Lei
nº 7.716/89
A
Lei nº 7.716/89 prevê os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor.
O art. 20 da Lei nº 7.716/89, por
exemplo, trata sobre o crime de racismo:
Art. 20.
Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor,
etnia, religião ou procedência nacional.
Pena:
reclusão de um a três anos e multa.
Além dele, existem outros delitos
tipificados pela Lei nº 7.716/89, como, por exemplo, os arts. 5º e 13:
Art. 5º
Recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, negando-se a servir,
atender ou receber cliente ou comprador.
Pena:
reclusão de um a três anos.
Art. 13.
Impedir ou obstar o acesso de alguém ao serviço em qualquer ramo das Forças
Armadas.
Pena:
reclusão de dois a quatro anos.
O
grande ponto, contudo, da Lei nº 7.716/89 é que ela prevê que a punição para
essas condutas ocorre se o preconceito manifestado for em razão da raça ou da cor
da vítima. O art. 20 fala também em preconceito relacionado com a etnia,
religião e procedência nacional.
Preconceito
É
o pensamento que existe em determinados indivíduos no sentido de que certas
pessoas ou grupos sociais são inferiores, nocivos, prejudiciais.
“O
preconceito é subjetivo, interior, está no intelecto da pessoa, configura um
pré-julgamento negativo com relação a outro indivíduo ou grupo.” (LAURIA,
Mariano Paganini. Leis Penais Especiais comentadas
artigo por artigo. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 534).
Discriminação
É
a exteriorização do preconceito por meio da prática de atos materiais.
Raça
O
conceito de “raça” é amplo e não está limitado a uma definição biológica.
Em
outras palavras, o conceito de raça não exige que as pessoas possuam as mesmas
características genéticas, tais como cor do cabelo, dos olhos e da pele
(LAURIA, Mariano Paganini. ob. cit.,
p. 534).
“A
divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente
político-social.” (Min. Maurílio Correia no HC 82424, julgado pelo STF em
17/09/2003).
Assim,
por exemplo, os judeus são uma raça, mesmo que os indivíduos que componham essa
coletividade possuam características genéticas distintas entre si.
Cor
É
a cor que a pessoa possui. É tonalidade, a pigmentação da pele.
Etnia
São
os grupos humanos que apresentam aspectos comuns, tais como língua, religião e
maneiras de agir. Trata-se do “conceito mais adotado e recomendado pela
sociologia hodiernamente para designar o que antes era entendido por ‘raça’”.
(LAURIA, Mariano Paganini. ob. cit.,
p. 507).
Exemplos:
índios, árabes, judeus, quilombolas.
Religião
“Religião
pode ser conceituada como conjunto de crenças relacionadas ao divino e sagrado,
permeada por uma série de rituais e códigos morais derivados de tais
convicções. Não se inclui o ateísmo (ausência de crença religiosa),
prevalecendo o entendimento de que este é justamente a negação da crença na
existência de uma divindade superior, motivo pelo qual não poderia ser
equiparado à religião, constituindo-se em espécie de doutrina filosófica. A
discriminação por ateísmo seria, assim, fato atípico.” (LAURIA, Mariano
Paganini. ob. cit., p. 508).
Procedência
nacional
É
o lugar de onde a pessoa veio, ou seja, o lugar onde ela nasceu ou morava.
Interessante
ressaltar que, segundo a doutrina, este conceito abrange tanto os estrangeiros
(ex: venezuelanos, haitianos) como também os nacionais que se deslocam dentro
do país (exs: nortistas, nordestinos, sulistas etc.).
A
Lei nº 7.716/89 previu, expressamente, que os crimes nela tipificados podem ser
aplicados em caso de manifestações de preconceito relacionadas com orientação
sexual? A Lei nº 7.716/89 prevê, expressamente, punição para condutas
homofóbicas e transfóbicas?
NÃO.
A Lei nº 7.716/89 não traz, expressamente, previsão para punição de condutas homofóbicas
e transfóbicas.
A
doutrina e a jurisprudência, por sua vez, afirmava que o rol de
elementos de preconceito e discriminação do art. 20 era taxativo. Nesse
sentido: STF. 1ª Turma. Inq 3590/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em
12/8/2014.
