Dizer o Direito

sexta-feira, 31 de maio de 2019

INFORMATIVO Comentado 645 STJ


Olá amigos do Dizer o Direito,

Já está disponível o INFORMATIVO Comentado 645 STJ.

Confira abaixo o índice. Bons estudos.

Obs: o gabarito da questão 4 estava incorreto e foi corrigido.


ÍNDICE DO INFORMATIVO 645 DO STJ

DIREITO ADMINISTRATIVO
CONCURSO PÚBLICO
A candidata que está amamentando (lactante) na época do curso de formação para o cargo de agente penitenciário tem direito de fazer o curso em um período posterior. 

DIREITO CIVIL
DIREITOS DA PERSONALIDADE
Não se exige que o indivíduo tenha deixado um documento escrito dizendo que desejava ser submetido à criogenia, podendo essa vontade ser provada por outros meios, como a declaração do familiar mais próximo.

PROPRIEDADE
A estipulação prevista no contrato social de integralização do capital social por meio de imóvel indicado pelo sócio, por si, não opera a transferência da propriedade do bem para a sociedade empresarial.

DIREITO EMPRESARIAL
RECUPERAÇÃO JUDICIAL
Os créditos decorrentes do pensionamento fixado em sentença judicial podem ser equiparados àqueles derivados da legislação trabalhista para fins de inclusão no quadro geral de credores de sociedade em recuperação judicial.

DIREITO PROCESSUAL CIVIL
SUSPENSÃO DO PROCESSO
A suspensão do processo em razão da paternidade do único patrono da causa se opera tão logo ocorra o nascimento ou adoção, não sendo necessária a comunicação imediata ao juízo

HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS
Honorários devem seguir regra objetiva; equidade é critério subsidiário.

AÇÃO RESCISÓRIA
Quando o inciso VII do art. 966 do CPC/2015 fala que é possível o ajuizamento de ação rescisória com base em “prova nova”, isso abrange também a prova testemunhal.

AGRAVO DE INSTRUMENTO
Cabe agravo de instrumento contra decisão interlocutória que fixa data da separação de fato do casal para efeitos da partilha dos bens.
É cabível agravo de instrumento contra decisão interlocutória que defere ou indefere a distribuição dinâmica do ônus da prova ou quaisquer outras atribuições do ônus da prova distinta da regra geral.

PRECATÓRIOS
Incidem juros da mora entre a data da realização dos cálculos e a da requisição ou do precatório.

EXECUÇÃO FISCAL
Juiz pode deferir consulta ao CCS na execução fiscal em busca de bens do devedor.

DIREITO PENAL
FURTO DE ENERGIA ELÉTRICA
O pagamento do débito oriundo de furto de energia elétrica antes do oferecimento da denúncia não é causa de extinção da punibilidade.

CRIME DO ART. 218-B DO CP
Cliente pode ser punido sozinho; a vulnerabilidade é relativa; o tipo penal não exige habitualidade, comportando a aplicação da continuidade delitiva.

DIREITO TRIBUTÁRIO
ICMS
O aproveitamento, pelo adquirente, do ICMS destacado na nota fiscal de compra de mercadorias de contribuinte incluído no Regime Especial de Fiscalização sujeita-se à prova da arrecadação.

DIREITO PREVIDENCIÁRIO
PREVIDÊNCIA COMPLEMENTAR
É válida a exigência de pagamento de joia para inscrição de beneficiário no plano de previdência complementar para fazer jus à pensão por morte.










INFORMATIVO Comentado 645 STJ - Versão Resumida


Olá amigos do Dizer o Direito,

Já está disponível o INFORMATIVO Comentado 645 STJ - Versão Resumida.

Bons estudos.





quarta-feira, 29 de maio de 2019

A candidata que está amamentando na época do curso de formação para ingresso no cargo público pode ter direito de fazê-lo em um período posterior



Imagine a seguinte situação hipotética:
Maria inscreveu-se no concurso Agente de Polícia Federal.
Foi aprovada nas fases anteriores do certame e convocada para o teste físico.
Ocorre que Maria encontrava-se temporariamente incapacitada para realizar atividades físicas em virtude de doença (epicondilite gotosa no cotovelo esquerdo), comprovada por atestado médico.
Maria formulou requerimento administrativo solicitando que fosse designada nova data para a realização do teste físico, o que foi indeferido pela Administração Pública com base em uma previsão no edital que negava esta possibilidade.
Diante disso, Maria impetrou mandado de segurança.

Segundo a jurisprudência do STF, Maria terá direito de fazer a prova de segunda chamada? O(a) candidato(a) doente no dia do teste físico? tem direito de fazer prova de segunda chamada?
NÃO.
Os candidatos em concurso público NÃO têm direito à prova de segunda chamada nos testes de aptidão física em razão de circunstâncias pessoais, ainda que de caráter fisiológico ou de força maior, salvo se houver previsão no edital permitindo essa possibilidade.
STF. Plenário. RE 630733/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 15/5/2013 (repercussão geral) (Info 706).

Principais argumentos do STF para decidir assim:
• o princípio da isonomia estaria violado se a Administração Pública beneficiasse determinado indivíduo em detrimento de outro nas mesmas condições;
• o princípio da isonomia não possibilita que o candidato tenha direito de realizar prova de segunda chamada em concurso público por conta de situações individuais e pessoais, especialmente porque o edital estabelece tratamento isonômico a todos os outros candidatos;
• além disso, a análise da presente questão não se limita ao exame do princípio da isonomia, devendo ser considerados outros princípios envolvidos;
• o concurso público é um processo de seleção que deve ser realizado com transparência, impessoalidade, igualdade e com o menor custo para os cofres públicos. Dessa maneira, não é razoável a movimentação de toda a máquina estatal para privilegiar determinados candidatos que se encontrem impossibilitados de realizar alguma das etapas do certame por motivos exclusivamente individuais;
• ao se permitir a remarcação do teste de aptidão física nessas circunstâncias, está se possibilitando que o término do concurso seja adiado inúmeras vezes, sem limites, considerando que, naquele determinado dia marcado, algum candidato poderia ter problemas de ordem individual, o que causaria tumulto e dispêndio desnecessário para a Administração;
• assim, não é razoável que a Administração fique à mercê de situações adversas para colocar fim ao certame, de modo a deixar os concursos em aberto por prazo indeterminado.

