Dizer o Direito

sexta-feira, 17 de maio de 2019

Comentários à Lei 13.827/2019, que autoriza a aplicação de medida protetiva de urgência pela autoridade policial



Olá amigos do Dizer o Direito, foi publicada, no dia 14/05/2019, a Lei nº 13.827/2019, que altera a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) para autorizar, em algumas hipóteses, a aplicação, pela autoridade policial, de medida protetiva de urgência em favor da mulher.

Vamos entender o que mudou, mas, antes, como vocês já sabem, é importante fazer uma revisão geral sobre o tema.

NOÇÕES GERAIS SOBRE AS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA
“Lei Maria da Penha”
A Lei nº 11.340/2006 (Lei de Violência Doméstica) é conhecida como “Lei Maria da Penha”, em uma homenagem à Sra. Maria da Penha Maia Fernandes que, durante anos, foi vítima de violência doméstica e lutou bastante para a aprovação deste diploma.
A Lei nº 11.340/2006 prevê regras processuais instituídas para proteger a mulher vítima de violência doméstica.
Desse modo, se uma mulher for vítima de violência doméstica e familiar, a apuração deste delito (crime ou contravenção penal) deverá obedecer ao rito da Lei Maria da Penha e, de forma subsidiária, ao CPP e às demais leis processuais penais, naquilo que não for incompatível (art. 13).

Medidas protetivas de urgência
Medidas protetivas de urgência são providências previstas nos arts. 22 a 24 da Lei nº 11.340/2006 e aplicadas para proteger as mulheres vítimas de violência doméstica.

Natureza jurídica
As medidas protetivas possuem a natureza jurídica de medidas cautelares.

Pressupostos
Para a concessão das medidas protetivas de urgência, é necessária a comprovação do:
a) fumus commissi delicti: é a demonstração da existência de indícios de que houve violência doméstica contra a mulher.
b) periculum libertatis: é a existência de um risco à vítima ou a terceiros caso a medida protetiva não seja imediatamente concedida.

Hipóteses previstas na Lei
Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras:
I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003;
II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;
III - proibição de determinadas condutas, entre as quais:
a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;
b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;
c) frequentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;
IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;
V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios.

Art. 23.  Poderá o juiz, quando necessário, sem prejuízo de outras medidas:
I - encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento;
II - determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor;
III - determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos;
IV - determinar a separação de corpos.

Art. 24. Para a proteção patrimonial dos bens da sociedade conjugal ou daqueles de propriedade particular da mulher, o juiz poderá determinar, liminarmente, as seguintes medidas, entre outras:
I - restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida;
II - proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial;
III - suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor;
IV - prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida.
Parágrafo único.  Deverá o juiz oficiar ao cartório competente para os fins previstos nos incisos II e III deste artigo.

Rol exemplificativo
Vale ressaltar que o rol das medidas protetivas previsto na lei é meramente exemplificativo, podendo ser concedidas outras providências que não estejam ali elencadas.
Trata-se daquilo que a doutrina denominou de princípio da atipicidade das medidas protetivas de urgência (LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada. 4ª ed., Salvador: Juspodivm, 2016, p. 931).

Possibilidade de aplicação de mais de uma
As medidas protetivas de urgência poderão ser aplicadas isolada ou cumulativamente. Ex: determinação para que o agressor se afaste do lar (inciso II do art. 22) e não se aproxime da vítima (inciso III do mesmo artigo).
Além disso, as medidas protetivas de urgência poderão ser aplicadas em conjunto com as medidas cautelares do CPP. Ex: determinação para que o agressor se afaste do lar (inciso II do art. 22 da LMP) e que compareça periodicamente em juízo (inciso I do art. 319 do CPP).

Momento
As medidas cautelares poderão ser requeridas e deferidas durante a investigação preliminar e também após a instauração do processo penal.

Legitimidade para requerer
Segundo o § 3º do art. 19 da Lei nº 11.340/2006, as medidas protetivas de urgência podem ser requeridas:
a) a pedido da ofendida;
b) a requerimento do Ministério Público.

Obs: o pedido da ofendida para que lhe seja concedida medida protetiva não precisa ser subscrito por advogado ou Defensor Público (art. 27 da Lei nº 11.340/2006).