Projetos
de lei
Tramitavam
no Congresso Nacional alguns projetos de lei buscando incluir, expressamente,
na Lei nº 7.716/89, como crime as condutas homofóbicas e tansfóbicas. Contudo,
sempre se observou uma resistência muito grande de certos setores da sociedade
com a punição de tais condutas e, em razão disso, esses projetos nunca foram
aprovados.
Mandado
de injunção
Diante
do cenário acima descrito, em 2012, a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e
Transgêneros (ABGLT) impetrou mandado de injunção no STF no qual pediu o reconhecimento
de que a homofobia e a transfobia se enquadram no conceito de racismo ou,
subsidiariamente, que sejam entendidas como discriminações atentatórias a
direitos e liberdades fundamentais.
Com
fundamento nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição Federal, a ABGLT
sustentou que a demora do Congresso Nacional é inconstitucional, tendo em vista
o dever de editar legislação criminal sobre a matéria.
O
Min. Edson Fachin foi sorteado relator deste mandado de injunção.
ADO
Cerca
de um ano depois, em 2013, o Partido Popular Socialista (PPS) ajuizou ação
direta de inconstitucionalidade por omissão (ADO) na qual pediu que o STF
declarasse a omissão do Congresso Nacional por não ter votado projeto de lei
que criminaliza atos de homofobia.
A
ação foi proposta a fim de que seja imposto ao Poder Legislativo o dever de
elaborar legislação criminal que puna a homofobia e a transfobia como espécies
do gênero “racismo”.
A
criminalização específica, conforme o partido, decorre da ordem constitucional
de legislar relativa ao racismo - crime previsto no art. 5º, XLII da
Constituição Federal - ou, subsidiariamente, às discriminações atentatórias a
direitos e liberdades fundamentais (art. 5º, XLI) ou, ainda, também
subsidiariamente, ao princípio da proporcionalidade na acepção de proibição de
proteção deficiente (art. 5º, LIV).
De
acordo com o partido, o Congresso Nacional tem se recusado a votar o projeto de
lei que visa efetivar tal criminalização.
O
Min. Celso de Mello foi designado como relator da ADO.
Síntese
dos argumentos
As
duas ações desenvolveram a seguinte linha de raciocínio:
• a CF/88 possui mandados de
criminalização, ou seja, “ordens” dadas pelo legislador constituinte ao
legislador infraconstitucional (Congresso Nacional) no sentido de que ele
deveria editar lei punindo criminalmente condutas que configurem discriminação
e racismo. Esses mandados de criminalização estão em dois dispositivos
constitucionais:
Art. 5º
(...)
XLI - a
lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades
fundamentais;
XLII - a
prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à
pena de reclusão, nos termos da lei;
•
o Congresso Nacional já puniu diversas condutas discriminatórias na Lei nº
7.716/89, mas continua sendo omisso que tange à homofobia e transfobia. Logo,
essa omissão precisa ser corrigida;
•
a Lei nº 7.716/89 pune condutas racistas. Enquanto não se edita uma lei
específica para se punir as condutas homofóbicas e transfóbicas, deve-se aplicar
os crimes previstos na Lei nº 7.716/89 para tais condutas. Isso porque o
conceito de racismo é amplo, não ficando limitado a uma definição biológica.
Depois
de muitas sessões de discussão, o que decidiu o STF? O STF concordou com as
ações propostas?
SIM.
Quanto
ao MI:
O
STF, por maioria, julgou procedente o mandado de injunção para:
a)
reconhecer a mora inconstitucional do Congresso Nacional e;
b)
aplicar, com efeitos prospectivos, até que o Congresso Nacional venha a
legislar a respeito, a Lei nº 7.716/89 a fim de estender a tipificação prevista
para os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia,
religião ou procedência nacional à discriminação por orientação sexual ou
identidade de gênero.
Quanto
à ADO:
O
STF, também por maioria, julgou a ADO procedente, com eficácia geral e efeito
vinculante, para:
a)
reconhecer o estado de mora inconstitucional do Congresso Nacional na
implementação da prestação legislativa destinada a cumprir o mandado de
incriminação a que se referem os incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição,
para efeito de proteção penal aos integrantes do grupo LGBT;
b)
declarar, em consequência, a existência de omissão normativa inconstitucional
do Poder Legislativo da União;
c) cientificar o Congresso Nacional,
para os fins e efeitos a que se refere o art. 103, § 2º, da Constituição c/c o
art. 12-H, caput, da Lei nº 9.868/99:
Art. 103
(...)
