Imagine
a seguinte situação hipotética:
João
possui paraplegia dos membros inferiores e, em razão disso, necessita de
cadeira de rodas.
Ele
adquiriu uma passagem aérea de Porto Alegre (RS) para Brasília (DF).
No
momento do embarque, no entanto, houve um problema para João entrar na
aeronave.
A
entrada neste voo não ocorreu por meio da ponte de embarque (conhecida como “finger”),
ou seja, aquela ponte que faz a ligação entre o terminal e o avião e que fica
na mesma altura da entrada da aeronave, de forma que os passageiros precisam
apenas andar por uma espécie de “túnel” até a entrada do avião.
Como
a aeronave estava pousada longe do terminal, o embarque ocorreu do modo “antigo”,
ou seja, os passageiros pegaram um ônibus que os levou até o avião e lá
chegando tiveram que subir as escadas para entrar na aeronave.
João
foi no ônibus até o avião, mas lá chegando, não havia nenhum mecanismo adequado
para permitir que ele ingressasse na aeronave. E quais seriam esses mecanismos?
Poderia ser uma rampa móvel:
Ou um “ambulift”, que é um veículo com
uma plataforma que eleva a pessoa com cadeira de rodas para que ela fique na
mesma altura da aeronave e entre normalmente no avião:
Como
não havia rampa móvel ou “ambulift”, os funcionários na companhia aérea subiram
as escadas carregando João no colo.
Alguns
dias após esse fato, João ajuizou ação de indenização por danos morais contra a
companhia aérea argumentando que o tratamento dispensado para que ele
ingressasse na aeronave foi inseguro e vexatório, tendo havido má prestação dos
serviços.
A
companhia aérea apresentou contestação na qual alegou que o defeito no serviço
decorreu da culpa de terceiro (art. 14, § 3º, II, do CDC). Isso porque seria da
INFRAERO (empresa pública federal responsável pela administração do aeroporto)
o dever de disponibilizar os meios de acesso à aeronave.
O
STJ concordou com o pedido formulado pelo consumidor?
SIM.
Da
garantia de acessibilidade à pessoa com deficiência no ordenamento jurídico
brasileiro
A
proteção aos direitos humanos passou de uma fase de universalização para a
atual etapa de especificação, na qual é
feita a individualização dos grupos titulares de tais prerrogativas dentro de
suas especificidades, aprimorando-se os instrumentos de proteção às minorias.
Parte-se,
então, para um esforço conjunto dos atores globais para valorizar de forma
singularizada o sujeito de direitos.
É
diante desse contexto que surge a preocupação específica com as pessoas com
deficiência, promovendo-se políticas para assegurar a tais indivíduos o gozo da
vida de maneira mais próxima possível da plenitude.
Documentos
de proteção às pessoas com deficiência
Essa
preocupação manifestou-se no cenário internacional e nacional, sendo possível
destacar alguns atos normativos editados com o propósito de proteger as pessoas
com deficiência:
Convenção
Interamericana sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra
Pessoas com Deficiência (1999):
Promulgada
pelo Decreto nº 3.956/2001.
Este
instrumento previu o comprometimento dos países signatários em adotar medidas
legislativas para promover a integração da pessoa acometida por dificuldades,
em toda sorte de serviços e instalações público e privados, especialmente o
transporte.
Lei
nº 10.098/2000:
Com
o propósito de cumprir a determinação da Convenção Interamericana, o Congresso
Nacional editou a Lei nº 10.098/2000, cuja função foi disciplinar os critérios
para a promoção da acessibilidade para as pessoas com deficiência ou com
mobilidade reduzida.
Esta
Lei foi regulamentada pelo Decreto nº 5.296/2004.
No que tange à aviação civil, o Decreto
estabeleceu o seguinte:
Da Acessibilidade no Transporte
Coletivo Aéreo
Art. 44. No prazo de até trinta e seis meses, a contar
da data da publicação deste Decreto, os
serviços de transporte coletivo aéreo e os equipamentos de acesso às aeronaves
estarão acessíveis e disponíveis para serem operados de forma a garantir o seu
uso por pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida.
Parágrafo único. A acessibilidade nos serviços de transporte
coletivo aéreo obedecerá ao disposto na Norma de Serviço da Instrução da
Aviação Civil NOSER/IAC - 2508-0796, de 1º de novembro de 1995, expedida pelo
Departamento de Aviação Civil do Comando da Aeronáutica, e nas normas técnicas
de acessibilidade da ABNT.
Convenção
Internacional dos Direitos da Pessoas com Deficiência:
Promulgada
pelo Decreto 6.949/2009, com status de emenda constitucional considerando que
foi submetida ao tratamento previsto no art. 5º, § 3º, da CF/88.
Nele
se observa a preocupação acentuada em assegurar a acessibilidade do portador de
cuidados especiais, de forma a afastar tratamento discriminatório, realçando
não só a pura adequação dos meios para sua concretização, mas também que
permitam a independência do indivíduo ao executar as tarefas do cotidiano.
Esse
enfoque na autodeterminação é a tônica atual dada à proteção dos direitos das
pessoas com deficiência. Com isso, abandona-se a antiquada e reprovável visão que
tratava esses indivíduos como mero assunto de saúde pública.
A
intenção atual, portanto, é o de garantir ao máximo a integração das pessoas
com deficiência com vida comum, reduzindo situações embaraçosas e permitindo
deslocamentos sem obstáculos. O objetivo final de tudo isso é promover a máxima
inclusão.