E o Delegado de Polícia?
Não existe previsão na Lei para que o Delegado, em nome próprio, formule pedido de concessão de medida protetiva de urgência.
O que a Lei prevê é que a vítima, ao ser ouvida pela autoridade policial, e ao ser cientificada de seus direitos, declare que está solicitando a concessão de uma ou mais medidas protetivas.
Esse pedido da vítima é remetido pelo Delegado para ser analisado pelo juiz.
Veja a dicção da Lei:
Art. 12.  Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, feito o registro da ocorrência, deverá a autoridade policial adotar, de imediato, os seguintes procedimentos, sem prejuízo daqueles previstos no Código de Processo Penal:
(...)
III - remeter, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, expediente apartado ao juiz com o pedido da ofendida, para a concessão de medidas protetivas de urgência;

Art. 18. Recebido o expediente com o pedido da ofendida (pedido tratado no inciso III do art. 12 acima), caberá ao juiz, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas:
I - conhecer do expediente e do pedido e decidir sobre as medidas protetivas de urgência;
II - determinar o encaminhamento da ofendida ao órgão de assistência judiciária, quando for o caso;
III - comunicar ao Ministério Público para que adote as providências cabíveis.

Desse modo, em sentido estritamente técnico, o Delegado de Polícia não formula, em nome próprio, requerimento de concessão de medida protetiva. Ele remete ao juiz o pedido deduzido pela ofendida.
Obviamente que isso não diminui em nada a relevância da autoridade policial, que é o agente mais importante no sistema de proteção da vítima de violência doméstica, sendo o que primeiro ampara e garante os direitos da ofendida. O objetivo aqui é apenas ressaltar um aspecto técnico-jurídico da Lei.

É necessário assegurar contraditório prévio ao ofensor antes da decretação da medida protetiva?
NÃO. As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas de imediato, independentemente de audiência das partes e de manifestação do Ministério Público (art. 19, § 1º da Lei nº 11.340/2006). É a posição também do STJ.
Em sentido contrário: Renato Brasileiro defende que, em regra, o juiz, antes de decretar a medida, deveria intimar o agressor para que ele tenha a oportunidade de exercer o contraditório prévio. Essa intimação prévia somente não deveria ocorrer em casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida. O autor defende esse entendimento com base no § 3º do art. 282 do CPP. Como esse parágrafo foi incluído no CPP pela Lei nº 12.403/2011 (posterior à Lei Maria da Penha), Brasileiro sustenta que o dispositivo se aplica também para os casos de medida protetiva de urgência. Veja a redação do art. 282, § 3º:
Art. 282 (...)
§ 3º Ressalvados os casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida, o juiz, ao receber o pedido de medida cautelar, determinará a intimação da parte contrária, acompanhada de cópia do requerimento e das peças necessárias, permanecendo os autos em juízo. (Incluído pela Lei nº 12.403/2011).

Medida protetiva concedida apenas com base na palavra da vítima
O STJ já reconheceu como válida a concessão de medida protetiva do art. 22, III, da Lei nº 11.340/2006 apenas com base na palavra da vítima:
(...) 1. Em se tratando de casos de violência doméstica em âmbito familiar contra a mulher, a palavra da vítima ganha especial relevo para o deferimento de medida protetiva de urgência, porquanto tais delitos são praticados, em regra, na esfera da convivência íntima e em situação de vulnerabilidade, sem que sejam presenciados por outras pessoas.
2. No caso, verifica-se que as medidas impostas foram somente para manter o dito agressor afastado da ofendida, de seus familiares e de eventuais testemunhas, restringindo apenas em menor grau a sua liberdade.
3. Estando em conflito, de um lado, a preservação da integridade física da vítima e, de outro, a liberdade irrestrita do suposto ofensor, atende aos mandamentos da proporcionalidade e razoabilidade a decisão que restringe moderadamente o direito de ir e vir do último. (...)
STJ. 6ª Turma. RHC 34.035/AL, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 05/11/2013.

O juiz pode conceder medidas protetivas de ofício?
Com base na redação do art. 282, § 2º do CPP, deve-se entender que:
• Na fase do inquérito policial: NÃO. Aqui é necessário pedido ou requerimento.
• Na fase judicial: SIM.

Art. 282 (...)
§ 2º As medidas cautelares serão decretadas pelo juiz, de ofício ou a requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público. (Incluído pela Lei nº 12.403/2011).