§ 2º
Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva
norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das
providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para
fazê-lo em trinta dias.
Da Decisão
na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão
Art. 12-H.
Declarada a inconstitucionalidade por omissão, com observância do disposto no
art. 22, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências
necessárias.
d)
dar interpretação conforme à Constituição, em face dos mandados constitucionais
de incriminação inscritos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Carta Política,
para enquadrar a homofobia e a transfobia, qualquer que seja a forma de sua
manifestação, nos diversos tipos penais definidos na Lei nº 7.716/89, até que
sobrevenha legislação autônoma, editada pelo Congresso Nacional por dois
motivos:
d.1)
porque as práticas homotransfóbicas qualificam-se como espécies do gênero
racismo, na dimensão de racismo social consagrada pelo Supremo Tribunal Federal
no julgamento plenário do HC 82.424/RS (caso Ellwanger), na medida em que tais
condutas importam em atos de segregação que inferiorizam membros integrantes do
grupo LGBT, em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero;
d.2)
porque tais comportamentos de homotransfobia ajustam-se ao conceito de atos de
discriminação e de ofensa a direitos e liberdades fundamentais daqueles que
compõem o grupo vulnerável em questão;
e)
declarar que os efeitos da interpretação conforme a que se refere a alínea “d”
somente se aplicarão a partir da data em que se concluir o presente julgamento.
O
tema é extremamente amplo e irei fazer um breve resumo dos principais
argumentos apresentados pelos Ministros
Min. Celso de Mello
Ausência
de proteção estatal condutas homofóbicas e transfóbicas
O
gênero e a orientação sexual constituem elementos essenciais e estruturantes da
própria identidade da pessoa humana e integram uma das mais íntimas e profundas
dimensões de sua personalidade.
No
entanto, devido à ausência de adequada proteção estatal, especialmente em razão
da controvérsia gerada pela denominada “ideologia de gênero”, os integrantes da
comunidade LGBT acham-se expostos a ações de caráter segregacionista, com
caráter homofóbico, que têm por objetivo limitar ou suprimir prerrogativas essenciais
de gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transgêneros e intersexuais, entre
outros.
Tais
práticas culminam no tratamento dessas pessoas como indivíduos destituídos de
respeito e consideração, degradados ao nível de quem não tem sequer direito a
ter direitos, por lhes ser negado, mediante discursos autoritários e
excludentes, o reconhecimento da legitimidade de sua própria existência.
Essa
visão de mundo, fundada na ideia artificialmente construída de que as
diferenças biológicas entre o homem e a mulher devem determinar os seus papéis
sociais, impõe uma inaceitável restrição às suas liberdades fundamentais, com a
submissão dessas pessoas a um padrão existencial heteronormativo, incompatível
com a diversidade e o pluralismo que caracterizam uma sociedade democrática, e,
ainda, a imposição da observância de valores que, além de conflitarem com sua
própria vocação afetiva, conduzem à frustração de seus projetos pessoais de
vida.
Existe
um dever imposto pela CF/88 ao Congresso Nacional para que se crie normas de
punição das condutas discriminatórias
A
Constituição Federal possui dois mandados de incriminação para condutas
discriminatórias: art. 5º, incisos XLI e XLII.
Assim,
é possível concluir que a omissão do Congresso Nacional em produzir normas
legais de proteção penal à comunidade LGBT traduz situação configuradora de
ilicitude, em afronta ao texto da CF/88.
Há descumprimento, por inércia estatal, de norma
impositiva de comportamento atribuído ao Parlamento
Na
tipologia das situações inconstitucionais, estamos diante do descumprimento,
por inércia estatal, de uma norma impositiva de determinado comportamento
atribuído ao poder público pela própria Constituição.
Trata-se,
portanto, de omissão abusiva no adimplemento da prestação legislativa.
Há
uma imposição constitucional de legislar e um estado de mora do legislador,
mora essa que já superou, de forma excessiva, qualquer prazo razoável,
considerando que a Constituição Federal foi editada em 1988.
Esse
cenário faz com que se chegue à conclusão de que estão presentes os requisitos
para a declaração de inconstitucionalidade por omissão.
