Dizer o Direito

segunda-feira, 6 de maio de 2019

Lei nº 13.821/2019: para que um consórcio celebre convênio com a União, os requisitos de regularidade são examinados em relação ao próprio consórcio, não sendo necessário que os entes federativos consorciados também cumpram as exigências



Olá, amigos do Dizer o Direito,

Foi publicada hoje a Lei nº 13.821/2019, que acrescenta um parágrafo no art. 14 da Lei nº 11.107/2005 (Lei dos consórcios públicos).

Vamos entender o que mudou, mas, antes, é necessário fazer uma breve revisão a respeito dos consórcios públicos

NOÇÕES GERAIS SOBRE OS CONSÓRCIOS PÚBLICOS
O que é um “consórcio público”?
Consórcio público é a “pessoa jurídica formada exclusivamente por entes da Federação, na forma da Lei nº 11.107, de 2005, para estabelecer relações de cooperação federativa, inclusive a realização de objetivos de interesse comum, constituída como associação pública, com personalidade jurídica de direito público e natureza autárquica, ou como pessoa jurídica de direito privado sem fins econômicos” (art. 2º, I, do Decreto nº 6.017/2007).
O consórcio público é como se fosse uma “parceria” firmada por dois ou mais entes da federação para que estes, juntos, tenham mais força para realizar objetivos de interesse comum.
Ex: três municípios decidem fazer um consórcio público entre si para construção de um hospital que atenda à população das três localidades.

Previsão constitucional
A própria CF/88 estimulou que a União, os Estados, o DF e os Municípios formassem consórcios públicos para a realização de objetivos comuns.
Para tanto, a CF/88 determinou que fosse editada uma lei regulamentando como esses consórcios deverão funcionar.
Veja a previsão constitucional:
Art. 241. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disciplinarão por meio de lei os consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19/98)

Lei nº 11.107/2005
Para atender à determinação constitucional, foi editada a Lei nº 11.107/2005, que dispõe sobre normas gerais de contratação de consórcios públicos.
O art. 1º da Lei permite que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios contratem entre si consórcios públicos para a realização de objetivos de interesse comum.
Os objetivos dos consórcios públicos serão determinados pelos entes da Federação que se consorciarem, observados os limites constitucionais (ex: não é possível que dois Estados-membros façam um consórcio entre si para explorar um porto marítimo, considerando que se trata de competência da União, nos termos do art. 21, XII, “f”, da CF/88).
A organização e funcionamento dos consórcios públicos serão disciplinados pela Lei nº 11.107/2005 e pela legislação que rege as associações civis (no que não contrariar a Lei nº 11.107/2005).

Personalidade jurídica própria
O consórcio público, depois de constituído, adquire personalidade jurídica, que pode ser:
• de direito público (chamada, neste caso, de associação pública; possui natureza autárquica);
• de direito privado sem fins econômicos.

Art. 6º O consórcio público adquirirá personalidade jurídica:
I – de direito público, no caso de constituir associação pública, mediante a vigência das leis de ratificação do protocolo de intenções;
II – de direito privado, mediante o atendimento dos requisitos da legislação civil.

Desse modo, a Lei confere duas opções aos entes consorciados que irão formar o consórcio:
a) Consórcio público com personalidade jurídica de direito público.
É uma entidade da Administração Pública:
Art. 6º (...)
§ 1º O consórcio público com personalidade jurídica de direito público integra a administração indireta de todos os entes da Federação consorciados.

b) Consórcio público com personalidade jurídica de direito privado.

Os consórcios públicos estão obrigados a cumprir as exigências da administração pública relacionadas com licitação, contratos e prestação de contas?
SIM.
• O consórcio público com personalidade jurídica de direito público integra a administração pública e, portanto, está submetida a todas as regras aplicáveis às demais entidades.
• O consórcio público com personalidade jurídica de direito privado, apesar de não integrar a administração pública, também está submetida às regras de licitação segundo previsão expressa do § 2º do art. 6º da Lei nº 11.107/2005.
Desse modo, a formação de um consórcio público com personalidade jurídica de direito privado não serve para flexibilizar as regras administrativas. Os consórcios públicos, ainda que revestidos de personalidade jurídica de direito privado, observarão as normas de direito público no que concerne à realização de licitação, celebração de contratos, admissão de pessoal e à prestação de contas.

Participação da União
A União somente participará de consórcios públicos em que também façam parte todos os Estados em cujos territórios estejam situados os Municípios consorciados.

Instrumentos para que os consórcios realizem seus objetivos
Para o cumprimento de seus objetivos, o consórcio público poderá:
I – firmar convênios, contratos, acordos de qualquer natureza, receber auxílios, contribuições e subvenções sociais ou econômicas de outras entidades e órgãos do governo;
II – nos termos do contrato de consórcio de direito público, promover desapropriações e instituir servidões nos termos de declaração de utilidade ou necessidade pública, ou interesse social, realizada pelo Poder Público; e
III – ser contratado pela administração direta ou indireta dos entes da Federação consorciados, dispensada a licitação.

Contrato de consórcio
O consórcio público será constituído por meio de um “contrato”, cuja celebração dependerá da prévia subscrição de protocolo de intenções.
O contrato de consórcio público será celebrado com a ratificação, mediante lei, do protocolo de intenções.


