Dizer o Direito

sexta-feira, 3 de maio de 2019

É proibido que se cobre a taxa de conveniência, ou seja, um valor a mais pelo fato de o ingresso estar sendo vendido pela internet



Venda de ingressos
O oferecimento dos ingressos ao público interessado pode ocorrer:
• pelo próprio promotor ou produtor do evento; ou
• por meio de pessoa ou empresa terceirizada.
Existem, inclusive, empresas especializadas nessa atividade específica. Exs: Ticket Mais, Tickets For Fun, Sympla, Ingresso Fácil, Ingresso Rápido etc.

 “Taxa de conveniência”
Algumas empresas especializadas na venda de ingressos cobram dos consumidores um “valor” adicional pelo fato de eles estarem comprando os ingressos por meio da sua página na internet.
Imagine, por exemplo, que o Ingresso Rápido esteja vendendo os ingressos para o show da Sandy e Júnior. Suponhamos que o ingresso seja R$ 200,00. A empresa de venda, contudo, cobra R$ 10,00 como “taxa” pelo fato de o consumidor estar adquirindo o ingresso em sua plataforma de venda na internet. Assim, o consumidor irá pagar R$ 210,00 (200 do ingresso + 10 pela “taxa”).
Esse valor cobrado pelas empresas de venda de ingresso ficou conhecida no dia-a-dia como “taxa de conveniência” (vale ressaltar que não tem nenhuma relação com a taxa enquanto espécie de tributo).

A cobrança dessa “taxa de conveniência” é válida?
NÃO.
As empresas terceirizadas que atuam na venda dos ingressos celebram com o promotor ou produtor do evento um contrato de intermediação, ou seja, um pacto para que ela conduza negócios em nome do produtor cultural. Esse ajuste é chamado, pelo Código Civil, de “contrato de corretagem” (art. 722).
Art. 722. Pelo contrato de corretagem, uma pessoa (empresa de ingressos), não ligada a outra em virtude de mandato, de prestação de serviços ou por qualquer relação de dependência, obriga-se a obter para a segunda (empresa que está produzindo o show) um ou mais negócios (venda de ingressos), conforme as instruções recebidas.

O STJ que não há relação contratual direta entre a empresa de venda de ingressos (que atua como corretora) e o consumidor. O contrato é entre a empresa de intermediação e a empresa produtora do show (chamada de incumbente). Logo, quem deve arcar com a remuneração da empresa de intermediação é a empresa produtora do espetáculo, conforme prevê o art. 725 do CC:
Art. 725. A remuneração é devida ao corretor uma vez que tenha conseguido o resultado previsto no contrato de mediação, ou ainda que este não se efetive em virtude de arrependimento das partes.

Para o STJ, a venda dos ingressos pela internet gera inúmeras vantagens e comodidades para os promotores dos eventos culturais, de forma que eles devem ser os responsáveis pelo pagamento da remuneração das empresas que comercializam os ingressos online.
A venda pela internet alcança interessados em número infinitamente superior do que a venda por meio presencial, privilegia os interesses dos produtores e promotores do espetáculo cultural de terem, no menor prazo possível, vendidos os espaços destinados ao público e realizado o retorno dos investimentos até então empregados.
Ao se cobrar do consumidor essa “taxa de conveniência”, o fornecedor transfere para o consumidor parcela considerável do risco do empreendimento considerando que os custos com a venda dos ingressos devem ser arcados pelos próprios fornecedores.
A venda do ingresso para um determinado espetáculo cultural é parte típica e essencial do negócio, risco da própria atividade empresarial que visa o lucro e integrante do investimento do fornecedor, compondo, portanto, o custo básico embutido no preço. Assim, na intermediação por meio da corretagem, como não há relação contratual direta entre o corretor e o terceiro (consumidor), quem deve arcar, em regra, com a remuneração do corretor é a pessoa com quem ele se vinculou, ou seja, o incumbente.

Não se trata de mera conveniência
O STJ afirmou que a compra pela internet não pode ser considerada uma mera conveniência. Isso porque, na prática, atualmente, quase todos adquirem os ingressos online diante dos inúmeros benefícios em relação à compra presencial (exs: ausência de filas, deslocamentos etc.).
Assim, é fictícia a liberdade do consumidor em optar pela aquisição virtual ou pela presencial.

