Imagine a seguinte situação
hipotética:
João conduzia seu veículo quando
acertou Laura, pedestre, causando-lhe graves ferimentos que a impediram de
trabalhar durante vários dias.
Vale ressaltar que, logo após o
acidente, a polícia realizou “teste do bafômetro” em João, tendo sido
constatada a presença de 0,97 mg/l (noventa e sete miligramas de álcool por
litro de ar).
Alguns meses depois, Laura
ajuizou ação de indenização por danos morais e materiais contra João.
Contestação
Em sua contestação, o réu alegou
a culpa exclusiva da vítima pelo acidente de trânsito. Afirmou que a autora
estava atravessando a rua em um local que não tinha faixa de pedestre e com
iluminação precária, colocando-se em situação de risco que veio a se
implementar.
Alegou
que o fato de o exame de alcoolemia ter apresentado resultado positivo não é
capaz, por si só, de induzir a conclusão por sua responsabilidade, notadamente
se considerada a conduta imprudente da vítima.
Argumentou que não existe nexo de
causalidade entre a embriaguez e o motivo da colisão, esclarecendo que não foi
o fato de estar embriagado que deu causa ao atropelamento e sim a circunstância
de a autora estar transitando na beira da rua, em local onde a iluminação
desfavorece o trânsito de veículos, impedindo o desvio em tempo de evitar a
colisão.
Instrução probatória
Mesmo após a instrução
probatória, não ficou devidamente esclarecido se a vítima, no momento em que
foi atingida pelo veículo - conduzido pelo réu alcoolizado - encontrava-se na
calçada da avenida ou à margem da calçada, na pista de rolamento, ali
caminhando ou se preparando para atravessar a rua.
Sentença
O juiz acolheu a tese do réu e
disse que, como não foi possível definir se a vítima se encontrava na calçada
ou na pista de rolamento (ainda que à margem, próxima da calçada), não se
poderia reconhecer a culpa do condutor do veículo, a despeito de ele se
encontrar alcoolizado. Logo a autora não teria conseguido comprovar a culpa do
réu pelo acidente de trânsito.
Vale
ressaltar que, segundo o art. 373, I, do CPC/2015:
Art. 373. O ônus da prova incumbe:
I - ao autor, quanto ao fato
constitutivo de seu direito;
Agiu corretamente o juiz, segundo
o STJ?
NÃO.
Segundo decidiu o STJ:
O fato de o condutor do veículo
estar embriagado gera uma presunção de que ele é o culpado pelo acidente de trânsito.
Em uma ação de indenização
envolvendo acidente de trânsito, o condutor do veículo que estava embriagado no
momento do evento possui, contra si, uma presunção de que é culpado.
Haverá, assim, uma inversão do
ônus probatório de forma que caberá
a ele (condutor embriagado) demonstrar alguma causa excludente do nexo de
causalidade.
Inobservância das normas de
trânsito e presunção de culpa
A inobservância das normas de trânsito pode
repercutir na responsabilização civil do infrator, a
caracterizar a culpa
presumida do infrator, se tal comportamento representar,
objetivamente, o comprometimento da segurança
do trânsito na
produção do evento danoso em exame;
ou seja, se tal
conduta, contrária às regras de
trânsito, revela-se idônea a causar
o acidente, no
caso concreto, hipótese em que, diante
da inversão do
ônus probatório operado,
caberá ao transgressor comprovar a ocorrência de alguma excludente
do nexo da causalidade, tal como a culpa ou fato exclusivo da vítima, a
culpa ou fato exclusivo de terceiro, o caso fortuito ou a força maior.
Aplica-se aqui a tese da culpa da
legalidade (ou culpa contra a legalidade).
Tese da culpa contra a legalidade (culpa
da legalidade)
Segundo a tese da culpa contra a legalidade
(ou culpa da legalidade), deve-se reconhecer a culpa presumida do agente que
violar dever jurídico imposto em norma jurídica regulamentar.
Assim, por exemplo, o condutor que
tiver descumprido uma norma de trânsito será considerado presumivelmente culpado
pelo acidente, devendo indenizar a vítima, salvo se comprovar uma causa
excludente do nexo causal.
Vale ressaltar que se trata de uma
presunção relativa (presunção iuris
tantum). Há, portanto, uma inversão do ônus da prova, considerando que ele
(agente que descumpriu a norma) é quem terá que comprovar a causa excludente.