ADO
como instrumento de concretização das cláusulas constitucionais frustradas
A
ação direta de inconstitucionalidade por omissão deve ser vista como instrumento
de concretização das cláusulas constitucionais frustradas pela inaceitável
omissão do poder público.
Isso
porque as imposições feitas pela Constituição não podem ficar na inadmissível
condição subalterna de um estatuto subordinado à vontade ordinária do
legislador comum.
Possibilidade
diante do reconhecimento da omissão
Pois
bem. Ficou reconhecido que há uma mora imputável ao Congresso Nacional. O Min.
Celso de Mello afirmou que haveria duas possibilidades de o STF agir diante
disso:
a)
apenas cientificar o Congresso Nacional para que ele adote, em prazo razoável,
as medidas necessárias à efetivação da norma constitucional (art. 103, § 2º,
c/c art. 12-H da Lei nº 9.868/99); ou
b)
reconhecer, imediatamente, que a homofobia e a transfobia enquadram-se,
mediante interpretação conforme à Constituição, na noção conceitual de racismo
prevista na Lei nº 7.716/89.
Mero
apelo ao legislador não tem sido eficaz
Para
o Min. Celso de Mello, o mero apelo ao legislador não tem se mostrado uma solução
eficaz, em razão da indiferença do Poder Legislativo, que, em determinadas
decisões anteriormente emanadas do STF, tem persistido em permanecer em estado
de inadimplemento da prestação legislativa que lhe incumbe promover.
Diante
disso, o STF, ao longo dos últimos trinta anos, evoluiu no plano
jurisprudencial em busca da construção de soluções que pudessem fazer cessar
esse estado de inconstitucional omissão normativa. Isso se deu, por exemplo, no
caso do direito de greve por servidores públicos no qual o STF determinou que,
diante da ausência da lei prevista no art. 37, VII, da CF/88, os servidores
públicos podem fazer greve, devendo ser aplicadas as leis que regulamentam a
greve para os trabalhadores da iniciativa privada (Lei nº 7.701/88 e Lei nº
7.783/89): STF. Plenário. MI 708, Rel.
Min. Gilmar Mendes, julgado em 25/10/2007.
Esse
exercício de interpretação não significa legislar (não se está usurpando a
competência do CN)
Para
o Ministro, essa postura adotada no caso da greve – que não se limita a
cientificar o Congresso da mora, fornecendo, desde logo, uma solução jurídica
para o caso – é um procedimento hermenêutico realizado pelo Poder Judiciário para
extrair a necessária interpretação dos diversos diplomas legais.
Segundo
o Ministro, isso não se confunde com o processo de elaboração legislativa, ou
seja, não se pode dizer que o STF esteja legislando.
O
processo de interpretação dos textos legais e da Constituição não importa em
usurpação das atribuições normativas dos demais poderes da República.
Conceito
de “raça”
O
conceito de “raça” que compõe a estrutura normativa dos tipos penais
incriminadores previstos na Lei nº 7.716/89 tem merecido múltiplas
interpretações, revestindo-se, por isso, de inegável conteúdo polissêmico (algo
que tem muitos significados).
Um
exemplo disso foi o célebre julgamento do “caso Ellwanger” (HC 82424), em
setembro de 2003, quando o STF manteve a condenação imposta ao escritor gaúcho
Siegfried Ellwanger por crime de racismo contra os judeus. Naquela ocasião, o
STF afastou a alegação da defesa de que os “judeus” não seriam uma “raça”.
Pode-se dizer, portanto, que o STF adotou uma espécie de conceito “social” de
raça.
(...) 3.
Raça humana. Subdivisão. Inexistência. Com a definição e o mapeamento do genoma
humano, cientificamente não existem distinções entre os homens, seja pela
segmentação da pele, formato dos olhos, altura, pêlos ou por quaisquer outras
características físicas, visto que todos se qualificam como espécie humana. Não
há diferenças biológicas entre os seres humanos. Na essência são todos iguais.
4. Raça e racismo. A divisão dos seres humanos
em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social.
Desse pressuposto origina-se o racismo que, por sua vez, gera a discriminação e
o preconceito segregacionista. (...)
STF.
Plenário. HC 82424, Relator p/ Acórdão Min. Maurício Corrêa, julgado em
17/09/2003.
