Dizer o Direito

quinta-feira, 21 de março de 2019

A Lei 13.491/2017 deve ser aplicada imediatamente aos processos em curso, respeitando-se os benefícios previstos na legislação penal mais benéfica ao tempo do crime



Competência da Justiça Militar
Compete à Justiça Militar processar e julgar os crimes militares.
A lei deve definir quais são os crimes militares.
Assim, compete à Justiça Militar julgar os crimes militares assim definidos em lei (art. 124 da CF/88).
A lei que prevê os crimes militares é o Código Penal Militar (Decreto-Lei 1.001/1969).
• No art. 9º do CPM são conceituados os crimes militares em tempo de paz.
• No art. 10 do CPM são definidos os crimes militares em tempo de guerra.

Desse modo, para verificar se o fato pode ser considerado crime militar, sendo, portanto, de competência da Justiça Militar, é preciso que ele se amolde em uma das hipóteses previstas nos arts. 9º e 10 do CPM.

Lei nº 13.491/2017
A Lei nº 13.491/2017 alterou o art. 9º do CPM ampliando o conceito de crime militar.
Veja abaixo um resumo das principais mudanças feitas pela Lei nº 13.491/2017 lembrando que estão disponíveis no site do DOD comentários completos a respeito desta novidade legislativa.

Alteração 1
A primeira mudança ocorrida foi no inciso II do art. 9º. Veja:
Código Penal Militar
Redação original
Redação dada pela Lei nº 13.491/2017
Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:
II - os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum, quando praticados:
Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:
II - os crimes previstos neste Código e os previstos na legislação penal, quando praticados:

O que significa essa mudança?
• Antes da Lei: para se enquadrar como crime militar com base no inciso II do art. 9º, a conduta praticada pelo agente deveria ser obrigatoriamente prevista como crime no Código Penal Militar.
• Agora: a conduta praticada pelo agente, para ser crime militar com base no inciso II do art. 9º, pode estar prevista no Código Penal Militar ou na legislação penal “comum”.

Alteração 2
Se um militar, no exercício de sua função, pratica tentativa de homicídio (ou qualquer outro crime doloso contra a vida) contra vítima civil, qual será o juízo competente?
Antes da Lei:
• REGRA: os crimes dolosos contra a vida praticados por militar contra civil eram julgados pela Justiça comum (Tribunal do Júri). Isso com base na antiga redação do parágrafo único do art. 9º do CPM.
• EXCEÇÃO: se o militar, no exercício de sua função, praticasse tentativa de homicídio ou homicídio contra vítima civil ao abater aeronave hostil (“Lei do Abate”), a competência seria da Justiça Militar. Tratava-se da única exceção.

Depois da Lei:
• REGRA: em regra, os crimes dolosos contra a vida praticados por militar contra civil continuam sendo julgados pela Justiça comum (Tribunal do Júri). Isso com base no novo § 1º do art. 9º do CPM:
Art. 9º (...)
§ 1º Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos por militares contra civil, serão da competência do Tribunal do Júri.

Ocorre que a Lei nº 13.491/2017 trouxe um amplo rol de exceções.

• EXCEÇÕES:
Os crimes dolosos contra a vida praticados por militar das Forças Armadas contra civil serão de competência da Justiça Militar da União, se praticados no contexto: 
I – do cumprimento de atribuições que lhes forem estabelecidas pelo Presidente da República ou pelo Ministro de Estado da Defesa; 
II – de ação que envolva a segurança de instituição militar ou de missão militar, mesmo que não beligerante; ou 
III – de atividade de natureza militar, de operação de paz, de garantia da lei e da ordem (GLO) ou de atribuição subsidiária, realizadas em conformidade com o disposto no art. 142 da CF/88 e na forma dos seguintes diplomas legais: 
a) Código Brasileiro de Aeronáutica;
b) LC 97/99;
c) Código de Processo Penal Militar; e
d) Código Eleitoral.

Isso está previsto no novo § 2º do art. 9º do CPM.
Obs: as exceções são tão grandes que, na prática, tirando os casos em que o militar não estava no exercício de suas funções, quase todas as demais irão ser julgadas pela Justiça Militar por se enquadrarem em alguma das exceções.

Vigência
A Lei nº 13.491/2017 entrou em vigor na data de sua publicação (16/10/2017).