Quais as consequências caso o indivíduo descumpra a decisão judicial que impôs a medida protetiva de urgência?
• é possível a execução da multa imposta;
• é possível a decretação de sua prisão preventiva (art. 313, III, do CPP);
• o agente responderá pelo crime do art. 24-A da Lei nº 11.340/2006:
Art. 24-A. Descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência previstas nesta Lei:
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos.


COMPETÊNCIA PARA A CONCESSÃO DA MEDIDA PROTETIVA DE URGÊNCIA
Vamos agora tratar sobre o tema realmente alterado pela Lei nº 13.827/2019: quem concede a medida protetiva de urgência?
Em regra, a autoridade judicial (Juiz ou Desembargador).
Até a edição da Lei nº 13.827/2019, essa regra não tinha exceções.
A Lei nº 13.827/2019 trouxe uma exceção, permitindo que a medida protetiva de afastamento do lar seja concedida pelo Delegado de Polícia se o Município não for sede de comarca ou até mesmo pelo policial caso também não haja Delegado de Polícia no momento.

Entendendo a novidade legislativa:
Verificada a existência de...
- risco atual ou iminente à vida ou à integridade física da mulher em situação de violência doméstica e familiar,
- ou de seus dependentes,
- o agressor deverá ser imediatamente afastado do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida.

Quem determina esse afastamento?
1º) em primeiro lugar, a autoridade judicial.
2º) se o Município não for sede de comarca: o Delegado de Polícia poderá determinar essa medida.
3º) se o Município não for sede de comarca e não houver Delegado disponível no momento: o próprio policial (civil ou militar) poderá ordenar o afastamento.

Se a medida for concedida por Delegado ou por policial (situações 2 e 3), o Juiz será comunicado no prazo máximo de 24 horas e decidirá, em igual prazo, sobre a manutenção ou a revogação da medida aplicada, devendo dar ciência ao Ministério Público concomitantemente.

Veja o dispositivo inserido:
Art. 12-C. Verificada a existência de risco atual ou iminente à vida ou à integridade física da mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou de seus dependentes, o agressor será imediatamente afastado do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida:
I - pela autoridade judicial;
II - pelo delegado de polícia, quando o Município não for sede de comarca; ou
III - pelo policial, quando o Município não for sede de comarca e não houver delegado disponível no momento da denúncia.
§ 1º Nas hipóteses dos incisos II e III do caput deste artigo, o juiz será comunicado no prazo máximo de 24 (vinte e quatro) horas e decidirá, em igual prazo, sobre a manutenção ou a revogação da medida aplicada, devendo dar ciência ao Ministério Público concomitantemente.
(...)

Discussão quanto à constitucionalidade por violação ao princípio da jurisdicionalidade
A presente novidade legislativa gerará algumas interessantes discussões sobre a sua constitucionalidade. Isso porque, tradicionalmente, o direito brasileiro considera que as medidas cautelares somente podem ser deferidas pela autoridade judicial. É o chamado princípio da jurisdicionalidade.
O afastamento do lar é uma medida cautelar penal e, portanto, certamente surgirão vozes defendendo que a lei é inconstitucional por outorgar ao Delegado de Polícia e ao policial a possibilidade de sua concessão.
Confira, por exemplo, o que dizia Renato Brasileiro antes da edição da Lei nº 13.827/2019:
“Pelo princípio da jurisdicionalidade, a decretação de toda e qualquer espécie de provimento cautelar está condicionada à manifestação fundamentada do Poder Judiciário (...)
Se a Constituição Federal enfatiza que ‘ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal’ (art. 5º, LIV), que ‘ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente’ (art. 5º, LXI), que ‘a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juízo competente’ (art. 5º, LXII), que ‘a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária’ (art. 5º, LXV) e que ‘ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança’ (art. 5º, LXVI), fica evidente que a Carta Magna impõe a sujeição de toda e qualquer medida cautelar à apreciação do Poder Judiciário.
Não por outro motivo, dispõe o art. 19, caput, da Lei Maria da Penha, que as medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas pelo juiz, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida. Em face desses dispositivos, depreende-se que a restrição à liberdade de locomoção do agressor inerente à aplicação dessas medidas deve resultar não simplesmente de uma ordem judicial, mas de um provimento resultante de um procedimento qualificado por garantias mínimas, como a independência e a imparcialidade do juiz, o contraditório e a ampla defesa, o duplo grau de jurisdição, a publicidade e, sobretudo, nessa matéria, a obrigatoriedade de motivação (jurisdicionalidade em sentido estrito).
Destarte, considerando que todas essas medidas protetivas de urgência afetam, direta ou indiretamente, a liberdade de locomoção, ora com maior, ora com menor intensidade, podendo inclusive ser convertidas em prisão preventiva diante do descumprimento das obrigações impostas (CPP, art. 313, III), não se admite que possam ser decretadas por outras autoridades que não o juiz competente (v.g, Comissões Parlamentares de Inquérito).” (LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada. 4ª ed., Salvador: Juspodivm, 2016, p. 928).

