Religiões de matriz africana
É muito comum hoje em dia se
falar em “religiões de matriz africana”.
Religiões de matriz africana é
uma nomenclatura utilizada para designar as religiões que tiveram origem ou
buscaram inspiração religiões tradicionais africanas.
A história das religiões de
matriz africana está diretamente relacionada com a escravidão no Brasil, quando
escravos negros chegaram ao país vindos da África e trouxeram seu idioma,
conhecimentos, tradições e religiões.
Os adeptos dessas religiões
sempre sofreram com o preconceito de muitas pessoas com relação às suas práticas
religiosas.
Podemos citar os seguintes
exemplos de religiões de matriz africana: Candomblé, Cabula, Catimbó, Umbanda,
Quimbanda, Xambá e Omolocô.
Animais em cultos de religiões de
matriz africana
Algumas religiões de matriz
africana realizam sacrifício de animais em seus cultos. É o caso, por exemplo,
do Candomblé. A Umbanda, por outro lado, não concorda essa prática.
Os rituais variam de acordo com o
grupo religioso. No entanto, em linhas gerais, acontece mais ou menos o
seguinte: é escolhido um animal para ser morto no ritual (geralmente galinhas,
patos, bodes, carneiros, bois). Depois de morto por um líder religioso que tem
essa função (axogum), algumas partes do animal são colocadas em locais
específicos para serem oferecidos à divindade religiosa (orixá). O sangue pode
ser utilizado para sacramentar imagens. A carne é preparada para servir como
refeição e o couro, algumas vezes empregado na confecção de atabaques.
Existe uma premissa que é
defendida e adotada pela maioria dos terreiros: o animal utilizado no
sacrifício deve ser morto de forma rápida com o objetivo de não causar dor.
Assim, as lideranças religiosas
defendem que não há maus-tratos e condenam praticantes que deixam animais
feridos, mas ainda vivos em encruzilhadas.
Lei estadual prevendo a
possibilidade de sacrifício ritual de animais em cultos
O caput do art. 2º da Lei
estadual nº 11.915/2003, do Rio Grande do Sul, proíbe uma lista de condutas que
são consideradas maus-tratos de animais. O parágrafo único deste artigo, no
entanto, prevê que tais vedações não se aplicam para o sacrifício de animais em
rituais de cultos de religiões de matriz africana.
Veja a
redação do dispositivo legal:
Art. 2º É vedado:
I - ofender ou agredir fisicamente os
animais, sujeitando-os a qualquer tipo de experiência capaz de causar
sofrimento ou dano, bem como as que criem condições inaceitáveis de existência;
II - manter animais em local
completamente desprovido de asseio ou que lhes impeçam a movimentação, o
descanso ou os privem de ar e luminosidade;
III - obrigar animais a trabalhos
exorbitantes ou que ultrapassem sua força;
IV - não dar morte rápida e indolor a
todo animal cujo extermínio seja necessário para consumo;
V - exercer a venda ambulante de
animais para menores desacompanhados por responsável legal;
VI - enclausurar animais com outros que
os molestem ou aterrorizem;
VII - sacrificar animais com venenos ou
outros métodos não preconizados pela Organização Mundial da Saúde - OMS -, nos
programas de profilaxia da raiva.
Parágrafo único. Não se enquadra nessa vedação o livre exercício dos cultos e liturgias das
religiões de matriz africana. (Incluído pela Lei nº 12.131/2004)
ADI
O Ministério Público do Rio
Grande do Sul ingressou com ADI no TJ/RS alegando que esse parágrafo único
seria inconstitucional tanto sob o ponto de vista formal como material.
Sob o aspecto formal, a
lei teria violado a competência da União para legislar sobre direito penal (art.
22, I, da CF/88). Isso porque este art. 2º, parágrafo único, da Lei estadual
teria criado uma causa excludente de ilicitude para afastar a incidência de
crime ambiental.
Além disso,
haveria inconstitucionalidade material pela violação ao art. 19, I, da
CF/88 considerando que a lei estadual somente permitiu o sacrifício de animais
nos cultos de matriz africana, deixando de fora da regra os cultos de outras
religiões:
Art. 19. É vedado à União, aos Estados,
ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou
igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou
seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da
lei, a colaboração de interesse público;
A questão chegou até o STF que
respondeu ao seguinte questionamento: essa lei é constitucional?
SIM.
Lei estadual não tratou sobre
direito penal
A Lei do Estado do Rio Grande do
Sul não tratou sobre matéria penal.
A Lei nº 11.915/2003, do RS,
instituiu o Código Estadual de Proteção aos Animais, ou seja, um diploma que estabelece
regras de proteção à fauna, define conceitos e afasta a prática de determinadas
condutas.
Não há, portanto, nenhuma matéria
criminal envolvida, razão pela qual não houve usurpação de competência da
União.
O parágrafo único do art. 2º da Lei
prevê uma hipótese de exclusão de responsabilidade administrativa na
hipótese de abate de animais em cultos religiosos, que em nada se relaciona com
a excludente de ilicitude penal. Em nenhum momento a lei estadual fala em crime
ou na sua exclusão.
Lei estadual não violou
competência da União para editar normas gerais de proteção ao meio ambiente
A competência para legislar sobre
proteção da fauna e do meio ambiente em geral é concorrente, estando dividida
entre a União, Estados, DF e Municípios (art. 24, VI c/c art. 30, I, da CF/88).
Logo, compete à União editar normas
gerais sobre o tema, cabendo ao Estado suplementar essa legislação federal
(art. 22, § 2º). Vale ressaltar que a norma editada pelo Estado não contrariar
aquilo que está previsto nas normas gerais da União, sob pena de ser
inconstitucional.