Feita esta breve revisão sobre o tema, imagine a seguinte situação hipotética na qual se discutiu a aplicação temporal da Lei nº 13.491/2017:
Em agosto/2017, ou seja, antes da Lei nº 13.491/2017, João, militar, no exercício de suas funções, praticou os crimes descritos no art. 3º, “b” e no art. 4º, “b”, da Lei nº 4.898/65 (Lei de abuso de autoridade):
Art. 3º Constitui abuso de autoridade qualquer atentado:
(...)
b) à inviolabilidade do domicílio;

Art. 4º Constitui também abuso de autoridade:
(...)
b) submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei;

De quem é a competência para julgar o crime de abuso de autoridade praticado por militar no exercício de suas funções?
ABUSO DE AUTORIDADE PRATICADO POR MILITAR EM SERVIÇO
Antes da Lei 13.491/2017:
JUSTIÇA COMUM
Depois da Lei 13.491/2017:
JUSTIÇA MILITAR
Antes da Lei nº 13.491/2017 a competência para julgar este delito era da Justiça comum. Isso porque o art. 9º, II, do CPM afirmava que somente poderia ser considerado como crime militar as condutas que estivessem tipificadas no CPM.
Assim, como o abuso de autoridade não está previsto no CPM), mas sim na Lei nº 4.898/65, este delito não podia ser considerado crime militar.
A Lei nº 13.491/2017 deu nova redação ao CPM e passou a prever que a conduta praticada pelo agente, para ser crime militar com base no inciso II do art. 9º, pode estar prevista no Código Penal Militar ou na legislação penal “comum”.
Dessa forma, o abuso de autoridade, mesmo não estando previsto no CPM pode agora ser considerado crime militar.
Como o abuso de autoridade não podia ser considerado crime militar, a competência para julgá-lo era da Justiça comum.
Como o abuso de autoridade pode agora ser considerado crime militar, ele pode ser julgado pela Justiça Militar com base no art. 9º, II, do CPM.
Súmula 172-STJ: Compete à justiça comum processar e julgar militar por crime de abuso de autoridade, ainda que praticado em serviço.
A Súmula 172 do STJ está SUPERADA e deve ser cancelada futuramente.

Voltando ao nosso exemplo:
Como ainda não existia a Lei nº 13.491/2017, foi instaurado um processo na Justiça comum para apurar a conduta de João.
Ocorre que, logo em seguida, entrou em vigor a nova Lei.
Diante disso, o membro do Ministério Público pediu suscitou a incompetência da Justiça comum para processar a ação penal, em decorrência da mudança operada pela Lei nº 13.491/2017.
Assim, o MP pediu a remessa dos autos à Justiça Militar argumentando que a Lei nº 13.491/2017 trata sobre processo penal e as normas processuais possuem aplicação imediata, nos termos do art. 2º do CPP:
Art. 2º A lei processual penal aplicar se á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior.

A defesa, por sua vez, manifestou-se contrariamente ao pedido afirmando que essa providência agravaria a situação do réu porque nem todos os benefícios previstos na legislação comum poderão ser aplicados se o processo for para a Justiça Militar.
A defesa citou três exemplos:
1) No caso de crimes militares, haverá cúmulo material das penas, mesmo que os crimes tenham sido praticados em continuidade delitiva (art. 80 do Código Penal Militar).

2) Na Justiça comum são possíveis as medidas despenalizadoras previstas na Lei nº 9.099/95, dentre elas a suspensão condicional do processo. Já na Justiça Militar, tais medidas não seriam permitidas, conforme prevê o art. 90-A da Lei nº 9.099/95:
Art. 90-A. As disposições desta Lei não se aplicam no âmbito da Justiça Militar.

3) Na Justiça comum é permitida a substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos, nos moldes do art. 44 do CP. Essa mesma possibilidade não existe no processo penal militar.
Desse modo, a defesa argumentou que seria pior para o réu.

O que o STJ decidiu?
A Lei nº 13.491/2017 deve ser aplicada imediatamente aos processos em curso, ou seja, é possível a remessa imediata do processo para a Justiça Militar mesmo que o fato tenha ocorrido antes da vigência da nova lei.
No entanto, a Justiça Militar, ao receber esse processo, deverá aplicar a legislação penal mais benéfica que vigorava ao tempo do crime, seja ela militar ou comum.
Em outras palavras, no caso de João, o processo deverá ser remetido para a Justiça Militar, mas chegando lá, poderão ser aplicados os institutos despenalizadores da Lei nº 9.099/95 e, em caso de condenação, a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, conforme autoriza o art. 44 do Código Penal comum.