E no caso da GESTANTE? E se Maria estivesse GRÁVIDA no momento do teste físico e, por conta disso, não pudesse fazer a prova? Neste caso ela teria direito à prova de segunda chamada? A candidata gestante tem direito à remarcação do teste de aptidão física?
SIM. O STF afirmou que a candidata que esteja gestante no dia do teste físico possui o direito de fazer a prova em uma nova data no futuro.

Mesmo que o edital proíba expressamente isso? Mesmo que o edital diga que não haverá remarcação do teste físico em nenhuma hipótese?
SIM. Mesmo que o edital proíba expressamente a gestante terá direito à remarcação do teste.
Foi o que decidiu o STF, fixando a seguinte tese:
É constitucional a remarcação do teste de aptidão física de candidata que esteja grávida à época de sua realização, independentemente da previsão expressa em edital do concurso público.
STF. Plenário. RE 1058333/PR, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 21/11/2018 (repercussão geral).

E se a candidata já tivesse tido filho, mas ainda estivesse em licença-maternidade, ela também teria direito à prova de segunda chamada? Imagine a seguinte situação hipotética:
Gisele inscreveu-se no concurso para o cargo de Agente de Segurança Penitenciário Feminino.
A candidata foi aprovada em todas as provas.
Gisele, que estava grávida, deu à luz a uma menina em 24 de fevereiro.
Algum tempo depois, a Administração Pública convocou Gisele e os demais aprovados para o curso de formação, que foi marcado para iniciar no dia 20 de março.
Gisele formulou requerimento administrativo argumentando que estava amamentando e, em razão disso, pediu que fosse designada nova data para que ela realizasse o curso considerando que este exigia também esforço físico.
O pleito foi indeferido pela Administração Pública com base em uma previsão no edital que negava esta possibilidade.
Diante disso, Gisele impetrou mandado de segurança.

Gisele terá direito à remarcação do curso de formação? A candidata que está amamentando (lactante) na época do curso de formação para o cargo de agente penitenciário tem direito de fazer o curso em um período posterior?
SIM.
É constitucional a remarcação de curso de formação para o cargo de agente penitenciário feminino de candidata que esteja lactante à época de sua realização, independentemente da previsão expressa em edital do concurso público.
STJ. 1ª Turma. RMS 52.622-MG, Rel. Min. Gurgel de Faria, julgado em 26/03/2019 (Info 645).

Apesar de a hipótese não ser exatamente igual ao que decidiu o STF no RE 1058333/PR, o STJ entendeu que as premissas estabelecidas naquele julgamento são plenamente aplicáveis ao caso concreto.
Com efeito, a candidata, ao ser convocada para o Curso de Formação, encontrava-se em licença maternidade, com apenas um mês de nascimento da sua filha, período em que sabidamente todas as mulheres estão impossibilitadas de praticar atividades físicas, estando totalmente voltadas para amamentação e cuidados com o recém-nascido.
Também nessa hipótese devem ser observados os direitos destacados pelo STF no RE 1058333/PR e que são constitucionalmente protegidos (saúde, maternidade, família e planejamento familiar), merecendo a candidata lactante o mesmo amparo estabelecido pelo Supremo para as gestantes.



segunda-feira, 27 de maio de 2019

Decisão interlocutória que versa sobre ônus da prova desafia agravo de instrumento?



NOÇÕES GERAIS SOBRE O ÔNUS DA PROVA
Se, ao final do processo, o juiz entender que os fatos alegados não foram provados, o que ele deverá fazer? Qual deve ser a sua decisão neste caso?
O juiz terá que analisar qual das partes tinha o ônus de provar esse fato.
A parte que tinha esse ônus e que não conseguiu provar o fato irá suportar as consequências negativas. Em outras palavras, a parte que tinha o ônus e não provou, será “prejudicada” no resultado do processo.
Daí a importância de se estudar e analisar o ônus da prova.

Ônus da prova
Ônus da prova é a regra que atribui a uma das partes o ônus de suportar a falta de prova de um determinado fato.

Ônus x obrigação
Repare que, em nenhum momento eu disse que a parte tem a “obrigação” ou o “dever” de produzir a prova. Eu falei em “ônus”. Quais as diferenças?
DEVER
OBRIGAÇÃO
ÔNUS
É a necessidade de observar um comportamento imposto, de forma geral, pelo ordenamento jurídico.
É um dever jurídico específico e individualizado de prestação (dar, fazer, não fazer).
A obrigação é uma atividade que a pessoa faz em benefício de outrem.
É a necessidade de adotar determinada conduta para defender um interesse próprio.
Se a pessoa não adotar essa conduta, não há uma sanção contra ela. No entanto, deixará de ter uma vantagem.
É possível exigir que a parte cumpra o dever.
É possível exigir que a parte cumpra a obrigação.
Não é possível exigir que a parte cumpra o ônus.
Ex: dever de expor os fatos em juízo conforme a verdade (art. 77, I, do CPC).
Ex: em um contrato de compra e venda, o vendedor tem a obrigação de pagar o preço.
Ex: o autor tem o ônus de provar o fato constitutivo de seu direito (art. 373, I, do CPC).