Vale ressaltar que essa foi a razão pela qual, em 2017, o então Presidente Michel Temer vetou projeto de lei aprovado que autorizava que autoridade policial aplicasse provisoriamente medidas protetivas de urgências até que houvesse deliberação por parte da autoridade judicial.
O Presidente da República vetou o dispositivo sob o argumento de que a prerrogativa de impor medidas protetivas de urgência seria privativa do Poder Judiciário, não podendo ser estendida à Polícia. Veja a íntegra das razões apresentadas:
 “Os dispositivos, como redigidos, impedem o veto parcial do trecho que incide em inconstitucionalidade material, por violação aos artigos 2º e 144, § 4º, da Constituição, ao invadirem competência afeta ao Poder Judiciário e buscarem estabelecer competência não prevista para as polícias civis.”

A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) ajuizou, inclusive, uma ação direta de inconstitucionalidade contra os incisos II e III e o § 1º, todos do art. 12-C (ADI 6138).

Mas, afinal, de contas, o art. 12-C da Lei nº 11.340/2006, acrescido pela Lei nº 13.827/2019, é inconstitucional? Penso que não.
De fato, as medidas cautelares penais estão sujeitas ao princípio da jurisdicionalidade, segundo o qual, em regra, somente podem ser concedidas pela autoridade judicial. No entanto, o art. 12-C estabelece uma hipótese de jurisdicionalidade postergada, postecipada ou diferida (CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Lei 12.403 Comentada - Medidas cautelares, prisões provisórios e liberdade provisória. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2013, p. 23). Isso porque, segundo o § 1º do dispositivo, em até 24 horas após a autoridade policial impor o afastamento do lar, o juiz deverá ser comunicado sobre a situação e terá também 24 horas para decidir se mantém ou revoga a medida aplicada. Desse modo, a decisão sobre a medida continua sendo do Poder Judiciário.
Além disso, é preciso que seja feita uma ponderação dos interesses protegidos. A cláusula de jurisdicionalidade das medidas cautelares existe como uma garantia do investigado ou réu, até mesmo como decorrência do devido processo legal. No entanto, se a situação ocorre em um Município que não é sede de comarca, a exigência da jurisdicionalidade prévia geraria um risco de dano irreversível ao bem jurídico de maior importância do ordenamento jurídico, qual seja, a vida da vítima.
Ressalte-se, ainda, que a restrição aos bens jurídicos do agressor é mínima considerando que só é permitida a imposição de uma medida protetiva, qual seja, o afastamento do lar, não havendo, desse modo, risco de dano irreparável caso o magistrado entenda que deve revogar a imposição deferida pela autoridade policial.