A
Flávia Piovesan resume bem as quatro fases na história da construção dos
direitos humanos das pessoas com deficiência:
1ª
fase: foi uma época de intolerância em relação às pessoas com deficiência. A
deficiência simbolizava impureza, pecado ou, mesmo, castigo divino;
2ª
fase: marcada pela invisibilidade das pessoas com deficiência;
3ª
fase: baseada em uma ótica assistencialista, pautada na perspectiva médica e
biológica de que a deficiência era uma “doença a ser curada”, sendo o foco
centrado no indivíduo “portador da enfermidade”;
4ª
fase: orientada pelo paradigma dos direitos humanos, em que emergem os direitos
à inclusão social, com ênfase na relação da pessoa com deficiência e do meio em
que ela se insere, bem como na necessidade de eliminar obstáculos e barreiras
superáveis, sejam elas culturais, físicas ou sociais, que impeçam o pleno
exercício de direitos humanos. Isto é, nesta quarta fase, o problema passa a
ser a relação do indivíduo e do meio, este assumido como uma construção
coletiva. Nesse sentido, esta mudança paradigmática aponta aos deveres do
Estado para remover e eliminar os obstáculos que impeçam o pleno exercício de direito
das pessoas com deficiência, viabilizando o desenvolvimento de suas
potencialidades, com autonomia e participação. (PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. 8ª ed. São
Paulo: Saraiva, 2015, p. 483)
Acessibilidade
A
acessibilidade é princípio fundamental assumido pelo Brasil na Convenção
Internacional dos Direitos da Pessoas com Deficiência que, conforme já
explicado, possui status de norma constitucional.
Resolução
da ANAC
Em
âmbito infralegal, a questão é atualmente regulamentada pela Resolução nº
280/2013, da ANAC, que dispõe sobre os procedimentos relativos à acessibilidade
de passageiros com necessidade de assistência especial ao transporte aéreo.
O art. 20 da Resolução prevê:
Art. 20. O embarque e o desembarque do
PNAE que dependa de assistência do tipo STCR, WCHS ou WCHC devem ser realizados
preferencialmente por pontes de embarque, podendo também ser realizados por
equipamento de ascenso e descenso ou rampa.
§ 1º O equipamento de ascenso e
descenso ou rampa previstos no caput devem ser disponibilizados e operados pelo
operador aeroportuário, podendo ser cobrado preço específico dos operadores
aéreos.
(...)
O
§ 4º do art. 20 da Resolução prevê que é “vedado carregar manualmente o
passageiro, exceto nas situações que exijam a evacuação de emergência da
aeronave.”
Companhias
áreas são solidariamente responsáveis
Como
vimos acima, o § 1º do art. 20 afirma que a obrigação fornecer o equipamento
para embarque ou desembarque do passageiro com deficiência é do operador
aeroportuário (em regra, a ANAC).
Apesar
disso, o STJ afirma que essa previsão não tem o condão de eximir a companhia
aérea da obrigação de garantir o embarque seguro e com dignidade da pessoa com
dificuldade de locomoção.
Afinal
de contas, a companhia aérea integra a cadeia de fornecimento, de forma que
possui responsabilidade solidária em caso de fato do serviço, nos termos do
art. 14 do CDC.
O
embarque ou desembarque indevido de pessoa com deficiência – que é carregado
por não se dispor de mecanismo adequado para seu transporte – é caracterizado
como fato do serviço (art. 14 do CDC). Isso porque se trata de defeito que ultrapassa
a esfera meramente econômica do consumidor, atingindo-lhe a incolumidade física
ou moral considerando o tratamento vexatório a que é submetido.
Logo,
nos termos do art. 14 do CDC, o fornecedor de serviços (empresa de aviação)
responde, objetivamente, pela reparação dos danos causados.
Não
se trata de causa excludente de responsabilidade (fato de terceiro)
A
companhia aérea não poderá se eximir alegando fato de terceiro (art. 14, § 3º,
II, do CDC). Isso porque o fato de terceiro somente será considerado excludente
da responsabilidade civil do fornecedor quando for:
a)
inevitável;
b)
imprevisível; e
c)
não guardar qualquer relação com a atividade empreendida pelo fornecedor.
Na
hipótese, o constrangimento sofrido pelo passageiro guarda direta e estreita
relação com o contrato de transporte firmado como a companhia de aviação.
As
empresas de aviação sabem que, todos os dias, pessoas com deficiência pegam
voos e, portanto, problemas com a sua acessibilidade estão na margem de previsibilidade
e de risco desta atividade.
Neste
contexto, não há como a concessionária de transporte aéreo invocar excludente
de causalidade (art. 14, § 3º, II, do CDC), ao argumento de recair sobre
terceiro a responsabilidade de assegurar a acessibilidade do cadeirante na
aeronave, no caso a INFRAERO.
Em
suma:
Companhia
aérea é civilmente responsável por não promover condições dignas de
acessibilidade de pessoa cadeirante ao interior da aeronave.
A
sociedade empresária atuante no ramo da aviação civil possui a obrigação de
providenciar a acessibilidade do cadeirante no processo de embarque, quando
indisponível ponte de conexão ao terminal aeroportuário (“finger”).
Se
não houver meio adequado (com segurança e dignidade) para o acesso do
cadeirante ao interior da aeronave, isso configura defeito na prestação do
serviço, ensejando reparação por danos morais.
STJ. 4ª Turma. REsp 1.611.915-RS, Rel.
Min. Marco Buzzi, julgado em 06/12/2018 (Info 642).
Curiosidade:
no caso concreto, foi fixada a indenização em R$ 15 mil.