Ônus imperfeito
Vimos acima que, se a parte tinha um ônus e deixou de adotar a providência necessária, ela terá uma desvantagem, perderá alguma coisa.
No caso do ônus da prova, contudo, a doutrina afirma que se trata de um ônus imperfeito. Isso porque, se a parte não se desincumbir do seu ônus (se a parte não conseguir trazer aos autos a prova que deveria), existe a mera possibilidade (mas não certeza) de que ocorra uma situação de desvantagem para ela.
Dessa forma, mesmo que a parte não consiga ela própria, provar suas alegações, ainda assim esse fato pode ser provado por outros meios e a parte pode vencer a demanda.
Ex: o autor não faz prova de suas alegações; o réu, no entanto, por descuido, juntou determinado documento que prova as afirmações do requerente. Nesse caso, mesmo o autor não tendo feito a prova, ele sofrerá nenhuma desvantagem e vencerá a demanda.
Essa realidade existe em razão do princípio da comunhão das provas: a prova produzida é prova do processo, não interessando quem produziu.

Aspectos subjetivo e objetivo
O ônus da prova pode ser analisado sob dois prismas:
a) Aspecto subjetivo:
Consiste em analisar o instituto sob o ângulo de quem é o responsável pela produção da prova (regra de conduta das partes).
Trata-se de informar as partes quem será prejudicado com a não produção da prova: autor ou réu.
Ex: o art. 373, I, do CPC prevê que o ônus da prova incumbe ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito. A lei já está avisando que o autor será prejudicado caso não demonstre o fato constitutivo de seu direito.

b) Aspecto objetivo:
Quando se fala em o ônus da prova sob o aspecto objetivo, o que se está dizendo é que se trata de uma regra de julgamento, ou seja, o ônus da prova é uma regra que o juiz deverá verificar no momento da prolação da sentença.
Ao decidir, o magistrado irá analisar se as partes juntaram aos autos provas que sirvam para elucidar os fatos controvertidos (ex: o autor alega que o réu bateu na traseira de seu veículo; o requerido argumenta que o autor deu marcha à ré). Caso não tenham sido produzidas provas suficientes e não seja possível elucidar a controvérsia por outros meios (presunções, máximas de experiências etc.), o juiz deverá aplicar as regras do ônus da prova e verificar quem tinha o ônus de provar o fato não demonstrado. A parte que tinha esse ônus sofrerá as consequências negativas e perderá a demanda neste ponto.

Os dois aspectos estão umbilicalmente ligados e se trata de uma classificação doutrinária, mas que não tem tanta relevância na prática forense essa distinção.

Aplicação subsidiária
As regras do ônus da prova são regras de aplicação subsidiária. Só podem ser aplicadas se não houver mais como produzir prova e o juiz ainda estiver em estado de dúvida.
A razão de existir das regras do ônus da prova é “evitar o non liquet, ou seja, a falta de resolução da crise de direito material”, de modo que “as regras sobre o ônus da prova constituem a ‘última saída para o juiz’, que não pode deixar de decidir”. Assim, as regras do ônus da prova “são necessárias, mas devem ser tratadas como exceção, pois o que se pretende com a atividade jurisdicional é que os provimentos dela emanados retratem a realidade, não meras ficções”. (BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes instrutórios do juiz. 6ª ed. São Paulo: RT, 2011, p. 127-130).
Em outras palavras, o juiz deve sempre tentar decidir com as provas que foram produzidas e com outros elementos de convicção. Somente se não conseguir mesmo, deverá se valer das regras do art. 373 do CPC e decidir em sentido contrário a quem não atendeu o ônus da prova.

Prova diabólica
Um tema intimamente ligado ao que estamos estudando diz respeito à prova diabólica.
Prova diabólica é aquela impossível ou excessivamente difícil de ser produzida.
Ex: o autor alega, na petição inicial, que o réu nunca lhe enviou a notificação extrajudicial. O autor não tem como comprovar isso. Seria exigir uma prova diabólica.
Outro bom exemplo “é a do autor da ação de usucapião especial, que teria de fazer prova do fato de não ser proprietário de nenhum outro imóvel (pressuposto para essa espécie de usucapião). É prova impossível de ser feita, pois o autor teria de juntar certidões negativas de todos os cartórios de registro de imóvel do mundo.” (DIDIER JR. Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 2. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 137).
Ainda segundo as lições de Didier, Braga e Oliveira, a prova diabólica pode ser de duas espécies:
Prova unilateralmente diabólica
Prova bilateralmente diabólica
Ocorre quando a prova é diabólica para a parte que tinha o ônus de produzi-la (segundo as regras do art. 373 do CPC), no entanto, é uma prova possível de ser juntada pela outra parte.
Ocorre quando a prova é diabólica para ambas as partes, ou seja, é impossível ou muito difícil para ambas as partes.
Neste caso, o juiz poderá inverter o ônus, determinando que a prova seja produzida pela outra parte que não tinha inicialmente o ônus de juntá-la. Isso está previsto no § 1º do art. 373.
Neste caso, não haverá inversão do ônus por conta da prova diabólica.
Não se pode simplesmente transferir a prova diabólica de uma parte para a outra.
§ 1º (...) diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput (...) poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso (...)
§ 2º A decisão prevista no § 1º deste artigo não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil.

Distribuição estática do ônus da prova
As regras gerais de distribuição do ônus da prova estão previstas no art. 373 do CPC:
Art. 373.  O ônus da prova incumbe:
I - ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito;
II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.

O sistema processual brasileiro adotou, como regra, a teoria da distribuição estática do ônus da prova, segundo a qual cabe ao autor provar o fato constitutivo do direito e ao réu cabe provar o fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.
Na distribuição estática do ônus da prova a lei atribui a uma determinada parte, de modo apriorístico, quais são os fatos específicos que deverão ser por ela provados, dando-lhe ciência prévia sobre como se desenvolverá a atividade instrutória, e o fato de que o ônus da prova, nessa perspectiva – estática – é uma regra de julgamento, motivo pelo qual não deve o juiz com ela se preocupar no curso da atividade probatória, mas somente ao final, e somente se porventura da instrução resultar algum fato relevante não esclarecido.