Discussão quanto à constitucionalidade por violação ao princípio da isonomia
Em outro extremo, surgiu também a tese de que o aludido art. 12-C seria inconstitucional por afrontar o princípio da isonomia. Isso porque, conforme vimos, a Lei somente permite que o Delegado determine o afastamento do agressor do lar nos Municípios que não são sede de comarca. Assim, as vítimas que moram em Municípios onde há comarcas instaladas teriam uma proteção menor, considerando que teriam que esperar por uma decisão judicial, o que, certamente, demora mais do que a imposição direta pelo Delegado de Polícia.
Desse modo, para os defensores dessa linha de raciocínio, a Lei teria tratado de forma desigual as vítimas de violência doméstica. Como consequência, sustentam a ideia de que essa exigência (“quando o Município não for sede de comarca”) deve ser declarada inconstitucional e, assim, em todo e qualquer lugar do Brasil seria permitido que o Delegado de Polícia concedesse imediatamente a medida protetiva de afastamento do lar. Nesse sentido, é a posição defendida pelo estimado e combativo Thiago Garcia.
Apesar de reconhecer a interessante construção proposta, respeitosamente, penso que não há violação à isonomia.
Conforme lição classicamente conhecida, o respeito à igualdade significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades.
A igualdade formal significa dizer que não pode haver privilégios e tratamentos discriminatórios.
Da igualdade formal decorre o corolário da “igualdade na lei”, que significa um comando endereçado ao legislador, que não deve instituir discriminações ou tratamentos diferenciados baseados em fundamento que não seja razoável ou que não vise a um fim legítimo.
A Lei não concede um privilégio odioso às vítimas que residem em Municípios que não sejam sede de comarca. Em verdade, o objetivo dela é permitir que, mesmo sem a presença física do Poder Judiciário, ela tenha resguardada a sua integridade física. Existe, portanto, uma razão jurídica que fundamenta a distinção.
O critério escolhido pelo legislador é objetivo e razoável. Se o Município não é sede de comarca, não é razoável aguardar uma decisão judicial porque esta irá demorar mais do que em outras localidades que não possuem essa deficiência.
É indiscutível que a rede de assistência às mulheres vítimas de violência doméstica ainda é insuficiente para garantir uma proteção plena às ofendidas. No entanto, as eventuais falhas estruturais não autorizam, a meu sentir, um elastecimento da lei para desconsiderar um critério legítimo adotado pelo legislador.
Se fôssemos considerar, como preponderante, o argumento das deficiências do sistema de proteção, poderíamos cogitar a ampliação da lei, por interpretação, para permitir a concessão de outras medidas protetivas (além do afastamento do lar), como, por exemplo, a proibição de se aproximar da vítima ou mesmo a prestação de alimentos. Em outras palavras, tais medidas são extremamente necessárias e não foram contempladas na Lei como sendo passíveis de concessão pela autoridade policial. Nem por isso, seria possível a sua ampliação com base na alegação de inconstitucionalidade.
Ressalte-se que o afastamento do princípio da jurisdicionalidade é excepcional e, portanto, não deve ser ampliada por interpretação extensiva.

Qual é o instrumento cabível contra a decisão da autoridade policial que concede ou nega a medida cautelar de urgência?
Se o juiz já manteve a decisão do Delegado, o responsável pela decisão passou a ser a autoridade judicial e, portanto, o recurso deverá ser contra o pronunciamento do magistrado.
Por outro lado, se o juiz ainda não apreciou a decisão do Delegado, teremos duas situações possíveis:
• Delegado concedeu a medida: o suposto ofensor pode impetrar habeas corpus para o juiz.
• Delegado denegou a medida: a vítima deverá formular novo pedido de concessão da medida, agora para o juiz.

Quais as consequências caso o indivíduo descumpra a decisão da autoridade policial que impôs a medida protetiva de urgência?
É possível que o Delegado represente ao juiz para a decretação da prisão preventiva do ofensor (art. 313, III, do CPP).
Vale ressaltar que o agente não responderá pelo crime do art. 24-A da Lei nº 11.340/2006, considerando que o tipo penal fala em “descumprir decisão judicial”:
Art. 24-A. Descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência previstas nesta Lei:
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos.

Assim, o agente só responderá pelo crime do art. 24-A se o juiz mantiver a decisão concessiva do Delegado e o agressor continuar descumprindo a medida.


O agente poderia responder por desobediência (art. 330 do CP)?
Também não.
Não há crime de desobediência quando a pessoa desatende a ordem e existe alguma lei prevendo uma sanção civil, administrativa ou processual penal para esse descumprimento, sem ressalvar que poderá haver também a sanção criminal.

Explicando melhor:
• Se uma ordem é dada e na Lei existe a previsão de uma sanção civil ou administrativa para o caso de descumprimento dessa ordem, não se configura o crime de desobediência.
• Exceção: haverá delito de desobediência se na Lei, além da sanção civil ou administrativa, expressamente constar uma ressalva de que não se exclui a sanção penal.

Ex.1: Marcelo foi parado em uma blitz. O agente de trânsito determinou que ele apresentasse a habilitação e o documento do veículo, tendo Marcelo se recusado a fazê-lo. Marcelo não cometeu crime de desobediência porque o art. 238 do Código de Trânsito já prevê punições administrativas para essa conduta (infração gravíssima, multa e apreensão do veículo), sem ressalvar a possibilidade de aplicação de sanção penal.

