Dizer o Direito

sábado, 9 de fevereiro de 2019

Notificação extrajudicial pode ser usada para constituir donatário em mora em caso de doação com encargo sem prazo determinado



Imagine a seguinte situação hipotética:
Em 2008, João, rico empresário, doou um grande imóvel de sua propriedade para o Município do interior onde ele viveu a sua infância.
Constou na escritura pública de doação que o imóvel doado deveria ser utilizado para a construção de uma escola, encargo que foi aceito pelo Município (donatário).

Contrato de doação
O contrato de doação está previsto no art. 538 do Código Civil:
Art. 538. Considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra.

Qual é o nome desta espécie de doação realizada por João?
Doação com encargo, que também pode ser chamada de:
• doação modal;
• doação gravada; ou
• doação onerosa.

A doação onerosa é aquela na qual o doador exige que o donatário cumpra um encargo (uma contraprestação). Ex: quando se doa um terreno a alguém para nele ser construída uma escola.
Esse encargo pode ser em favor:
• do doador;
• de terceiro; ou
• do interesse social.

O que acontece se o donatário não cumprir o encargo?
O doador terá duas alternativas:
1) Exigir o cumprimento do encargo:
Art. 553. O donatário é obrigado a cumprir os encargos da doação, caso forem a benefício do doador, de terceiro, ou do interesse geral.
Parágrafo único. Se desta última espécie for o encargo, o Ministério Público poderá exigir sua execução, depois da morte do doador, se este não tiver feito.

2) Pedir a revogação da doação por meio de ação de revogação da doação pelo descumprimento do encargo. Nesse sentido:
Art. 555. A doação pode ser revogada por ingratidão do donatário, ou por inexecução do encargo.

Se o contrato prevê prazo para o cumprimento do encargo:
O doador poderá adotar uma das providências acima logo após o esgotamento deste prazo.

Se o contrato não prevê prazo para o cumprimento do encargo:
Antes de exigir uma das providências acima, é necessário que o doador notifique o donatário (faça a sua constituição em mora):
Art. 562. A doação onerosa pode ser revogada por inexecução do encargo, se o donatário incorrer em mora. Não havendo prazo para o cumprimento, o doador poderá notificar judicialmente o donatário, assinando-lhe prazo razoável para que cumpra a obrigação assumida.

Voltando ao exemplo:
Passados 9 anos, a escola não foi construída e o terreno encontra-se sem qualquer cuidado, sendo utilizado como refúgio para mendigos e usuários de droga.
Diante disso, em 2017, João procurou o cartório da cidade e pediu que fosse expedida uma notificação extrajudicial para o Município, a ser recebida pelo Prefeito.
Nesta notificação, João (doador) deu o prazo final de 1 ano para que o Município fizesse a escola, sob pena de pedir a revogação da doação.

Ação de revogação da doação
Mesmo com mais este prazo de 1 ano, o donatário não cumpriu o encargo.
João ingressou, então, com ação de revogação da doação pelo descumprimento do encargo.
Pediu, portanto, a devolução do imóvel para o seu patrimônio.
O Município contestou a demanda afirmando que o art. 562 do Código Civil exige a interpelação JUDICIAL do donatário, o que não ocorreu no caso. Logo, não seria possível a revogação.

O STJ concordou com o argumento do Município a respeito da notificação?
NÃO.
O STJ, amparado pela doutrina, entendeu que se deve fazer uma interpretação conjunta do art. 562 com o art. 397 do CC.
Logo, é permitida tanto a notificação judicial como extrajudicial. Veja o que diz o parágrafo único do art. 397:
Art. 397. O inadimplemento da obrigação, positiva e líquida, no seu termo, constitui de pleno direito em mora o devedor.
Parágrafo único. Não havendo termo, a mora se constitui mediante interpelação judicial ou extrajudicial.

Em suma:
A inexecução do encargo assumido pelo donatário em face do doador como condição para a celebração da doação onerosa poderá ensejar a sua revogação.
Não previsto prazo determinado para o cumprimento da contraprestação, o doador, mediante notificação judicial ou extrajudicial, pode constituir em mora o donatário, fixando-lhe prazo para a execução do encargo. Restando este inerte (“parado”), opera-se a revogação da doação.
Apesar do art. 562 do CC falar em notificação judicial, admite-se também a notificação extrajudicial com base no art. 397, parágrafo único do CC, sendo excesso de formalismo exigir a notificação judicial.
STJ. 3ª Turma. REsp 1622377/MG, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 11/12/2018.



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