Inversão do ônus da prova
O cotidiano forense demonstrou, ao longo dos anos, que as regras de distribuição estática do ônus da prova previamente estabelecidas em lei não eram suficientes ou adequadas para solucionar todas as situações fáticas. Diante disso, chegou-se à conclusão de que seria necessária a criação de algumas regras de distribuição do ônus da prova diferentes daquelas pré-determinadas pela lei.
Surgiu, assim, o consenso de que, em determinados casos, haveria a necessidade de modificar (redistribuir, inverter) as regras gerais do ônus da prova.
O CPC denomina isso de “distribuição diversa do ônus da prova”. Na prática, é mais comum falarmos em inversão do ônus da prova.
A inversão do ônus da prova consiste, portanto, em modificar, em determinados casos excepcionais, as regras gerais do ônus da prova, que são previstas nos incisos do art. 373 do CPC.
Essa distribuição diversa pode ser decorrente de acordo entre as partes, da lei ou de decisão judicial. Assim, temos três espécies de inversão do ônus da prova:
a) Convencional;
b) Legal;
c) Judicial.

Inversão convencional do ônus da prova
Ocorre quando as partes combinam entre si que não seguirão as regras gerais dos incisos do art. 373, adotando um outro arranjo. É um exemplo de negócio jurídico processual.
Trata-se de hipótese de difícil ocorrência na prática, mas que é prevista no § 3º do art. 373 do CPC:
Em regra, a lei admite a distribuição diversa do ônus da prova por convenção das partes. Existem, contudo, três exceções.
Assim, não cabe a inversão convencional do ônus da prova quando:
a) recair sobre direito indisponível da parte;
b) tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito.
c) a inversão for estabelecida em detrimento do consumidor (art. 51, VI, do CDC).

Inversão legal do ônus da prova
Também chamada de inversão ope legis do ônus da prova.
Ocorre quando a lei determina que, em certas situações, haverá uma regra de ônus da prova diferente do art. 373 do CPC. São, portanto, exceções criadas pelo legislador à regra geral do art. 373 do CPC.
Na inversão legal do ônus da prova, a lei cria uma presunção relativa de determinado fato.
É o que acontece no art. 12, § 3º, no art. 14, § 3º e no art. 38, todos do CDC:
Art. 12 (...)
§ 3º - O fabricante, o construtor, o produtor ou importador só não será responsabilizado quando provar:
I - que não colocou o produto no mercado;
II - que, embora haja colocado o produto no mercado, o defeito inexiste;
III - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.

Art. 14 (...)
§ 3º - O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar:
I - que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste;
II - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.

Art. 38. O ônus da prova da veracidade e correção da informação ou comunicação publicitária cabe a quem as patrocina.

Inversão judicial do ônus da prova (distribuição do ônus da prova feita pelo juiz)
Ocorre quando o juiz, diante das peculiaridades do caso concreto, altera a regra geral prevista nos incisos do art. 373 do CPC.
A redistribuição judicial do ônus da prova pode ser feita a requerimento da parte ou até mesmo de ofício.

Inversão judicial do ônus da prova no CPC/2015
Encontra-se disciplinada nos §§ 1º e 2º do art. 373.
Vejamos, de forma organizada, o que dizem esses dois dispositivos.
O juiz poderá atribuir o ônus da prova de modo diferente da regra geral prevista no caput do art. 373 em três situações:
1) nos casos previstos em lei. Ex: art. 6º, VIII, do CDC.

2) quando for impossível ou extremamente difícil cumprir o encargo previsto no caput do art. 373.
Trata-se da inversão do ônus da prova para evitar que a parte tenha que produzir uma prova unilateralmente diabólica.
Em outras palavras, quando a regra geral do caput do art. 373 exigir que a parte faça uma prova diabólica, o juiz deverá inverter o ônus.
Obs: a decisão de inversão não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil. Em outras palavras, a inversão não pode gerar para a parte que recebeu esse ônus a tarefa de produzir uma prova diabólica. Não se pode simplesmente transferir a prova diabólica de uma parte para a outra. Não se admite a inversão do ônus em caso de prova duplamente diabólica (§ 2º do art. 373 do CPC).

3) quando a inversão gerar maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário.
Ex: o autor alega determinado fato; pela regra geral, caberia a ele o ônus de provar esse fato; no entanto, as peculiaridades do caso concreto revelam que é muito mais fácil para o réu trazer essa prova. Nesta hipótese seria possível a inversão.

A lei exige que essa inversão seja feita por decisão fundamentada do magistrado.
Além disso, a decisão que determina a inversão deve ser proferida antes da sentença, em um momento processual no qual se permita que a parte possa se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.
Pela sua importância, vale a pena ler os dispositivos do CPC:
Art. 373 (...)
§ 1º Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.
§ 2º A decisão prevista no § 1º deste artigo não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil.

Obs: este § 1º do art. 373 do CPC/2015 adotou a teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova. Assim, o caput traz a teoria estática e o § 1º a teoria dinâmica.
Obs2: a doutrina afirma que o § 2º do art. 373 do CPC traz a proibição de a redistribuição implicar prova diabólica reversa, ou seja, a inversão do ônus da prova “não pode implicar uma situação que torne impossível ou excessivamente oneroso à parte arcar com o encargo que acabou de receber”. (DIDIER JR. Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 2. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 148).

Inversão judicial do ônus da prova no CDC
O art. 6º, VIII, do CDC permite a inversão judicial do ônus da prova em duas hipóteses:
a) quando for verossímil a alegação do consumidor; ou
b) quando o consumidor for hipossuficiente.