Ex.2: Gutemberg foi intimado para testemunhar em uma ação penal, tendo, no entanto, sem justificativa, deixado de comparecer ao ato processual. Gutemberg cometeu o crime de desobediência. O CPP determina que o juiz poderá aplicar multa e condená-lo a pagar as custas da diligência, sem prejuízo do processo penal por crime de desobediência (art. 219). Assim, a Lei (no caso, o CPP) prevê punições civis, ressalvando, no entanto, que elas poderão ser aplicadas juntamente com a condenação criminal.

Ex.3: Cleôncio foi intimado para testemunhar em uma ação de indenização por danos morais, tendo, no entanto, sem justificativa, deixado de comparecer ao ato processual. Cleôncio não cometeu o crime de desobediência. O CPC prevê que a testemunha faltosa será conduzida coercitivamente e condenada a pagar as despesas do adiamento do ato (art. 455, § 5º). Contudo, a Lei (no caso, o CPC) não prevê a possibilidade de tais sanções cíveis serem aplicadas juntamente com a punição pelo crime de desobediência.

E no caso do art. 12-C da Lei Maria da Penha?
A Lei nº 11.340/2006 prevê que o descumprimento da medida protetiva do art. 12-C gera uma consequência processual penal (prisão preventiva) e não ressalvava a possibilidade de o agente responder também criminalmente. Logo, seguindo o raciocínio acima, não se pode condenar o agente por crime de desobediência.
Nesse sentido:
(...) 1. O Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento de que para a caracterização do crime de desobediência não é suficiente o simples descumprimento de decisão judicial, sendo necessário que não exista previsão de sanção específica.
2. A Lei n. 11.340/06 determina que, havendo descumprimento das medidas protetivas de urgência, é possível a requisição de força policial, a imposição de multas, entre outras sanções, não havendo ressalva expressa no sentido da aplicação cumulativa do art. 330 do Código Penal.
3. Ademais, há previsão no art. 313, III, do Código de Processo Penal, quanto à admissão da prisão preventiva para garantir a execução de medidas protetivas de urgência nas hipóteses em que o delito envolver violência doméstica.
4. Em respeito ao princípio da intervenção mínima, não há que se falar em tipicidade da conduta atribuída ao recorrido, na linha dos precedentes deste Sodalício. (...)
STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp 1528271/DF, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 13/10/2015.



VEDAÇÃO À LIBERDADE PROVISÓRIA
Prisão em flagrante
Imagine que João foi preso em flagrante após praticar lesões corporais gravíssimas contra sua esposa Laura, motivado por ciúmes.
Este indivíduo deverá ser submetido a uma audiência de custódia na qual o juiz, após ouvi-lo, poderá:
1) determinar o relaxamento da prisão em flagrante (caso entenda que a prisão foi ilegal);
2) conceder liberdade provisória (com ou sem a imposição de medidas cautelares diversas da prisão);
3) converter a prisão em flagrante em prisão preventiva, caso estejam presentes os pressupostos do art. 312 do CPP.

Veja o que diz o CPP:
Art. 310. Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente:
I - relaxar a prisão ilegal; ou
II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou
III - conceder liberdade provisória, com ou sem fiança.

Decretação da prisão preventiva
Assim, é perfeitamente possível a decretação da prisão preventiva do flagranteado suspeito de ter cometido um crime envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher.
Essa possibilidade está prevista expressamente no art. 20 da Lei nº 11.340/2006.
Vale ressaltar, no entanto, mais uma vez, que a prisão preventiva, neste caso, somente é possível se estiverem presentes os pressupostos do art. 312 do CPP e demais requisitos exigidos pelo Código:
Art. 312.  A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.

O que fez a Lei nº 13.827/2019?
A Lei nº 13.827/2019 inseriu um dispositivo à Lei Maria da Penha:
- proibindo expressamente a concessão de liberdade provisória
- ao autor de um crime praticado com violência doméstica e familiar contra mulher
- caso esteja demonstrado que a soltura do agente acarretará
- risco à integridade física da vítima ou
- risco à efetividade da medida protetiva de urgência.

