Dizer o Direito

segunda-feira, 18 de março de 2019

O Estado responde, objetivamente, pelos danos causados por notários e registradores



Tabelião e registrador oficial
O tabelião e o registrador são profissionais do direito, dotados de fé pública, a quem é delegado o exercício da atividade notarial e de registro. Em linguagem popular, eles são os “donos” do “cartório” extrajudicial. Apesar de ser uma expressão consagrada na prática, o termo cartório não é utilizado no corpo da Lei nº 8.935/94, diploma legal que rege os serviços notariais e de registro (“Lei dos cartórios”).

Tabelião (= notário)
Registrador (= oficial de registro)
Exercem serviços notariais.
Exercem serviços registrais (serviços de registro).
Serviços notariais: redigir, formalizar e autenticar , com fé pública, instrumentos que consubstanciam atos jurídicos extrajudiciais de interesse dos solicitantes.
Serviços de registro: atividade por meio da qual são praticados os atos previstos na Lei nº 6.015/73.
Exs: fazer procuração, autenticar assinaturas, lavrar escrituras publicas etc.
Exs: registro de nascimento, casamento, óbito, venda de imóveis, inscrição de penhora etc.
Exemplos de serventias titularizadas por notários:
• tabelionato de notas;
• tabelionato de protesto.
Exemplos de serventias ocupadas por registradores:
• registro de pessoas naturais;
• registro de imóveis.

Os serviços notariais e de registro são
- atividades extrajudiciais
- de caráter estatal (atividades próprias do Estado)
- mas que são exercidas em caráter privado (ou seja, por particulares pessoas físicas)
- em virtude de delegação feita pelo Poder Público
- após prévia aprovação em concurso público de provas e títulos.

Assim, o tabeliães e registradores oficiais exercem atividades de natureza estatal que lhes foram delegadas pelo Poder Público.
Essas atividades são munidas de fé pública e se destinam a conferir autenticidade, publicidade, segurança e eficácia às declarações de vontade.
O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público, e os atos de seus agentes estão sujeitos à fiscalização exercida pelo Poder Judiciário estadual (art. 236).

Imagine agora a seguinte situação hipotética:
Juliano é oficial do registro civil de pessoas naturais. Na linguagem popular, ele é o “dono” do cartório.
Determinado dia, Juliano foi registrar um óbito. Ocorre que ele errou a grafia do nome do falecido ao fazer a certidão e, em virtude desse equívoco, Maria (a viúva) não conseguiu obter a pensão por morte no INSS. Maria somente conseguiu resolver a situação depois de 2 anos, quando finalmente houve a retificação da certidão.
Isso significa que Maria ficou 2 anos sem receber a pensão por morte em virtude do erro do registrador.
Diante desse cenário, Maria ajuizou ação de indenização unicamente contra o Estado cobrando os prejuízos que sofreu em virtude do erro do oficial do registro.
A PGE apresentou contestação, em nome do poder público, afirmando que a responsabilidade do Estado, neste caso, é subsidiária, ou seja, primeiro deveria ser proposta a ação contra o titular da serventia extrajudicial (registrador) e, somente se ele não conseguisse pagar a dívida, o Estado seria chamado a indenizar.

A tese sustentada pela PGE é acolhida pelo STF?
NÃO. O STF entende que:
O Estado possui responsabilidade civil direta e primária pelos danos que tabeliães e oficiais de registro, no exercício de serviço público por delegação, causem a terceiros.
STF. Plenário. RE 842846/RJ, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 27/2/2019 (repercussão geral) (Info 932).

Qual é o tipo de responsabilidade civil do Estado?
Objetiva, nos termos do art. 37, § 6º, da CF/88:
Art. 37 (...)
§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

Ação de regresso
Vale ressaltar, no entanto, que, se o Estado for condenado e pagar a indenização à vítima, ele tem o dever de cobrar de volta do tabelião ou registrador o valor que pagou.
Em outras palavras, depois de pagar a indenização, o Estado deve, obrigatoriamente, ajuizar ação de regresso contra o responsável pelo dano.
Se o Estado não ajuizar a ação de regresso, os agentes públicos responsáveis por isso (exs: Governador, Procurador-Geral do Estado, Secretário de Fazenda, a depender do caso concreto e da organização administrativa do ente) poderão responder por ato de improbidade administrativa.

Nesta ação de regresso, o Estado, para ser indenizado, deverá comprovar que o tabelião ou registrador agiu com dolo ou culpa? Qual é o tipo de responsabilidade civil dos notários e registradores?
SIM. Trata-se de responsabilidade SUBJETIVA.

Em suma:
O Estado responde, objetivamente, pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem dano a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa.
STF. Plenário. RE 842846/RJ, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 27/2/2019 (repercussão geral) (Info 932).