Algumas observações sobre o tema:
• as duas situações acima são alternativas, ou seja, a inversão ocorrerá quando a alegação do consumidor for verossímil ou quando o consumidor for hipossuficiente;
• trata-se de inversão ope iudicis (a critério do juiz), ou seja, não se trata de inversão automática por força de lei (ope legis);
• pode ser concedida de ofício ou a requerimento da parte;
• a inversão sempre ocorre em benefício do consumidor, isto é, nunca pode ser contrária a ele.
• a inversão do ônus da prova de que trata o art. 6º, VIII, do CDC é regra de instrução, devendo a decisão judicial que determiná-la ser proferida preferencialmente na fase de saneamento do processo ou, pelo menos, assegurar à parte a quem não incumbia inicialmente o encargo a reabertura de oportunidade para manifestar-se nos autos (STJ. 2ª Seção. EREsp 422778-SP, Rel. para o acórdão Min. Maria Isabel Gallotti julgado em 29/2/2012).

Aprofundando. Inversão do ônus da prova x distribuição dinâmica do ônus da prova
É comum falarmos em inversão do ônus da prova e distribuição dinâmica do ônus da prova como sendo expressões sinônimas. No entanto, aprofundando o estudo do tema iremos encontrar alguns doutrinadores fazendo a distinção entre os institutos.
Inversão do ônus da prova
Distribuição dinâmica do ônus da prova
É uma mudança prévia e abstrata das regras de ônus da prova.
É uma mudança das regras de ônus da prova que se dá no caso concreto, com base na análise de quem está em melhores condições de produzir a prova.
O juiz não tem ampla liberdade na distribuição do ônus da prova. Não existe a possibilidade de se inverter o ônus de apenas um fato, por exemplo.
Há uma ingerência mais ampla do juiz na distribuição do ônus da prova entre as partes que permitirá, inclusive, o exame e a distribuição de cada fato específico isoladamente.
Ex: art. 6º, VIII, do CDC.
Ex: hipóteses 2 e 3 do § 1º do art. 373 do CPC (veja novamente acima).

Como leciona Eduardo Cambi:
“Pela teoria das cargas probatórias dinâmicas, a facilitação da prova para a tutela do bem jurídico não exige a prévia apreciação do magistrado (ope judicis) de critérios preestabelecidos de inversão do onus probandi, como se dá no art. 6º, inc. VIII, do CDC (verossimilhança da alegação ou hipossuficiência do consumidor).
Com efeito, na distribuição dinâmica do ônus da prova, não há uma verdadeira inversão, porque só se poderia falar em inversão caso o ônus fosse estabelecido prévia e abstratamente. Não é o que acontece com a técnica da distribuição dinâmica que se dá no caso concreto. O magistrado continua sendo o gestor da prova, agora com poderes ainda maiores, porquanto, ao invés de partir do modelo clássico (CPC-73, art. 333) para depois inverter o onus probandi (CDC, art. 6º, inc. VIII), cabe verificar, no caso concreto, quem está em melhores condições de produzir a prova e, destarte, distribuir este ônus entre as partes (NCPC, art. 373, §1º).” (CAMBI, Eduardo. Teoria das cargas probatórias dinâmicas (distribuição dinâmica do onus da prova) in Coleção Grandes Temas do Novo CPC, vol. 5: direito probatório. Coord.: Fredie Didier Jr. et. al. 3ª ed. Salvador: Jus Podivm, 2018. p. 332/333).

Destaca a doutrina, ainda, que a distribuição dinâmica do ônus da prova se diferencia da inversão do ônus da prova porque, naquela (distribuição), haverá uma mais ampla ingerência do juiz na distribuição do ônus da prova entre as partes que permitirá, inclusive, o exame e a distribuição de cada fato específico isoladamente:
“3.4. A possibilidade de redistribuição do ônus da prova não importa na inversão mecânica das regras estipuladas no art. 373, para, exemplificativamente, repassar ao autor a prova do fato impeditivo, modificativo ou extintivo do seu direito ou, mesmo, para atribuir ao réu a prova do fato constitutivo. Tal se dá, por exemplo, nas situações relativas à inversão do ônus da prova no Código de Defesa e Proteção do Consumidor (art. 6º, VIII). Diversamente, na dinamização prevista no preceptivo, a redistribuição do ônus da prova pode recair sobre determinado fato, sem que isso envolva necessariamente a atribuição para o onerado de toda uma classe de fatos (v.g., fatos constitutivos). Noutras palavras, o juiz poderá, em demanda indenizatória, atribuir ao réu a demonstração da ausência de nexo causal, permanecendo com o autor o encargo da comprovação da ação culposa e dos danos. Logo, o juiz pode modular o ônus das provas de acordo com as peculiaridades da causa, atribuindo a cada parte a comprovação de determinados fatos, tudo objetivando a formação de um melhor módulo probatório.” (GAJARDONI, Fernando da Fonseca; DELLORE, Luiz; ROQUE, André Vasconcelos; OLIVEIRA JR., Zulmar. Processo de conhecimento e cumprimento de sentença: comentários ao CPC de 2015. São Paulo: Método, 2016. p. 271)

Segundo a Min. Nancy Andrighi, “embora ontologicamente distintas, a distribuição dinâmica e a inversão do ônus têm em comum o fato de excepcionarem a regra geral do art. 373, I e II, do CPC/15, de terem sido criadas para superar dificuldades de natureza econômica ou técnica e para buscar a maior justiça possível na decisão de mérito e de se tratarem de regras de instrução que devem ser implementadas antes da sentença, a fim de que não haja surpresa à parte que recebe o ônus no curso do processo e também para que possa a parte se desincumbir do ônus recebido”.
Vale ressaltar, no entanto, que você encontrará diversos outros doutrinadores (talvez a maioria) afirmando que a hipótese do § 1º do art. 373 do CPC é inversão do ônus da prova.