Vantagem excessiva ao fornecedor
Verifica-se, portanto, da soma desses fatores, o desequilíbrio do contrato, tornando-o extremamente desvantajoso ao consumidor enquanto confere vantagem sem excessiva ao fornecedor, o que também acaba por vulnerar o princípio da vedação à lesão enorme, previsto nos arts. 39, V, e 51, IV, do CDC.
Desse modo, deve ser reconhecida a abusividade da prática da venda casada imposta ao consumidor em prestação manifestamente desproporcional, devendo ser admitido que a remuneração da intermediadora da venda, mediante a taxa de conveniência, deveria ser de responsabilidade das promotores e produtores de espetáculos culturais, verdadeiros beneficiários do modelo de negócio escolhido.

Lesão enorme
Segundo a lesão enorme, “são abusivas as cláusulas que configurem lesão pura, decorrentes da simples quebra da equivalência entre as prestações, verificada, de forma objetiva, mesmo que não exista vício na formação do acordo de vontades” (Min. Nancy Andrighi, REsp 1.737.428-RS).
O instituto da lesão enorme está previsto expressamente no art. 39, V, e no art. 51, IV, do CDC:
Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:
(...)
V - exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva;

Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
(...)
IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade;

Lesão do CC x Lesão enorme do CDC
“Cumpre anotar que o Código Civil de 2002 consagrou a lesão como vício do consentimento, a gerar a anulação do negócio jurídico correspondente (arts. 157 e 171 do CC). Todavia, a lesão civilista tem uma feição subjetiva, por exigir a premente necessidade ou inexperiência, ao lado da onerosidade excessiva. A lesão tratada pelo art. 51, inc. IV, é uma lesão objetivada, como o é todo o sistema consumerista; bastando o mero desequilíbrio pela quebra da boa-fé e da função social para a sua configuração. Ato contínuo, a lesão consumerista gera a nulidade absoluta e não relativa do contrato, trazendo uma consequência de maior gravidade.” (TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito do Consumidor. 7ª ed., São Paulo: Método, 2018, p. 336).

A venda dos ingressos pela internet pode ocorrer por meio de uma única empresa? Ex: somente a Tickets For Fun vende os ingressos do show do Pearl Jam; apenas a Ingresso Fácil vende os ingressos para o show do Red Hot Chili Peppers?
NÃO.
A empresa produtora do show pode vender seus ingressos na internet unicamente por meio de seu próprio site.
No entanto, se o produtor/promotor do espetáculo cultural decidir vender os ingressos na internet por meio de empresa terceirizada (empresa especializada em venda de ingressos), este produtor/promotor deverá oferecer ao consumidor diversas opções de compra em diversos sites.
Para o STJ, se o produtor/promotor oferecer os ingressos por meio de uma única empresa de venda online, isso limita a liberdade de escolha dos consumidores e configura venda casada, na modalidade indireta ou “às avessas”, nos termos do art. 39, I e IX, do CDC:
Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:
I - condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos;
(...)
IX - recusar a venda de bens ou a prestação de serviços, diretamente a quem se disponha a adquiri-los mediante pronto pagamento, ressalvados os casos de intermediação regulados em leis especiais;

Em suma:
É abusiva a venda de ingressos em meio virtual (internet) vinculada a uma única intermediadora e mediante o pagamento de taxa de conveniência.
STJ. 3ª Turma. REsp 1.737.428-RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 12/03/2019 (Info 644).

Eficácia nacional
A decisão acima explicada foi proferida no bojo de uma ação civil pública (ação coletiva de consumo) proposta por uma associação de defesa do consumidor, de forma que o STJ afirmou que: “os efeitos e a eficácia da sentença coletiva não estão circunscritos a lindes geográficos, mas aos limites objetivos e subjetivos do que foi decidido, levando-se em conta, para tanto, sempre a extensão do dano e a qualidade dos interesses metaindividuais postos em juízo”.
Em outras palavras, essa decisão proibindo a cobrança de taxa de conveniência e a venda por meio de uma única empresa vale em todo o território nacional.
Essa é a jurisprudência atual do STJ que não aplica o art. 16 da LACP de forma literal:
No julgamento do REsp 1.243.887/PR, sob o rito dos recursos representativos de controvérsia, a Corte Especial, ao analisar a regra prevista no art. 16 da Lei n. 7.347/1985, consignou ser indevido limitar a eficácia de decisões proferidas em ações civis públicas coletivas, de maneira aprioristica, ao território da competência do órgão judicante.
STJ. Corte Especial. AgInt nos EREsp 1447043/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 05/09/2018.

Importante, no entanto, esclarecer que esta decisão vincula apenas a empresa que foi ré na ação (Ingresso Rápido Promoção de Eventos Ltda.). As demais empresas não estão formalmente obrigadas a cumprir a decisão. No entanto, caso algum consumidor questione judicialmente, a chance de ter sucesso é muito grande.


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