Racismo
é um conceito aberto que abrange preconceitos contra pessoas em razão de sua
orientação sexual ou identidade de gênero
Assim,
a noção de racismo – para efeito de configuração típica dos delitos previstos
na Lei nº 7.716/89 – não se resume a um conceito de ordem estritamente
antropológica ou biológica. Projeta-se, ao contrário, numa dimensão abertamente
cultural e sociológica, a abranger até mesmo situações de agressão injusta
resultantes de discriminação ou de preconceito contra pessoas por sua
orientação sexual ou sua identidade de gênero.
Atos
homofóbicos e transfóbicos são formas contemporâneas de racismo
A
configuração de atos homofóbicos e transfóbicos como formas contemporâneas do
racismo objetiva preservar a incolumidade dos direitos da personalidade, como a
essencial dignidade da pessoa humana.
Busca
inibir, desse modo, comportamentos abusivos que possam, impulsionados por
motivações subalternas, disseminar criminosamente o ódio público contra outras
pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero.
Interpretação
conforme
Vale
ressaltar que a aplicação da Lei nº 7.716/89 para condutas homofóbicas e
transfóbicas resulta da aplicação do método da interpretação conforme.
Assim,
fazendo-se uma intepretação conforme do conceito de “raça”, previsto na Lei nº
7.716/89, chega-se à conclusão de que ele pode abranger também orientação
sexual e identidade de gênero.
Nas
exatas palavras do Min. Celso de Mello:
“A
constatação da existência de múltiplas expressões semiológicas propiciadas pelo
conteúdo normativo da ideia de “raça” permite reconhecer como plenamente
adequado o emprego, na presente hipótese, da técnica de decisão e de controle
de constitucionalidade fundada no método da interpretação conforme à
Constituição.”
Não
se trata de analogia
Atenção. Para o Min. Celso de Mello,
a construção que foi feita, ou seja, a aplicação da Lei nº 7.716/89 às condutas
homofóbica e transfóbicas, não é aplicação analógica. Para ele, houve apenas
interpretação conforme a Constituição. Confira:
“A solução propugnada não sugere a
aplicação analógica das normas penais previstas na Lei 7.716/1989 nem implica a
formulação de tipos criminais ou cominação de sanções penais.
É certo que, considerado o princípio
constitucional da reserva absoluta de lei formal, o tema pertinente à definição
de tipo penal e à cominação de sanção penal subsume-se ao âmbito das normas de
direito material, de natureza eminentemente penal, regendo-se, em consequência,
pelo postulado da reserva de parlamento.
Assim, inviável, em controle abstrato
de constitucionalidade, colmatar, mediante decisão desta Corte Suprema, a
omissão denunciada pelo autor da ação direta, procedendo-se à tipificação penal
de condutas atentatórias aos direitos e liberdades fundamentais dos integrantes
da comunidade LGBT.
Na verdade, a solução ora proposta
limita-se à mera subsunção de condutas homotransfóbicas aos diversos preceitos
primários de incriminação definidos em legislação penal já existente (Lei
7.716/1989), pois os atos de homofobia e de transfobia constituem concretas
manifestações de racismo, compreendido em sua dimensão social, ou seja, o
denominado racismo social.”
Não
há ofensa à liberdade religiosa
É
necessário destacar que a decisão, no presente caso, não implica a ocorrência
de qualquer ofensa ou dano potencial à liberdade religiosa, qualquer que seja a
dimensão em que aquela se projete.
A
liberdade religiosa faz parte do regime democrático e não pode nem deve ser
impedida pelo poder público nem submetida a ilícitas interferências do Estado.
A
adoção pelo Estado de meios destinados a impedir condutas homofóbicas e
transfóbicas em hipótese alguma poderá restringir ou suprimir a liberdade de
consciência e de crença, nem autorizar qualquer medida que interfira nas
celebrações litúrgicas ou que importe em cerceamento à liberdade de palavra,
seja como instrumento de pregação da mensagem religiosa, seja, ainda, como
forma de exercer o proselitismo em matéria confessional em espaços públicos ou
privados.
Há
que se preservar, portanto, a possibilidade de os líderes e membros das
religiões exporem suas narrativas, conselhos, lições ou orientações constantes
de seus livros sagrados, seja qual for a religião (como a Bíblia, a Torah, o
Alcorão, a Codificação Espírita, os Vedas hindus e o Dhammapada budista).