RECURSO CONTRA A DECISÃO QUE DELIBERA SOBRE A INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA
Imagine a seguinte situação hipotética:
João ajuizou ação de indenização contra a Volvo do Brasil Veículos Ltda. alegando que adquiriu um veículo 0km dessa marca e que, no entanto, o automóvel apresentou inúmeros vícios de qualidade (“defeitos”) que não foram consertados pela concessionária autorizada.
O juiz proferiu decisão interlocutória determinando a inversão do ônus da prova, nos termos do art. 6º, VIII, do CDC:
Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
(...)
VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiência;

Assim, o magistrado determinou que a Volvo provasse que o vício (“defeito”) não existia e que o carro está funcionando perfeitamente.
A Volvo não se conformou com a decisão e interpôs agravo de instrumento afirmando que esse recurso seria cabível com base no inciso XI do art. 1.015 do CPC/2015:
Art. 1.015. Cabe agravo de instrumento contra as decisões interlocutórias que versarem sobre:
(...)
XI - redistribuição do ônus da prova nos termos do art. 373, § 1º;

João apresentou contrarrazões afirmando que não cabe agravo de instrumento nesta hipótese. Isso porque a decisão proferida pelo juiz inverteu o ônus da prova com fundamento no CDC e não com base no instituto da redistribuição dinâmica do ônus da prova previsto no § 1º do art. 373 do CPC/2015.
Assim, para João, não se pode aplicar o art. 1.015, XI, do CPC, que é específico para impugnar a decisão que trata sobre a redistribuição dinâmica do ônus prova do art. 373, § 1º do CPC.

O recurso será conhecido? Cabe agravo de instrumento nesta hipótese?
SIM.
É cabível a impugnação imediata (é cabível agravo de instrumento) da decisão interlocutória que tenha tratado sobre quaisquer das exceções mencionadas no § 1º do art. 373 do CPC/2015.
Assim, o agravo de instrumento deve ser admitido não apenas na hipótese de decisão interlocutória que defere ou que indefere a distribuição dinâmica do ônus da prova, mas, igualmente, na hipótese de decisão interlocutória que defere ou que indefere quaisquer outras atribuições do ônus da prova distintas da regra geral.
Conforme vimos acima, o art. 373, §1º, do CPC/2015, contempla duas regras jurídicas distintas, ambas criadas para excepcionar à regra geral do caput do art. 373, sendo que a primeira diz respeito à atribuição do ônus da prova, pelo juiz, em hipóteses previstas em lei, de que é exemplo a inversão do ônus da prova prevista no art. 6º, VIII, do CDC, e a segunda diz respeito à teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova, incidente a partir de peculiaridades da causa que se relacionem com a impossibilidade ou com a excessiva dificuldade de se desvencilhar do ônus estaticamente distribuído ou, ainda, com a maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário.
Em outras palavras, a hipótese do art. 6º, VIII, do CDC está sim tratada no § 1º do art. 373 do CPC uma vez que esse dispositivo dispõe também a inversão do ônus da prova nos casos previstos em lei:
Art. 373 (...)
§ 1º Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade (....)

Em suma, decidiu o STJ que:
É cabível agravo de instrumento contra decisão interlocutória que defere ou indefere a distribuição dinâmica do ônus da prova ou quaisquer outras atribuições do ônus da prova distinta da regra geral, desde que se operem ope judicis e mediante autorização legal.
STJ. 3ª Turma. REsp 1.729.110-CE, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 02/04/2019 (Info 645).




sexta-feira, 24 de maio de 2019

É juridicamente possível a realização do procedimento de criogenia no Brasil?



Imagine a seguinte situação hipotética:
João faleceu deixando duas filhas: Carla e Larissa.
Carla morava em Porto Alegre (RS) e Larissa vivia no Rio de Janeiro (RJ) com o pai (João).
Logo após a morte, Larissa avisou sua irmã que o desejo de João era o de seu corpo fosse submetido ao procedimento de congelamento (criogenia). Por isso, Larissa explicou que já havia providenciado os preparativos para a realização da criogenia, por intermédio da empresa Rio Pax, localizada na cidade do Rio de Janeiro/RJ, para posterior traslado do corpo aos Estados Unidos, onde o corpo ficaria congelado.
Carla não concordou e afirmou que essa ideia não fazia sentido. Disse, ainda, que o pai nunca lhe contou isso e que não deixou nada assinado manifestando esse suposto desejo.
Diante disso, Carla ajuizou ação ordinária contra Larissa com o objetivo de impedir a realização da criogenia, buscando, em consequência, o sepultamento do corpo de seu pai ao lado de sua ex-esposa no cemitério.
Larissa contestou afirmando que seu pai era uma pessoa aficionada por tecnologia e sempre acreditou na criogenia. Argumentou também que a autora não tinha muito contato com o genitor e que ele não deixou seu desejo por escrito porque nunca acreditou que pudesse haver algum empecilho por parte da outra filha.

A discussão jurídica travada neste caso reside, portanto, no seguinte ponto: para que um morto seja submetido à criogenia, é necessário que ele tenha deixado uma declaração escrita informando esse seu desejo? É necessária alguma formalidade específica?
NÃO.
Não há exigência de formalidade específica acerca da manifestação de última vontade do indivíduo sobre a destinação de seu corpo após a morte, sendo possível a submissão do cadáver ao procedimento de criogenia em atenção à vontade manifestada em vida.
STJ. 3ª Turma. REsp 1.693.718-RJ, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 26/03/2019 (Info 645).

Vamos entender os argumentos jurídicos, fazendo abaixo um resumo do brilhante voto do Min. Marco Aurélio Bellize.