Tempus regit actum
O art. 2º do CPP consagra a regra do tempus regit actum. Isso significa que a lei processual penal possui aplicação imediata, de forma que os atos processuais são regidos pela lei vigente no momento da sua prática, não importando a data em que o crime foi praticado.
Ex: João praticou um delito em 2016, sendo instaurado um processo penal para apurá-lo; em 2017, entra em vigor uma nova lei (lei “X”) tratando sobre cartas precatórias; esta nova lei, que tem caráter processual, deve ser aplicada imediatamente; logo, se, em 2018, no processo penal desse réu, for necessária a expedição de uma carta precatória, deverá ser observada a lei “X”, não importante que o crime tenha sido praticado antes de sua vigência. Vale ressaltar, por outro lado, que, se foi expedida uma carta precatória em 2016, este ato foi perfeito, não mudando nada o fato de ter entrado em vigor uma nova lei em 2017.
O ato processual é regido pela lei vigente ao tempo de sua prática (tempus regit actum).

Normas mistas (ou híbridas)
A regra do tempus regit actum vale apenas para as normas exclusivamente processuais.
Existem, no entanto, algumas normas que, ao mesmo tempo, possuem um caráter de direito processual, mas também com fortes reflexos no direito material. São chamadas de normas mistas.
Exemplo de norma mista: a Lei nº 9.271/96 alterou o art. 366 do CPP, que trata sobre a citação por edital. Esta Lei previu que, se o acusado for citado por edital e não comparecer ao processo nem constituir advogado o processo deverá ficar suspenso. Se fosse até aqui, a lei seria meramente processual. Ocorre que ela também determinou que deveria ficar suspenso o curso do prazo prescricional. Ao fazer isso, a norma tratou sobre a perda do direito de punir (prescrição). Logo, disciplinou também direito material. Desse modo, esta lei é mista.

Lei nº 13.491/2017
A Lei nº 13.491/2017 não tratou apenas de ampliar a competência da Justiça Militar, também ampliou o conceito de crime militar, circunstância que, isoladamente, autoriza a conclusão no sentido da existência de um caráter de direito material na norma.
Esse aspecto, embora evidente, não afasta a sua aplicabilidade imediata aos fatos perpetrados antes de seu advento, já que a simples modificação da classificação de um crime como comum para um delito de natureza militar não traduz, por si só, uma situação mais gravosa ao réu, de modo a atrair a incidência do princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa (arts. 5º, XL, da Constituição Federal e 2º, I, do Código Penal).
Por outro lado, a modificação da competência, em alguns casos, pode ensejar consequências que repercutem diretamente no jus libertatis, inclusive de forma mais gravosa ao réu. É o caso do exemplo dado envolvendo João.
Logo, é inegável que a Lei nº 13.491/2017 possuiu conteúdo híbrido (lei processual material) e que, em alguns casos, a sua aplicação retroativa pode ensejar efeitos mais gravosos ao réu.

Mesmo assim, a Lei nº 13.491/2017 pode ser aplicada imediatamente
O fato de a Lei nº 13.491/2017 ser híbrida não pode impedir a sua aplicação imediata. É preciso, no entanto, que se concilie a sua aplicação imediata com o princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa.
Para isso, deve haver a incidência imediata da Lei nº 13.491/2017 aos fatos praticados antes do seu advento, em observância ao princípio tempus regit actum, mas, por outro lado, deve ser observada a legislação penal (seja ela militar ou comum) mais benéfica ao tempo do crime.
Ao se fazer a declinação da competência, essa ressalva deve ser feita expressamente.

Em suma:

É possível a aplicação imediata da Lei nº 13.491/2017, que amplia a competência da Justiça Militar e possui conteúdo híbrido (lei processual material), aos fatos perpetrados antes do seu advento, mediante observância da legislação penal (seja ela militar ou comum) mais benéfica ao tempo do crime.
STJ. 3ª Seção. CC 161.898-MG, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 13/02/2019 (Info 642).

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