Essas
práticas não configuram delitos contra a honra, porque veiculados com o intuito
de divulgar o pensamento resultante do magistério teológico e da filosofia
espiritual que são próprios de cada uma dessas denominações confessionais. Tal
circunstância descaracteriza, por si só, o intuito doloso dos delitos contra a
honra, a tornar legítimos o discurso e a pregação como expressões dos
postulados de fé dessas religiões.
Em
caso de insultos, ofensas ou estimulo à violência, poderá haver crime
Por
outro lado, o direito de dissentir deixa de ser legítimo quando a sua
exteriorização ofender valores e bens jurídicos igualmente protegidos pela
ordem constitucional, como sucede com o direito de terceiros à incolumidade de
seu patrimônio moral.
Assim,
pronunciamentos de índole religiosa que extravasem (extrapolem) os limites da
livre manifestação de ideias, constituindo-se em insultos, ofensas ou em estímulo
à intolerância e ao ódio público contra os integrantes da comunidade LGBT, não
merecem proteção constitucional e não podem ser considerados liberdade de
expressão. Em tais situações, haverá crime.
Função
contramajoritária do STF
Para
o Min. Celso de Mello, este julgamento reflete a função contramajoritária que
incumbe ao STF desempenhar, no âmbito do Estado Democrático de Direito, em
ordem a conferir efetiva proteção às minorias.
É
uma função exercida no plano da jurisdição das liberdades.
Nesse
sentido, o STF desempenha o papel de órgão investido do poder e da
responsabilidade institucional de proteger as minorias contra eventuais
excessos da maioria ou contra omissões que se tornem lesivas, diante da inércia
do Estado, aos direitos daqueles que sofrem os efeitos perversos do
preconceito, da discriminação e da exclusão jurídica.
Assim,
para que o regime democrático não se reduza a uma categoria político-jurídica
meramente conceitual ou simplesmente formal, torna-se necessário assegurar às
minorias a plenitude de meios que lhes permitam exercer, de modo efetivo, os
direitos fundamentais assegurados a todos. Ninguém se sobrepõe, nem mesmo os
grupos majoritários, aos princípios superiores consagrados pela Constituição da
República.
Min.
Edson Fachin
A
CF/88 impõe um dever estatal de legislar (mandado de criminalização contra a
discriminação homofóbica e transfóbica) em seu art. 5º, XLI, da CF/88.
O
trâmite de projetos de lei sobre a matéria no Congresso Nacional não obsta o
conhecimento do mandado de injunção, haja vista jurisprudência do STF no
sentido de que esse fato não serve para afastar o reconhecimento da omissão
inconstitucional.
Há
um quadro de violações sistemáticas aos direitos da população LGBTI, constatado
também pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e pelo Conselho de
Direitos Humanos das Nações Unidas.
No
mérito, o ministro consignou que o direito constante do art. 5º, XLI, efetivamente
contém mandado de criminalização contra a discriminação homofóbica e
transfóbica.
Ante
a mora do Congresso Nacional, essa ordem comporta, até que seja suprida, a
colmatação pelo STF por meio de interpretação conforme da legislação de combate
à discriminação.
A
seu ver, conforme o inciso XLI, qualquer espécie de discriminação é atentatória
ao Estado Democrático de Direito, inclusive a que se fundamenta na orientação
sexual das pessoas ou na sua identidade de gênero.
Vale
ressaltar que, na ADI 4275, o STF consignou que o direito à igualdade sem
discriminações abrange a identidade ou expressão de gênero e a orientação
sexual. Ademais, no âmbito internacional, o posicionamento é na mesma direção.
O
princípio da proporcionalidade, na modalidade de proibição
de proteção insuficiente, é o fundamento pelo qual o STF tem reconhecido
que o Direito Penal pode ser um instrumento adequado para a proteção dos bens
jurídicos expressamente indicados pelo texto constitucional. Os tratados
internacionais de que a República brasileira é parte também contêm mecanismos
de proteção proporcional. À luz desses tratados, dessume-se da leitura da
CF/1988 um mandado constitucional de criminalização no tocante a toda e
qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais,
incluída a de orientação sexual e de identidade de gênero.
O
mandado de injunção é a garantia para a efetividade do direito protegido pelo
mandado de criminalização e que o STF compreendeu ser cabível ao Poder
Judiciário atuar nas hipóteses de inatividade ou omissão do Legislativo.