Hipóteses mais comuns de destinação dos restos mortais
No Brasil, a forma mais comum de destinação dos restos mortais de um ser humano é o sepultamento em túmulo, com o respectivo enterro (inumação) no cemitério.
Existem, contudo, outras formas de destinação do corpo após a morte do indivíduo.
Como exemplos mais comuns, podemos citar:
a) a cremação (incineração do cadáver com posterior entrega das cinzas aos familiares em urna apropriada), regulada pelo art. 77, § 2º da Lei nº 6.015/73 (Lei de Registros Públicos):
Art. 77 (...)
§ 2º A cremação de cadáver somente será feita daquele que houver manifestado a vontade de ser incinerado ou no interesse da saúde pública e se o atestado de óbito houver sido firmado por 2 (dois) médicos ou por 1 (um) médico legista e, no caso de morte violenta, depois de autorizada pela autoridade judiciária.

b) a destinação gratuita do próprio corpo, após a morte, para fins científicos ou altruísticos, nos termos do art. 14 do Código Civil:
Art. 14. É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte.
Parágrafo único. O ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer tempo.

c) a destinação do cadáver não reclamado às escolas de Medicina, hipótese disciplinada pela Lei nº 8.501/92, cujo art. 2º preconiza:
Art. 2º O cadáver não reclamado junto às autoridades públicas, no prazo de trinta dias, poderá ser destinado às escolas de medicina, para fins de ensino e de pesquisa de caráter científico.

Hipóteses menos tradicionais
Existem também algumas situações mais diferentes das tradicionais, verificadas em diversas partes do mundo, e que não são previstas expressamente na legislação brasileira:
• a “resomação” ou “biocremação”: processo em que, utilizando-se água superaquecida e hidróxido de potássio, o cadáver é liquefeito, sobrando apenas os ossos, os quais são cremados e devolvidos aos familiares em uma urna.
• os “recifes eternos” (eternal reefs): procedimento em que se misturam os restos mortais de um indivíduo com cimento ecológico para criar formações de recifes artificiais no fundo do mar;
• a “plastinação”: procedimento que, semelhante à mumificação, consiste em preservar o corpo em uma forma semireconhecível. Segundo informações obtidas no site www.hypescience.com, essa técnica foi inventada pelo anatomista Gunther von Hagens, sendo “usada em escolas de medicina e laboratórios de anatomia para preservar amostras dos órgãos para a educação. Mas von Hagens tomou o processo um passo adiante, e criou exposições de corpos plastinados como se estivessem congelados no meio de suas atividades cotidianas. Segundo o Instituto de Plastinação, milhares de pessoas se inscreveram para doar seus corpos para a educação ou exposição”.

Criogenia
Outra forma de destinação do corpo humano para depois da morte não prevista em nossa legislação, que vem ganhando muitos adeptos no mundo todo é a criogenia.
A criogenia (ou criopreservação) é a técnica de congelamento do corpo humano após a morte, em baixíssima temperatura, a fim de conservá-lo, com o intuito de reanimação futura da pessoa, caso sobrevenha alguma importante descoberta científica que possibilite o seu retorno à vida.
Em outras palavras, a criogenia consiste no congelamento de cadáveres a baixas temperaturas, com a finalidade de que, com os possíveis avanços da ciência, sejam, um dia, ressuscitados.
Assim, quando o paciente é declarado morto, os médicos tentam evitar a deterioração do corpo, injetando-lhe medicamentos específicos, e se utilizando de máquinas que mantém a circulação do sangue e a oxigenação do corpo.
O corpo é envolto em uma manta térmica especial, que ajuda a mantê-lo frio, e transportado até a clínica em temperaturas baixas, que fazem com que o cérebro exija menos oxigênio e mantenha os tecidos vivos por mais tempo.
Na clínica, o sangue do paciente é retirado ao mesmo tempo em que, por outro tubo, é inserido o líquido crioprotetor, uma substância química à base de glicerina. O líquido substitui outros compostos intracelulares, evitando que cristais de gelo se formem dentro das células. Depois de injetadas as substâncias, o corpo é direcionado para uma cabine com gás nitrogênio circulante. Lá, fica esfriando por cerca de três horas para assegurar que todas as partes do corpo serão congeladas por igual. No final do processo, o paciente estará completamente vitrificado.
Em seguida, o corpo é colocado em um saco plástico protetor e imerso em um cilindro de nitrogênio líquido, onde é monitorado. O corpo, então, repousará em tal cilindro, podendo ser visitado pela família até que a ciência descubra um modo de recuperá-lo.
Vale ressaltar que os familiares do falecido que está em criogenia podem visitar o corpo no instituto onde ele fica armazenado (Cryonics Institute), havendo, inclusive, um local para depósito de flores, como em um cemitério.
Há, atualmente cerca de 250 pessoas congeladas em tubos de nitrogênio, conforme informações da Alcor Life Extension Foundation, fundação destinada à pesquisa e realização da criogenia, bem como do Cryonics Institute, instituto que realiza o procedimento de criopreservação, ambos localizados nos Estados Unidos.

Criogenia: lacuna normativa
O ordenamento jurídico pátrio não possui previsão legal sobre a utilização da criogenia em corpo humano post mortem. Também não há qualquer vedação no nosso sistema jurídico em relação à adoção desse procedimento. Trata-se, assim, de verdadeira lacuna normativa.
Nessas hipóteses, para viabilizar a integração da norma jurídica, o art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro - LINDB (Decreto-lei nº 4.657/42) estabelece a seguinte regra:
Art. 4º Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

Direito ao cadáver
O ordenamento jurídico confere certa margem de liberdade à pessoa para dispor sobre seu patrimônio jurídico após a morte, assim como protege essa vontade e assegura que seja observada.
Existe, portanto, uma autonomia para que a pessoa indique, em vida, o que deve ser feito com seu corpo, após a sua morte. Esse direito que a pessoa tem é chamado de “direito ao cadáver”.
O direito ao cadáver é uma vertente do direito ao próprio corpo, sendo considerado, portanto, como um desdobramento do direito de personalidade. Nesse sentido:
“Como prolongamento do direito ao corpo, e em nosso entender, sob a mesma base, encontra-se o direito da pessoa de dispor quanto ao destino do próprio cadáver, devendo ser respeitada a sua vontade pela coletividade, salvo se contrária à ordem pública.” (BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 7ª ed. Atualizada por Eduardo Carlos Bianca Bittar. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 85-86)

Por força do direito ao cadáver a pessoa tem a possibilidade de dizer de qual modo deseja que seu corpo seja sepultado (ex: se cremado, enterrado etc.), bem como pode autorizar a doação do seu corpo morto, no todo ou em partes).