CELEBRAÇÃO DE CONVÊNIO DA UNIÃO COM O CONSÓRCIO E A EXISTÊNCIA DE PENDÊNCIAS RELACIONADAS COM UM DOS SEUS INTEGRANTES
Convênios celebrados entre a União e um consórcio público
A União poderá celebrar convênios com os consórcios públicos, com o objetivo de viabilizar a descentralização e a prestação de políticas públicas em escalas adequadas (art. 14 da Lei nº 11.107/2005).
Vale ressaltar que, para celebrar um consórcio com a União, é necessário que o consórcio apresente uma série de documentos que comprovem a sua regularidade fiscal, tributária e previdenciária.

Imagine agora a seguinte situação hipotética:
Cinco Municípios decidiram constituir um consórcio público, formando, assim, uma nova personalidade jurídica de direito público (o Consórcio intermunicipal ABCDE).
O objetivo do consórcio é promover o desenvolvimento da agricultura no território destes Municípios.
A fim de atingir suas finalidades, o Consórcio buscou realizar um convênio com a União (Ministério da Agricultura) para receber verbas federais.
Após receber todos os documentos, a União se recusou a assinar o convênio alegando que um dos Municípios que compõe o Consórcio (Município “B”) está inscrito no CAUC por conta de pendências (“dívidas”) que ele possui com uma autarquia federal.
Diante deste fato novo, a União afirmou que não foram cumpridas as exigências legais de regularidade para a assinatura do convênio com o Consórcio.

Abrindo um parêntese para explicar o que é CAUC
CAUC é a sigla de Cadastro Único de Exigências para Transferências Voluntárias.
O CAUC é um instrumento de consulta, por meio do qual se pode verificar se os Estados-membros ou Municípios estão com débitos ou outras pendências perante o Governo federal.
O CAUC é alimentado com as informações constantes em bancos de dados como o SIAFI e o CADIN.
Se houver, por exemplo, um atraso do Estado ou do Município na prestação de contas de um convênio com a União ou suas entidades, essa informação passará a figurar no CAUC.
Com a inscrição no CAUC, o ente devedor fica impedido de contratar operações de crédito, celebrar convênios com órgãos e entidades federais e receber transferências de recursos.
Em uma alegoria atécnica, para que você entenda melhor, seria como se fosse um “Serasa” de débitos dos Estados e Municípios com a União, ou seja, um cadastro federal de inadimplência.

Voltando ao exemplo dado: mostra-se correto o argumento invocado pela União para se recusar a assinar o convênio?
NÃO. Antes da Lei nº 13.821/2019 havia certa polêmica, no entanto, pode-se dizer que o melhor entendimento sobre o tema era no sentido de que:
O consórcio público pode sim formalizar convênio com a União mesmo que um dos seus integrantes possua restrições com o CAUC (ou outro cadastro restritivo), desde que a pessoa jurídica do consórcio não apresente nenhuma pendência para com a União.

Consórcio público forma uma nova pessoa jurídica
Quando os entes federativos formam um consórcio público, isso resulta na instituição de uma nova pessoa jurídica, com personalidade distinta da personalidade das entidades consorciadas (art. 1º, § 1º, da Lei nº 11.107/2005). Como decorrência disso, o consórcio público possui autonomia administrativa, financeira e orçamentária em relação aos entes que o criaram.

Princípio da intranscendência das sanções
Segundo o princípio da intranscendência das sanções, as penalidades e as restrições de ordem jurídica não podem superar a dimensão estritamente pessoal do infrator, ou seja, não podem prejudicar outras pessoas jurídicas.
Ao se recusar a firmar o convênio por conta de uma restrição de um integrante do Consórcio, a União viola o princípio da intranscendência porque faz com que a irregularidade praticada por uma pessoa jurídica de direito público (Município) produza sanções em outra pessoa jurídica, integrante da administração indireta (no caso, o consórcio público de direito público).
Esses argumentos foram acolhidos pela 2ª Turma do STJ ao apreciar o REsp 1.463.921-PR, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 10/11/2015.

O que fez a Lei nº 13.821/2019?
Inseriu o parágrafo único ao art. 14 da Lei nº 11.107/2005, encampando esse entendimento do STJ e afirmando, expressamente, que os requisitos de regularidade para a celebração do convênio entre a União e o Consórcio devem ser analisados com base na pessoa jurídica do Consórcio, não havendo motivos para se negar a assinatura do instrumento por conta de restrições existentes em nome de um dos integrantes do Consórcio, tendo em vista que são pessoas jurídicas distintas:
Art. 14. A União poderá celebrar convênios com os consórcios públicos, com o objetivo de viabilizar a descentralização e a prestação de políticas públicas em escalas adequadas.
Parágrafo único. Para a celebração dos convênios de que trata o caput deste artigo, as exigências legais de regularidade aplicar-se-ão ao próprio consórcio público envolvido, e não aos entes federativos nele consorciados. (Parágrafo único inserido pela Lei nº 13.821/2019)

Márcio André Lopes Cavalcante

Professor. Juiz Federal

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