No
caso, além da falta de norma que proteja o público LGBT, verifica-se também uma
situação de ofensa ao princípio da igualdade. Isso porque condutas igualmente
reprováveis recebem tratamento jurídico distinto. Ex: impedir ou obstar acesso
à órgão da Administração Pública, ou negar emprego em empresa privada, por
preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional são condutas
típicas nos termos da Lei nº 7.716/89. Se as mesmas condutas fossem praticadas
com preconceito a homossexual ou transgênero, não haveria crime.
Dessa
maneira, a omissão legislativa em tipificar a discriminação por orientação
sexual ou identidade de gênero ofende um sentido mínimo de justiça ao sinalizar
a tolerância à violência dirigida a pessoa, como se não fosse digna de viver em
igualdade.
Toda
pessoa deve ser protegida contra qualquer ato que atinja sua dignidade. É
preciso dar sentido e concretude ao princípio constitucional da dignidade da
pessoa humana, que se torna passível de aplicação direta à situação em análise,
por ter sido seu conteúdo nitidamente violado.
É
certo que não pode o STF substituir o legislador, mas aqui há comando
constitucional para regulamentar situações concretas. Lei específica sobre o
tema deveria ter sido editada, porque o legislador constituinte originário,
desde 1988, vinculou o legislador derivado. A falta de norma inviabiliza o
exercício de direitos, e o texto constitucional não exclui o mandado de
injunção de qualquer seara específica de incidência.
O Min. Fachin também sustentou que o STF não está fazendo analogia in malam partem ao aplicar a Lei nº 7.716/89 para manifestações homofóbicas
ou transfóbicas. A CF contém expresso comando de punição penal para a
discriminação homofóbica e a extensão prospectiva da lei de discriminação
racial, até a edição específica de norma pelo Poder Legislativo, não viola o
princípio da anterioridade da lei penal.
Min.
Alexandre de Moraes
O
Min. Alexandre de Moraes também acompanhou os relatores pela procedência das
ações.
Em
seu voto, o reconheceu a inconstitucionalidade por omissão do Congresso
Nacional em editar norma protetiva à comunidade LGBTI. Segundo ele, a atuação
do Congresso Nacional em relação a grupos tradicionalmente vulneráveis foi
sempre no sentido de que a ampla proteção depende de lei penal. O Congresso
atuou dessa forma em relação às crianças e aos adolescentes, aos idosos, às
pessoas com deficiência, às mulheres e até aos consumidores, No entanto,
passados 30 anos da Constituição Federal, só a discriminação homofóbica e
transfóbica permanece sem nenhum tipo de aprovação. O único caso em que o
próprio Congresso não seguiu o seu padrão.
A
compreensão de que as práticas homofóbicas configuram racismo social, segundo o Ministro, não ofendem a liberdade
religiosa, que é consagrada constitucionalmente.
Min.
Roberto Barroso
O
Mi. Luís Roberto Barroso também reconheceu a omissão legislativa. Ele observou
que é papel do STF, no entanto, estabelecer diálogo respeitoso com o Congresso
e também com a sociedade. “Se o Congresso atuou, a sua vontade deve prevalecer.
Se não atuou e havia um mandamento constitucional nesse sentido, que o Supremo
atue para fazer valer o que está previsto na Constituição”.
A
regra geral, afirmou, é a de autocontenção, deixando o maior espaço possível
para a atuação do Legislativo. “Porém, quando estão em jogo direitos
fundamentais ou a preservação das regras do jogo democrático, se justifica uma
postura mais proativa do STF”. Esse é o caso dos autos.
Barroso
explicou que a punição para atos de homofobia e transfobia deve ser de natureza
criminal por três razões: a relevância do bem jurídico tutelado e a
sistematicidade de violação a este direito, o fato de que outras discriminações
são punidas pelo direito penal e a circunstância de que a punição
administrativa não é suficiente, uma vez que não coíbe de maneira relevante as
violências homofóbicas. “Deixar de criminalizar a homofobia seria tipicamente
uma hipótese de proteção deficiente”.
Afirmou
que a solução dada (aplicar a Lei do Racismo) não configura analogia nem
interpretação extensiva. Isso porque no conceito de racismo firmado pelo STF,
estão colhidas as situações tipificadas na lei.