Criogenia está protegida pelo direito ao cadáver
Com isso, conclui-se que o procedimento da criogenia encontra proteção jurídica, na medida em que o indivíduo tem autonomia para escolher a destinação de seu corpo e não há, na lei, uma proibição quanto à escolha por esse procedimento.
Vale ressaltar, ainda, que, além de não haver proibição na lei, a criogenia não ofende a moral e os bons costumes.

Direito ao cadáver não é de titularidade dos herdeiros do falecido, mas pode ser por estes defendido
Os familiares ou herdeiros do morto não são os titulares do direito ao cadáver. No entanto, possuem capacidade jurídica de fato para exercer a sua proteção considerando a impossibilidade do falecido de defender esse seu direito.
Em casos envolvendo a tutela de direitos da personalidade do indivíduo post mortem (direito ao cadáver), o ordenamento jurídico legitima os familiares mais próximos a atuarem em favor dos interesses deixados pelo de cujus. São exemplos dessa legitimação as normas insertas nos arts. 12, parágrafo único, e 20, parágrafo único, do Código Civil.
Assim, a filha do falecido tem legitimidade para defender a vontade manifestada por seu pai no sentido de ser submetido à criogenia.

Ok. É possível que o indivíduo declare em vida que deseja que seu corpo seja submetido à criogenia. No entanto, a pergunta que vem em seguida é a seguinte: é necessário que o indivíduo, em vida, tenha feito uma manifestação escrita nesse sentido?
NÃO. Embora seja recomendável, a fim de evitar futuros litígios entre os familiares, não se exige que a pessoa tenha deixado por escrito a vontade de ser cremada após a morte, isto é, não há exigência legal de que essa manifestação de vontade seja formalizada por meio de escritura pública, testamento ou outro documento correlato, sobretudo porque na nossa cultura não é de praxe deixar formalizado esse tipo de última vontade.

Com base em que se conclui que não é necessária manifestação escrita neste caso?
Com base naquilo que a Lei dos Registros Públicos prevê a respeito da cremação:
Art. 77 (...)
§ 2º A cremação de cadáver somente será feita daquele que houver manifestado a vontade de ser incinerado ou no interesse da saúde pública e se o atestado de óbito houver sido firmado por 2 (dois) médicos ou por 1 (um) médico legista e, no caso de morte violenta, depois de autorizada pela autoridade judiciária.

A LRP não exige que o indivíduo tenha deixado um documento escrito dizendo que desejava ser cremado. Dessa maneira, como a Lei não exige uma forma especial, deve-se concluir que é possível aferir a vontade do indivíduo, após o seu falecimento, por quaisquer outros meios de prova legalmente admitidos (ex: testemunhas).
Esse mesmo raciocínio da cremação deve ser aplicado para a criogenia.

Em caso de ausência de manifestação expressa deve-se dar prevalência à palavra dos familiares próximos ao morto
Na falta de manifestação expressa deixada pelo indivíduo em vida acerca da destinação de seu corpo após a morte, presume-se que sua vontade seja aquela apresentada por seus familiares mais próximos.
Os familiares mais próximos podem traduzir a expressão da vontade da pessoa no sentido de ser submetida ao procedimento da criogenia após o seu falecimento.

Voltando ao nosso exemplo:
Tanto a autora como a ré possuem o mesmo grau de parentesco com o falecido (são filhas). No entanto, Larissa morava sozinha com seu pai há muitos anos, sendo razoável concluir, diante das particularidades fáticas do caso, que a sua manifestação é a que traduz a real vontade de seu genitor em relação à destinação de seus restos mortais.




quinta-feira, 23 de maio de 2019

INFORMATIVO Comentado 938 STF


Olá amigos do Dizer o Direito,

Já está disponível o INFORMATIVO Comentado 938 STF.

Confira abaixo o índice. Bons estudos.


ÍNDICE DO INFORMATIVO 938 DO STF

DIREITO PROCESSUAL CIVIL
RECLAMAÇÃO
O ato impugnado na reclamação deve ser posterior à decisão paradigma que se alega violada.

DIREITO PENAL
PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA
Possibilidade de aplicar o regime inicial aberto ao condenado por furto, mesmo ele sendo reincidente, desde que seja insignificante o bem subtraído.

DIREITO PROCESSUAL PENAL
RECLAMAÇÃO
O ato impugnado na reclamação deve ser posterior à decisão paradigma que se alega violada.

DIREITO TRIBUTÁRIO
ISSQN
É inconstitucional lei municipal que crie restrições não previstas no art. 9º, §1º, do DL 406/68 para que sociedades de advogados tenham direito ao regime do ISSQN Fixo.

IPI
Empresas que adquirem insumos, matéria prima e material de embalagem de indústrias da ZFM possuem direito ao creditamento de IPI mesmo que a venda tenha ocorrido sob o regime de isenção.

DIREITO FINANCEIRO
ORÇAMENTO
LC federal deve fixar os valores mínimos a serem aplicados anualmente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios em ações e serviços públicos de saúde, não podendo norma de Constituição estadual ou lei orgânica prever esses percentuais.











Dizer o Direito!