Seria possível que Maria ajuizasse a ação diretamente contra Juliano (o registrador) ou ela teria que primeira acionar o Estado?
O STF não discutiu expressamente esse tema.
Há certa polêmica sobre o assunto porque, em se tratando de atos praticados por servidores públicos, vigora, no STF, a teoria da dupla garantia.
Pela tese da dupla garantia, se uma pessoa sofre dano causado por servidor público, essa pessoa (vítima) somente poderá ajuizar a ação contra o Estado (Poder Público). Se este for condenado, irá acionar o servidor que causou o dano, em caso de dolo ou culpa. Em outras palavras, o ofendido não poderá propor a demanda diretamente contra o agente público.
O STF não discutiu se essa tese da dupla garantia se aplica também aos titulares das serventias extrajudiciais.
Minha opinião pessoal é a de que a vítima pode sim ajuizar a ação de indenização diretamente contra o notário ou registrador. Ela não precisa, necessariamente, acionar o Estado primeiro. Em outras palavras, não se aplica a tese da dupla garantia para os notários e registradores. Isso porque os titulares das serventias extrajudiciais não são servidores públicos.
Além disso, o art. 22 da Lei nº 8.935/94 prevê, expressamente, a possibilidade de o particular lesado ajuizar a ação diretamente contra os notários e registradores. Veja:
Art. 22. Os notários e oficiais de registro são civilmente responsáveis por todos os prejuízos que causarem a terceiros, por culpa ou dolo, pessoalmente, pelos substitutos que designarem ou escreventes que autorizarem, assegurado o direito de regresso.
Parágrafo único.  Prescreve em três anos a pretensão de reparação civil, contado o prazo da data de lavratura do ato registral ou notarial. (Redação dada pela Lei nº 13.286/2016).

Repare que o parágrafo único é específico para a ação proposta diretamente pela vítima contra o titular do cartório, não se aplicando, por exemplo, para a ação de regresso ajuizada pelo Estado considerando que estipula como termo inicial da ação não o pagamento, mas sim a data da lavratura do ato registral ou notarial.

E por que motivo a vítima iria preferir ajuizar a ação diretamente contra o “dono” do cartório?
• Vantagem para a vítima ao ajuizar a ação diretamente contra o titular do cartório: não terá que receber a indenização por meio de precatório.
• Desvantagem: terá que provar o dolo ou a culpa do titular do cartório, considerando que a responsabilidade do notário ou registrador é subjetiva.

Ação de indenização proposta por pessoa que sofreu
dano em razão de ato de notário ou registrador
Se for proposta contra o Estado:
Se for proposta contra o tabelião ou registrador:
Responsabilidade objetiva.
Prazo prescricional: 5 anos.
Receberá por precatório ou RPV.
Responsabilidade subjetiva
Prazo prescricional: 3 anos
Receberá por execução comum.

A Lei nº 13.286/2016 alterou o art. 22 da Lei nº 8.935/94 prevendo que a responsabilidade civil dos notários e registradores é subjetiva. Essa opção do legislador é válida ou viola o art. 37, § 6º da CF/88? O legislador poderia ter estipulado a responsabilidade subjetiva? Esse dispositivo é constitucional?
A maioria dos Ministros entendeu que sim, ou seja, trata-se de dispositivo constitucional.
O art. 236, § 1º, da CF/88 é uma norma de eficácia limitada na qual o constituinte outorgou competência para o legislador infraconstitucional definir qual seria o regime de responsabilidade dos notários e registradores. Veja:
Art. 236 (...)
§ 1º Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário.

Assim, a responsabilidade civil dos notários e registradores não precisa ser, necessariamente, objetiva, tal qual prevê o art. 37, § 6º da CF/88 considerando que o constituinte facultou ao legislador a opção de estipular regra diversa. Em outras palavras, a própria Constituição Federal retirou o assento constitucional da regulação da responsabilidade civil e criminal dos notários, relegando-a à autoridade legislativa.
A disciplina conferida à matéria pelo legislador consagra a responsabilidade civil subjetiva dos notários e oficiais de registro. Portanto, não compete ao STF fazer interpretação analógica e extensiva, a fim de equiparar o regime jurídico da responsabilidade civil de notários ao das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos (art. 37, § 6º, da CF/88).
Ademais, o art. 37, § 6º, da CF/88 se refere a “pessoas jurídicas” prestadoras de serviços públicos, ao passo que notários e tabeliães respondem civilmente como “pessoas naturais” delegatárias de serviço público, nos termos do referido dispositivo legal.

Jurisprudência do STF
Vale ressaltar que a conclusão acima exposta já era o entendimento do STF. No entanto, o STJ possuía inúmeros julgados em sentido diferente (ex: AgRg no REsp 1377074/RJ) e agora aquele Tribunal terá que se adequar à posição do STF tendo em vista que a tese foi fixada sob a sistemática da repercussão geral.





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