Veja a redação do dispositivo:
Art. 12-C (...)
§ 2º Nos casos de risco à integridade física da ofendida ou à efetividade da medida protetiva de urgência, não será concedida liberdade provisória ao preso. (Parágrafo acrescentado pela Lei nº 13.827/2019)

Risco deve ser concreto
Vale ressaltar que a demonstração do risco não pode ser fundamentada de forma abstrata, sendo necessário que o magistrado explicite razões concretas pelas quais, naquele caso específico, a liberdade do agente acarretaria os riscos que se busca evitar. Ex: o agente possui outros registros de violência doméstica.
Deve-se evitar, portanto, que este § 2º seja utilizado para se negar, de forma automática e generalizada, a liberdade provisória.
Vale ressaltar, inclusive, que o STF entende que é inconstitucional a lei que proíbe a liberdade provisória de forma genérica.
A lei, quando afasta a concessão de liberdade provisória de forma genérica, retira do juiz a oportunidade de, no caso concreto, analisar os pressupostos da necessidade ou não da prisão cautelar.
Cabe ao magistrado, e não ao legislador, verificar se se configuram ou não, em cada caso, hipóteses que justifiquem a prisão cautelar. Isso porque a Constituição Federal não permite a prisão ex lege (ou seja, apenas por força de lei).
Nesse sentido: STF. Plenário. HC 104339/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 10/5/2012.

Interpretação sistemática
O novo § 2º do art. 12-C da Lei nº 11.340/2006 não pode ser lido isoladamente, devendo ser interpretado em conjunto com as regras do Código de Processo Penal a respeito da prisão preventiva e da liberdade provisória.
Assim, mesmo que haja risco à integridade física da ofendida ou à efetividade da medida protetiva de urgência, o agente não poderá permanecer preso, por exemplo, se tiver praticado vias de fato (art. 21 do DL 3.688/41), considerando que o CPP não admite a prisão preventiva em caso de contravenção penal. Logo, a prática de contravenção penal, no âmbito de violência doméstica, não é motivo idôneo para justificar a prisão preventiva do réu (STJ. 6ª Turma. HC 437535-SP, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, Rel. Acd. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 26/06/2018).
De igual forma, não caberá prisão preventiva se esse risco à vítima ou à efetividade da medida protetiva puder ser solucionado com a concessão de outras medidas cautelares diversas da prisão. Ex: concede-se a prisão domiciliar do agressor (obviamente, em residência diferente do lar da vítima). Isso porque o art. 12-C, § 2º, da Lei nº 11.340/2006 deve ser interpretado em conjunto com o art. 310, II do CPP.

Antecipação da hipótese de prisão preventiva
O CPP admite a decretação da prisão preventiva contra o autor de um crime envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher com o objetivo de garantir a execução das medidas protetivas de urgência:
Art. 313. Nos termos do art. 312 deste Código, será admitida a decretação da prisão preventiva:
(...)
III - se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência;

A jurisprudência, no entanto, aplica esse inciso III do art. 313 do CPP apenas nos casos em que o agente descumpre uma medida protetiva de urgência. Ex: a juíza ordenou que João (agressor) mantivesse distância mínima de 500 metros de Laura (vítima) e não tentasse nenhum contato com ela por qualquer meio de comunicação (art. 22, III, “a” e “b”). Passadas duas semanas, João descumpriu a medida protetiva e foi até a casa de Laura. Neste caso, como houve descumprimento da medida, a magistrada poderia decretar a prisão preventiva, com fundamento no art. 313, III, do CPP.
O novo § 2º do art. 12-C antecipa a possibilidade de decretação da prisão preventiva. Isso porque afirma que a liberdade provisória deve ser negada se houver um “risco” à efetividade da medida protetiva de urgência.

REGISTRO DAS MEDIDAS PROTETIVAS
Por fim, a Lei nº 13.827/2019 acrescentou um novo dispositivo à Lei Maria da Penha prevendo que as medidas protetivas de urgência deverão ser registradas em bancos de dados para fiscalização de sua efetividade:
Art. 38-A.  O juiz competente providenciará o registro da medida protetiva de urgência.
Parágrafo único. As medidas protetivas de urgência serão registradas em banco de dados mantido e regulamentado pelo Conselho Nacional de Justiça, garantido o acesso do Ministério Público, da Defensoria Pública e dos órgãos de segurança pública e de assistência social, com vistas à fiscalização e à efetividade das medidas protetivas.

Vigência
A Lei nº 13.827/2019 entrou em vigor na data de sua publicação (14/05/2019).

Márcio André Lopes Cavalcante
Juiz Federal. Foi Defensor Público, Promotor de Justiça e Procurador do Estado.




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