consagrada pela EC 101/2019 e não é permitida pelo Texto Constitucional.
Não há qualquer elemento de interpretação que permita se
chegar a essa conclusão proposta pelo Senador.
Acompanhe o raciocínio.
O § 3º do art. 42 afirmou o seguinte: aplica-se aos
militares estaduais o disposto no art. 37, inciso XVI, com prevalência da
atividade militar.
Por sua vez, o inciso XVI do art. 37 afirma que existem três
hipóteses de acumulação válida de cargos públicos:
a) dois cargos de professor;
b) um cargo de professor com outro técnico ou científico;
c) dois cargos ou empregos privativos de profissionais de
saúde, com profissões regulamentadas.
Não existe, portanto, a possibilidade de acumulação do cargo
de militar estadual com outro cargo técnico ou científico.
A única oportunidade em que o art. 37, XVI fala em “cargo
técnico ou científico” é na alínea “b”, mencionando a possibilidade de que seja
acumulado com um cargo de professor.
Desse modo, a hipótese listada pelo Senador no item “ii” do
seu parecer seria uma quarta hipótese, uma alínea “d” do inciso XVI do art. 37,
que, obviamente, não existe.
Logo, repito, ainda que se possa cogitar que a intenção foi
essa, o que se imagina não apenas pelo parecer, mas também pelas entrevistas
dos congressistas após a promulgação da emenda, o que se constata é que o texto
aprovado não diz isso.
Vale ressaltar que os servidores públicos civis não podem
acumular dois cargos técnicos ou científicos, sendo irrazoável que haja distinção
de tratamento jurídico quanto ao tema.
Importante asseverar, por fim, que a regra é a proibição de
acumulação remunerada de cargos públicos. As alíneas do inciso XVI são
exceções. As exceções devem ser sempre interpretadas restritivamente. Dessa
feita, não é possível a criação de novas exceções que não estejam expressamente
listadas no dispositivo constitucional.
A EC 101/2019 pode ser aplicada aos militares das Forças Armadas?
NÃO. O novo § 3º do art. 42 da CF/88, inserido pela EC
101/2019, é exclusivo dos militares dos Estados, do Distrito Federal e dos
Territórios.
As regras do art. 42 não se aplicam aos militares das Forças
Armadas, que possuem regramento próprio no art. 142 da CF/88.
Assim, temos o seguinte cenário:
• aos militares dos Estados/DF: são permitidas as hipóteses
de acumulação de cargos previstas nas alíneas “a”, “b” e “c” do inciso XVI do
art. 37 da CF/88;
• aos militares das Forças Armadas: somente é permitida a
hipótese de acumulação de cargos tratada na alínea “c” do inciso XVI do art. 37
(“dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, com profissões
regulamentadas”).
Márcio André Lopes Cavalcante
Professor