Se não conseguir isso, será condenado a indenizar.
Aplicação em especial nos acidentes de
trânsito
A teoria da culpa contra legalidade se
aplica principalmente nos “casos de acidentes de veículos e encontraria
fundamento no fato de as autoridades competentes se basearem na experiência
daquilo que normalmente acontece, ao expedirem os regulamentos e instruções de
trânsito para segurança do tráfego em geral.
(...)
A jurisprudência pátria tem admitido a
presunção de culpa em determinados casos de infração aos regulamentos de
trânsito: colisão na traseira de outro veículo, por inobservância da regra que manda
o motorista guardar distância de segurança entre o veículo que dirige e o que
segue imediatamente à sua frente; invasão de preferencial, em desrespeito à
placa ‘Pare’ ou à sinalização do semáforo; invasão da contramão de direção, em
local de faixa contínua; velocidade excessiva e inadequada para o local e as condições
do terreno; pilotagem em estado de embriaguez etc” (GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro. Vol. 4.
Responsabilidade Civil. 7ª ed., São Paulo: Saraiva, 2012, p. 303-304).
Não é toda infração administrativa que
gerará essa presunção
Vale ressaltar que não é todo e
qualquer comportamento contrário às normas de trânsito que repercute na
apuração da responsabilidade civil, especificamente na caracterização da culpa
presumida do agente.
A título de exemplo, pode-se citar o
caso do condutor que se envolve em acidente de trânsito, com carteira de
habilitação por mais de 30 (trinta) dias. Ainda que, nos termos do art. 162, V,
do Código de Trânsito Brasileiro tal conduta configure infração administrativa
gravíssima, o condutor não terá, contra si, a presunção de culpa, pois esta
circunstância, objetivamente considerada, não se revela idônea a atribuir ao
condutor a produção do evento danoso.
Inobservância das
normas de trânsito gera a presunção se essa conduta tiver o condão de gerar o
acidente
A inobservância das normas de trânsito
pode repercutir na responsabilização civil do infrator, a caracterizar a culpa
presumida do infrator, se tal comportamento revela-se idôneo a causar o
acidente no caso concreto, hipótese em que, diante da inversão do ônus
probatório operado, caberá ao transgressor comprovar a ocorrência de alguma
excludente do nexo da causalidade, tal como a culpa ou fato exclusivo da
vítima, a culpa ou fato exclusivo de terceiro, o caso fortuito ou a força
maior.
Voltando ao caso concreto
É indiscutível que a condução de
veículo em estado de embriaguez representa, por si só, gravíssimo
descumprimento do dever de cuidado e de segurança no trânsito, na medida em que
o consumo de álcool compromete as faculdades psicomotoras, com significativa
diminuição dos reflexos; enseja a perda de autocrítica, o que faz com que o
condutor subestime os riscos ou os ignore completamente; promove alterações na
percepção da realidade; enseja déficit de atenção; afeta os processos
sensoriais; prejudica o julgamento e o tempo das tomadas de decisão; entre
outros efeitos que inviabilizam a condução de veículo automotor de forma
segura.
Assim, dirigir embriagado é uma
conduta contrária às normas jurídicas de trânsito e que, além disso, revela-se
idônea (apta) à produção do acidente.
Em tais circunstâncias, o
condutor tem, contra si, a presunção relativa de culpa, a ensejar a inversão do
ônus probatório. Cabe, assim, ao motorista embriagado comprovar uma causa
excludente do nexo causal. Se não conseguir, terá que indenizar.
Conclusão:
Em
ação destinada a apurar a responsabilidade civil decorrente de acidente de
trânsito, presume-se culpado o condutor de veículo automotor que se encontra em
estado de embriaguez, cabendo-lhe o ônus de comprovar a ocorrência de alguma
excludente do nexo de causalidade.
STJ. 3ª Turma. REsp 1.749.954-RO, Rel.
Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 26/02/2019 (Info 644).
Observação final: vale ressaltar
que o tema tratado envolve responsabilidade (aspecto cível) e não a
responsabilidade penal. A culpa presumida (culpa in re ipsa) não é aceita,
atualmente, no Direito Penal, tendo em vista que se trata de responsabilidade
penal objetiva. A culpa não se presume, deve ser provada.