Imagine a seguinte situação hipotética:
João, 79 anos, trafegava de bicicleta em uma rodovia em São
Paulo (SP).
O caminhão, ao fazer uma conversão para a direita, acabou atingindo
o ciclista que, por conta do acidente, teve uma das pernas amputadas.
Diante disso, João ajuizou ação de indenização por danos
morais e materiais contra a transportadora proprietária do caminhão em
litisconsórcio passivo com o condutor do veículo.
Em recurso, o TJ/SP julgou o pedido improcedente alegando
que:
• não há provas nos autos de que o motorista do caminhão tenha
infringido qualquer norma de trânsito;
• o acidente ocorreu em uma rodovia com tráfego intenso de
veículos, razão pela qual era impertinente a presença de ciclistas no local
especialmente se considerarmos que não existia espaço próprio para circularem
(“ciclovia”);
• o ciclista, ao perceber que havia um caminhão trafegando, deveria
ter parado e esperado que o veículo fizesse a curva e fosse embora, para só
então seguir seu caminho.
Agiu corretamente o TJ?
NÃO.
Bicicleta é veículo
A bicicleta, assim como o
caminhão, é considerada como um veículo pelo Código de Trânsito, nos termos do
seu art. 96:
Art. 96. Os veículos classificam-se
em:
(...)
II - quanto à espécie:
a) de passageiros:
1 - bicicleta;
Dessa forma, respeitadas as peculiaridades contidas na
legislação e ressalvadas as limitações eventualmente impostas pela autoridade
competente, o ciclista tem direito de transitar nas vias terrestres tanto
quanto o motorista do caminhão ou dos demais veículos.
Daí porque não se justifica a afirmação do TJ/SP no sentido
de que, “se o local possui tráfego intenso de veículos e motocicletas,
impertinente a presença de ciclistas no local quando inexistir para eles espaço
próprio para circularem”.
Ausência de ciclovia não impede a circulação das bicicletas
A ausência de “espaço próprio” para o fluxo de bicicletas
não é tida pelo CTB como circunstância proibitiva ou inibitória de sua
circulação na via.
Ao contrário. O próprio CTB afirma,
em seu art. 58, que é possível a circulação de bicicletas mesmo que não haja
ciclovias. Esse dispositivo prevê, ainda, que as bicicletas terão preferência
em relação aos veículos automotores:
Art. 58. Nas vias urbanas e nas rurais
de pista dupla, a circulação de bicicletas deverá ocorrer, quando não houver ciclovia, ciclofaixa, ou acostamento, ou quando
não for possível a utilização destes, nos bordos da pista de rolamento, no
mesmo sentido de circulação regulamentado para a via, com
preferência sobre os veículos automotores.
Parágrafo único. A autoridade de
trânsito com circunscrição sobre a via poderá autorizar a circulação de
bicicletas no sentido contrário ao fluxo dos veículos automotores, desde que
dotado o trecho com ciclofaixa.
Caminhão devia ter dado a preferência
Por conduzir o veículo de maior porte, cabia ao caminhoneiro
dar a preferência de passagem ao ciclista, ou seja, ao contrário do que afirmou
o TJ/SP, o é quem deveria ter aguardado o ciclista terminar a manobra para só
então seguir seu caminho. Ou, então, deveria ter feito a curva com segurança,
sem atingir a bicicleta.
É o que prevê o art. 28, § 2º do
CTB:
Art. 28 (...)
§ 2º Respeitadas as normas de
circulação e conduta estabelecidas neste artigo, em ordem decrescente, os veículos de maior porte serão sempre responsáveis pela segurança dos
menores, os motorizados pelos não motorizados e, juntos, pela
incolumidade dos pedestres.
Assim, existe uma “hierarquia” a ser observada pelos
condutores dos veículos que trafegam nas vias terrestres, de sorte que o
caminhão é responsável pela segurança da bicicleta. Isso contudo, não afasta o
dever, tanto do caminhoneiro como do ciclista, de observar as regras de
circulação e conduta no trânsito.
Manobra deve ser feita sem causar perigo
O motorista do caminhão, ao fazer
a curva (manobra), deveria tê-la realizado sem gerar perigo ao ciclista,
conforme preconiza o art. 34 do CTB:
Art. 34. O condutor que queira
executar uma manobra deverá certificar-se de que pode executá-la
sem perigo para os demais usuários da via que o seguem, precedem ou vão
cruzar com ele, considerando sua posição, sua direção e sua velocidade.
Vale ressaltar, inclusive, que o
motorista do veículo automotor possui um dever especial de cuidado em relação
aos ciclistas, conforme determina o parágrafo único do art. 38 do CTB:
Art. 38. (...)
Parágrafo único. Durante a manobra de
mudança de direção, o condutor deverá ceder passagem aos pedestres e ciclistas,
aos veículos que transitem em sentido contrário pela pista da via da qual vai
sair, respeitadas as normas de preferência de passagem.
Em suma:
A
bicicleta, assim como o caminhão, é considerada pelo CTB como veículo. Dessa
forma, respeitadas as peculiaridades contidas na legislação e ressalvadas as
limitações eventualmente impostas pela autoridade competente, o ciclista tem
direito de transitar nas vias terrestres tanto quanto o motorista do caminhão
ou dos demais veículos.
A
ausência de “espaço próprio” para o fluxo de bicicletas não é tida pelo CTB
como circunstância proibitiva ou inibitória de sua circulação na via. Ao
contrário. O próprio CTB afirma, em seu art. 58, que é possível a circulação de
bicicletas mesmo que não haja ciclovias. Esse dispositivo prevê, ainda, que as
bicicletas terão preferência em relação aos veículos automotores:
A
legislação de trânsito exige daquele que deseja realizar uma manobra que se
certifique de que pode executá-la sem perigo para os demais usuários da via que
o seguem, precedem ou vão cruzar com ele, considerando sua posição, sua direção
e sua velocidade, e que, durante a mudança de direção, o condutor ceda passagem
aos pedestres e ciclistas, respeitadas as normas de preferência de passagem.
STJ. 3ª Turma. REsp 1761956/SP, Rel. Min.
Nancy Andrighi, julgado em 12/02/2019.