Por
fim, o ministro também acolheu o pedido para interpretar o Código Penal
conforme a Constituição para fixar que, se a motivação de homicídio for a
homofobia, estará caracterizado o motivo fútil ou torpe, constituindo
circunstância agravante ou qualificadora.
Min.
Cármen Lúcia
A
Min. Cármen Lúcia acompanhou os relatores pela procedência dos pedidos. Ela
avaliou que, após tantas mortes, ódio e incitação contra homossexuais, não há
como desconhecer a inércia do legislador brasileiro e afirmou que tal omissão é
inconstitucional.
Min.
Gilmar Mendes
O
Min. Gilmar Mendes acompanhou a maioria dos votos pela procedência das ações.
Além de identificar a inércia do Congresso Nacional, ele entendeu que a
interpretação apresentada pelos relatores de que a Lei do Racismo também pode
alcançar os integrantes da comunidade LGBT é compatível com a Constituição
Federal.
Min.
Ricardo Lewandowski (vencido)
O
Min. Ricardo Lewandowski reconheceu a mora legislativa e a necessidade de dar
ciência dela ao Congresso Nacional a fim de que seja produzida lei sobre o
tema. No entanto, entendeu que a homofobia e a transfobia não se enquadram na
Lei do Racismo.
É
indispensável a existência de lei para que seja viável a punição penal de
determinada conduta.
“A
extensão do tipo penal para abarcar situações não especificamente tipificadas
pela norma incriminadora parece-me atentar contra o princípio da reserva legal,
que constitui uma garantia fundamental dos cidadãos que promove a segurança
jurídica de todos”.
Min.
Aurélio Aurélio (vencido)
Para
o Min. Marco Aurélio, a Lei do Racismo não pode ser ampliada em razão da
taxatividade dos delitos expressamente nela previstos. Ele considerou que a
sinalização do STF para a necessária proteção das minorias e dos grupos
socialmente vulneráveis, por si só, contribui para uma cultura livre de todo e
qualquer preconceito e discriminação, preservados os limites da separação dos
Poderes e da reserva legal em termos penais.
Min.
Dias Toffoli (vencido)
O
Min. Dias Toffoli acompanhou o ministro Ricardo Lewandowski pela procedência
parcial dos pedidos, com a mera notificação do Congresso Nacional acerca da
mora.
Teses
fixadas pelo STF:
1.
Até que sobrevenha lei emanada do Congresso Nacional destinada a implementar os
mandados de criminalização definidos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da
Constituição da República, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou
supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de
gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em
sua dimensão social, ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação
típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei nº 7.716, de
08.01.1989, constituindo, também, na hipótese de homicídio doloso,
circunstância que o qualifica, por configurar motivo torpe (Código Penal, art.
121, § 2º, I, “in fine”);
2.
A repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe ou
limita o exercício da liberdade religiosa, qualquer que seja a denominação
confessional professada, a cujos fiéis e ministros (sacerdotes, pastores,
rabinos, mulás ou clérigos muçulmanos e líderes ou celebrantes das religiões
afro-brasileiras, entre outros) é assegurado o direito de pregar e de divulgar,
livremente, pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, o seu
pensamento e de externar suas convicções de acordo com o que se contiver em
seus livros e códigos sagrados, bem assim o de ensinar segundo sua orientação
doutrinária e/ou teológica, podendo buscar e conquistar prosélitos e praticar
os atos de culto e respectiva liturgia, independentemente do espaço, público ou
privado, de sua atuação individual ou coletiva, desde que tais manifestações
não configurem discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações que
incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão
de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero;
3.
O conceito de racismo, compreendido em sua dimensão social, projeta-se para
além de aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos, pois resulta, enquanto
manifestação de poder, de uma construção de índole histórico-cultural motivada
pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao controle ideológico,
à dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, da
dignidade e da humanidade daqueles que, por integrarem grupo vulnerável
(LGBTI+) e por não pertencerem ao estamento que detém posição de hegemonia em
uma dada estrutura social, são considerados estranhos e diferentes, degradados
à condição de marginais do ordenamento jurídico, expostos, em consequência de
odiosa inferiorização e de perversa estigmatização, a uma injusta e lesiva
situação de exclusão do sistema geral de proteção do direito.
STF. Plenário. ADO 26/DF, Rel. Min.
Celso de Mello; MI 4733/DF, Rel. Min. Edson Fachin, julgados em em 13/6/2019
(Info 944).