No caso concreto, o STF
considerou que o art. 2º, parágrafo único, da Lei gaúcha não ofendeu a competência
da União para editar normas gerais de proteção do meio ambiente. Isso porque não
existe lei federal tratando sobre o sacrifício de animais com finalidade
religiosa. Logo, a lei estadual, ao tratar sobre o tema, não infringiu normas
gerais da União.
A Lei de Crimes Ambientais (Lei
federal nº 9.605/98) foi editada para tutelar a fauna silvestre, especialmente
em atividades de caça. Ela não tratou, nem mesmo indiretamente, sobre imolação
de animais em custos religiosos. Logo, percebe-se uma omissão da União em
editar normas gerais sobre esse tema específico (sacrifício de animais em
rituais religiosos).
A omissão da
União na edição de normas gerais faz com que o Estado-membro tenha liberdade
para estabelecer regras a respeito, observado o § 3º do art. 24 da CF/88:
Art. 24 (...)
§ 3º Inexistindo lei federal sobre
normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para
atender a suas peculiaridades.
Vale ressaltar que, apesar de não
ter força de lei ordinária, o Ministério da Agricultura possui a Instrução
Normativa nº 3, de 17 de janeiro de 2000, que regulamenta os métodos de
insensibilização para o abate humanitário de animais de açougue. Em seu artigo
11.3, o regulamento expressamente prevê que “é facultado o sacrifício de animais
de acordo com preceitos religiosos, desde que sejam destinados ao consumo por
comunidade religiosa que os requeria ou ao comércio internacional com países
que façam essa exigência, sempre atendidos os métodos de contenção dos animais.”
Liberdade de culto e de liturgia
A discussão em foco envolve a
exegese de normas fundamentais, estando relacionada com o exercício da
liberdade de culto e de liturgia.
A religião
desempenha papel importante em vários aspectos da vida da comunidade, tendo
recebido especial proteção do legislador constituinte:
Art. 5º (...)
VI - é inviolável a liberdade de
consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos
religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a
suas liturgias;
Patrimônio cultural imaterial
A prática e os rituais relacionados
ao sacrifício animal são “patrimônio cultural imaterial”, na forma do disposto
no Artigo 2, item 2, alínea “c”, da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio
Cultural Imaterial da Unesco.
Além disso, como dispõe o texto
constitucional, elas constituem os modos de criar, fazer e viver de diversas
comunidades religiosas e se confundem com a própria expressão de sua identidade.
Vale ressaltar que o Estado
brasileiro tem o dever de proteger as “manifestações das culturas populares,
indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo
civilizatório nacional” (art. 215, § 1º).
Não há violação ao princípio da
laicidade
O princípio da laicidade
significa dizer que o Estado brasileiro é laico (secular ou não-confessional),
ou seja, não existe nele uma religião oficial (art. 19, I, da CF/88). Assim,
por força deste princípio, o Estado não pode estar associado a nenhuma
religião, nem sob a forma de proteção nem de perseguição. Há, portanto, uma separação
formal entre Igreja e Estado.
O STF entendeu que, ao contrário
do que alegou o MP/RS, a referida lei não viola o princípio da laicidade.
A proteção legal às religiões de
matriz africana não representa um privilégio, mas sim um mecanismo de assegurar
a liberdade religiosa, mantida a laicidade do Estado.
Desse modo, a lei gaúcha, na
verdade, está de acordo com o princípio da laicidade. Isso porque a laicidade
do Estado proíbe que haja o menosprezo ou a supressão de rituais, especialmente
no caso de religiões minoritárias que poderiam ser subjugadas pelo Estado.
Não há violação ao princípio da igualdade
A CF promete uma sociedade livre
de preconceitos, entre os quais o religioso.
A cultura afro-brasileira merece
maior atenção do Estado, por conta de sua estigmatização, fruto de preconceito
estrutural.
A proibição do sacrifício de
animais em seus cultos negaria a própria essência da pluralidade cultural, com
a consequente imposição de determinada visão de mundo.
Ao se conferir uma proteção aos
cultos de religiões historicamente estigmatizadas, o legislador não ofende o
princípio da igualdade. Ao contrário, materializa esse princípio diante do
preconceito histórico sofrido.
Não há violação ao art. 225 da
CF/88
O legislador,
ao admitir a prática de imolação (sacrifício), não violou o dever
constitucional de amparo aos animais, estampado no art. 225, § 1º, VII, da CF/88:
Art. 225 (...)
§ 1º Para assegurar a efetividade desse
direito, incumbe ao Poder Público:
(...)
VII - proteger a fauna e a flora,
vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função
ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.
Isso porque se deve evitar que a
tutela de um valor constitucional relevante (meio ambiente) aniquile o
exercício de um direito fundamental (liberdade de culto), revelando-se
desproporcional impedir todo e qualquer sacrifício religioso quando diariamente
a população consome carnes de várias espécies.
Além disso, deve-se reforçar o
argumento de que os animais sacrificados nestes cultos são abatidos de forma rápida,
mediante degola, de sorte que a realização dos rituais religiosos com estes animais
não se amolda ao art. 225, § 1º, VII, que proíbe práticas cruéis com
animais.
Em suma:
É
constitucional a lei de proteção animal que, a fim de resguardar a liberdade
religiosa, permite o sacrifício ritual de animais em cultos de religiões de
matriz africana.
STF. Plenário. RE 494601/RS, rel. orig. Min.
Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min. Edson Fachin, julgado em 28/3/2019
(repercussão geral) (Info 935).